Artigo Destaque dos editores

A teoria do garantismo penal em questão.

O olhar anti-inquisitorial da axiologia de Luigi Ferrajoli

Exibindo página 1 de 2
23/11/2010 às 16:17
Leia nesta página:

Ao apregoar a minimização da intervenção penal pelo resguardo das garantias, a teoria de Ferrajoli evidencia-se avessa aos modelos antipluralistas marcados pelo paradigma da intolerância.

Sumário: 1 Introdução; 2 Uma pausa necessária: notas sobre a preocupante confusão entre abolicionismo e garantismo penal; 3 O sistema garantista: a construção de Luigi Ferrajoli; 3.1 As garantias penais e seus derivados; 3.2 As garantias processuais penais; 4 O princípio da secularização: implícito pilar da axiologia garantista; 5 A redefinição garantista dos planos das teorias do direito, do Estado e da política e sua vinculação com a democracia substancial; Considerações finais; Referências.

Resumo: o presente artigo traz a lume uma consistente síntese das garantias penais e processuais penais que compõem a festejada Teoria do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli. Neste viés, inclui-se nas seguintes páginas a axiologia garantista do mestre italiano, a qual invoca a responsabilidade do legislador e do julgador, sendo que ao primeiro é vedada a redação de normas maniqueístas e arbitrárias por propiciarem juízo de valor, enquanto ao segundo é defeso a consideração de normas alicerçadas em critérios subjetivos por impedirem a falseabilidade. Ilustra-se ainda, que o sistema garantista, como instrumento de intervenção mínima, propõe-se a conferir ao Direito Penal um modelo racional, opondo-se não somente à vertente abolicionista, mas às políticas criminais expansionistas e extremistas, que recaem mormente sobre aqueles que se encontram à margem da sociedade.

Palavras-chave: garantismo; axiomas; abolicionismo; direitos fundamentais; direito penal.


1 INTRODUÇÃO

De "[...] uma (mera) racionalidade instrumental [01]"à salvaguarda dos direitos fundamentais. Através desse raciocínio, a teoria do garantismo penal visa imprimir ao Direito um novo papel, contrapondo-se ao juspositivismo vigente, a fim de adequá-lo aos valores constitucionais. Nesta direção, ressalta a dicotomia entre a vigência e a validade da norma, uma vez que esta pode obedecer à forma, mas o seu conteúdo pode ser inválido por não acolher as garantias fundamentais, vinculando o julgador a uma análise crítica e não à mera aplicação da lei vigente [02].

Todavia, frisa-se que o Judiciário não possui responsabilidade exclusiva quanto ao êxito da teoria garantista, eis que no seu ofício de julgar depara-se com conflitos já instalados pela ineficiência na concretude dos direitos fundamentais e sociais. Nesta empreitada, denota-se que os demais poderes e a própria sociedade são imprescindíveis na efetivação do sistema garantidor, seja na elaboração de leis condizentes com os ditames da Carta Magna, seja na prestação dos direitos sociais, pois como bem leciona Canotilho,

Os direitos fundamentais vinculam as entidades públicas, não apenas de forma ‘negativa’ – impondo-lhes uma proibição de agressão ou ingerência na esfera do direito fundamental –, mas também de forma ‘positiva’ – exigindo delas a criação e manutenção dos pressupostos de facto [sic] e de direito necessários à defesa ou satisfação do direito fundamental [03].

Porém, no contexto brasileiro em que há a persistência do Executivo na implementação de políticas públicas mediatistas, incapazes de aplacar situações de vulnerabilidade social, bem como do Legislativo na produção de uma legiferação penal que subjuga as garantias aos anseios escusos de clamor social, cumpre ao julgador, como elemento final e depurador da cadeia, refrear a violência dirigida aos direitos fundamentais, adequando suas decisões aos preceitos constitucionais.

Por este viés, ao apregoar a minimização da intervenção penal através do resguardo das garantias, a teoria de Ferrajoli evidencia-se avessa aos modelos dogmáticos e antipluralistas representados pela Inquisição, pelo nacional-socialismo, pelo Direito penal do inimigo e outros tantos marcados pelo paradigma da intolerância [04], incluindo-se nessa atroz sistemática os componentes da criminologia da vida cotidiana e a previsão infraconstitucional da reincidência criminal.


2 UMA PAUSA NECESSÁRIA: NOTAS SOBRE A PREOCUPANTE CONFUSÃO ENTRE ABOLICIONISMO E GARANTISMO PENAL

No Brasil, tanto nas práticas dos agentes da cultura penal, quanto nas narrativas do senso comum, muito se confunde as diretivas apregoadas pela teoria garantista e pela doutrina abolicionista, resultando equivocadamente por compreendê-las como sinônimas. Por esse prisma, no intuito de contribuir para o afastamento de pré-juízos inautênticos [05] que conduzem à baixa aplicação [06] dos postulados do garantismo penal, depreende-se que a identificação das características distintivas das referidas vertentes é de suma importância, eis que sua melhor compreensão pode propiciar uma revisão de práticas e posicionamentos.

Por este aspecto, enquanto a cadeia de silogismos esculpida por Ferrajoli evidencia-se favorável à punição, desde que numa perspectiva de direito penal mínimo, conforme ilustrado nos persistentes questionamentos acerca do por que, de quando e de como proibir, julgar e punir [07], o abolicionismo revela não reconhecer qualquer legitimidade dos artefatos penais, seja pelo fundamento ético-políticopor estes apresentados, seja pelos pequenos benefícios que trazem se comparados aos vultosos danos que acarretam [08].

Nestes termos, ancorada nos estudos realizados pela Teoria da Reação Social [09], a corrente abolicionista, cujos expoentes são Christie, Hulsman e Mathiesen, exara uma patente vontade de eliminação do sistema penal, alertando que os conflitos, incapazes de serem totalmente suprimidos do corpus social, devem ser remetidos para tratamento no âmbito cível ou administrativo, quando não resolvido no plano informal-comunitário.

Christie, numa linha mais comedida, concorda que o sistema penal, com suas prisões que mais parecem gulags e campos de concentração, é um instrumento hábil para produção de dor, razão pela qual devem ser buscados meios alternativos de cunho privatista ou comunitário, pautado na mediação e na reparação do dano impresso pelo desvio, a fim de que a sanção penal seja relegada a ultima ratio [10].

Mathiesen, por seu turno, influenciado pelos preceitos marxistas e calcado na eficácia inversa da prevenção especial positiva [11], advoga pela progressiva abertura do seletivo sistema penal, bem como pela abolição da vultosa máquina carcerária, apontando que a maior parte dos que lá se encontram fora condenada por crimes contra o patrimônio.

Hulsman, numa implícita conjugação desses dois exames, comparece por derradeiro como o abolicionista mais radical, reivindicando em linhas gerais pela eliminação integral do que denomina de mal social [12] em prol de meios informais ou comunitários menos danosos, como a resolução de conflitos na seara cível ou administrativa, com vistas a "[...] dar vida às comunidades, às instituições e aos homens [13]".

Todavia, embora reconheça os contributos da referida doutrina que, centrada na perspectivas externa e seletiva do direito penal, estimulou pesquisas sobre as origens culturais e sociais do desvio, bem como acerca do relativismo histórico-político dos interesses penalmente tutelados, intensificando indagações sobre a legitimidade moral das doutrinas penais dominantes e, por conseguinte, impondo a estas a tarefa de elaborar justificativas positivas mais convincentes para este constructo arbitrário e artificial [14], reflete Ferrajoli que

El abolicionismo penal más allá de sus intenciones libertarias y humanitarias se configura por todo ello como una utopía regresiva que, bajo presupuestos ilusorios de una sociedad buena o de un estado bueno, presenta modelos en realidad desregulados o autorregulados de vigilancia y castigo respecto a los cuales es el derecho penal -con su complejo, difícil y precario sistema de garantías- el que constituye, histórica y axiológicamente, una alternativa progresista [15].

Inobstante, acrescenta que, igualmente, os vieses do substitucionismo penal não devem ser confundidos com a axiologia garantista e, tampouco, com o ideal abolicionista, tendo em vista que aqueles, ao apregoarem a substituição dos métodos penais atuais por tratamentos pedagógicos ou terapêuticos informais, incluindo neste rol, novos instrumentos coercitivo-institucionais, restam por cristalizar, ainda que sob um discurso libertário-humanista, um claro perfilhamento ao correlacionismo positivista [16].

Nestes termos, resta nítido que as premissas da Teoria o Garantismo Penal demonstram-se explicitamente contrárias às apregoadas pela doutrina abolicionista, razão pela qual a preocupante confusão que as interliga não pode prosperar.

Dito isso, adentra-se ao necessário exame da axiologia garantista cunhada magistralmente por Luigi Ferrajoli.


3 O SISTEMA GARANTISTA: A CONSTRUÇÃO DE LUIGI FERRAJOLI

Resumidamente, o sistema garantista de Ferrajoli, representado pela sigla SG, é composto por dez axiomas, conexos e não deriváveis, que dividem-se em garantias penais e processuais penais que, representadas por equações, visam limitar o arbítrio punitivo do Estado, tanto na cominação, quanto na aplicação da pena.

Desse modo, são garantias penais: nulla poena sine crimine (A1), denominada como princípio da retributividade; nullum crimen sine lege (A2), intitulada como princípio da legalidade em sentido lato ou estrito; nulla lex (poenalis) sine necessitate (A3) chamada de princípio da necessidade ou economia do direito penal; nulla necessita sine iniuria (A4), traduzida pelo princípio da lesividade ou ofensividade do ato; nulla iniuria sine actione (A5), que corresponde à materialidade ou exterioridade da ação; e nulla actio sine culpa (A6), que indica o princípio da culpabilidade ou responsabilidade pessoal.

As garantias processuais, por seu turno, são compostas pela nulla culpa sine iudicio (A7), que reveste o princípio da jurisdicionariedade em sentido lato ou estrito;pela nullum iudicium sine accusatione (A8), que denota o princípio acusatório ou da separação do juiz e acusação;pela nulla accusatio sine probatione (A9)que consiste no princípio ônus da prova ou da verificação e, por fim, pela nulla probatio sine defensione (A10) que enuncia o princípio do contraditório, também conhecido como da defesa ou da falseabilidade [17].

O atendimento de tais axiomas que, combinados podem expressar até 75 teoremas [18], revelam o grau de garantismo de cada sistema, pois não basta que as garantias estejam previstas no texto constitucional, mas sim que sejam efetivadas, sendo inadmitida a interferência de qualquer legislação ordinária ou de cunho inquisitorial sobre os direitos fundamentais que delas decorrem [19].

3.1 AS GARANTIAS PENAIS E SEUS DERIVADOS

O princípio da retributividade é a primeira e mais singela garantia penal esposada por Ferrajoli. Traduzido pela máxima nulla poena sine crimine, indica que a pena só pode ser aplicada na ocorrência do seu pressuposto, isto é, o delito. Para tanto, a pena exerceria uma função retributiva e não preventiva, eis que se optasse pela segunda alternativa, revelar-se-ia acolhedora de uma política inquisitorial e, portanto, antigarantista, haja vista que

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

La garantía del carácter retributivo de la pena – en virtud de la cual nadie puede ser castigado más que por lo que ha hecho (y no por lo que es) – sirve precisamente para excluir, al margen de cualquier posible finalidad preventiva o de cualquier otro modo utilitarista, el castigo del inocente aun cuando se le considere por sí malvado, desviado, peligroso, sospechoso o proclive al delito, etc [20].

Contudo, alerta o autor italiano que a prática de um ato descrito como crime não é suficiente para acionar a punição, visto que da análise do caso concreto, sob a observância das demais garantias, uma excludente poderá ser encontrada [21].

Doravante, traz-se a lume as concepções substancialista e formalista, as quais pretendem explicar o que é ou o quê deve ser concebido como delito.

A primeira acepção, também denominada quia peccatum, é radicalmente repudiada pelo sistema garantista, eis que ao acoplar ao delito elementos subjetivos, ligados à moral e à natureza, ceifa qualquer possibilidade de refutação. Sinteticamente, menciona Ferrajoli que "se trata, en efecto, de una técnica punitiva que criminaliza inmediatamente la interioridad o, peor, la identidad subjetiva del reo y que, por ello, tiene un carácter explícitamente discriminatorio, además de antiliberal [22]".

Constata-se, então, que a aludida vertente fere frontalmente o princípio da secularização dando guarida a decisões inquisitoriais motivadas por critérios extraordinários ao fato.

A segunda concepção, também chamada quia prohibitum, determina que o texto legal atenha-se a dados objetivos ao descrever o tipo penal, a fim de propiciar a sua aferição no lastro probatório. Desnudando-se de aspectos morais, a criminalização primária resultaria num suporte racional, atuando como instrumento limitador do Estado e, ao mesmo tempo, desencadeador dos demais axiomas garantistas [23].

Destarte, é manifesta a importância do princípio da legalidade na estruturação da ordem jurídica e no controle interventivo penal. Todavia, cabe esclarecer que o sistema de Ferrajoli não se satisfaz com a diretiva em sentido lato, também denominada mera legalidade, mas sim com o princípio em sentido estrito.

Consoante o princípio da mera legalidade, toda norma vigente implica punição, independentemente de seu conteúdo. Tal visão, extremamente mecanicista, é contrária aos preceitos garantistas, posto que o intérprete, ao não questionar a validade da norma, alimenta o ciclo de desigualdade. Contudo, como fiel defensora da vigência, contribuiu para o direito penal, inserindo ao sistema os corolários da irretroatividade da lei e da ultra-atividade [24].

No que tange ao princípio da estrita legalidade, cumpre ao magistrado, através de uma filtragem axiológica, analisar a validade da norma vigente, a fim de anulá-la ou, então, deixar de aplicá-la quando for considerada inválida [25]. Nesse momento, as concepções substancialistas seriam rechaçadas de plano, haja vista que a diretiva veda inclusive a analogia in malam partem [26]. As formalistas, por seu turno, seriam apontadas como válidas, eis que são internalizadas pela norma regulativa que dispõe sobre o ato.

Desse raciocínio, surge o princípio da regulatividade a fim de vedar as normas constitutivas ou quase-constitutivas que, por serem características de direito penal máximo, apregoam a discriminação e a desigualdade [27]. Por este aspecto, Ferrajoli comenta que no decorrer da história

[...] han cambiado, obviamente, los tipos y las técnicas constitutivas: no trata ya de la previsión directamente constitutiva de determinadas categorías de personas como desviadas (brujas, herejes, judíos, etc.), sino de la relevancia que las leyes cuasi-constitutivas conceden a condiciones personales cuya comprobación queda confiada a normas constitutivas. Los tipos más importantes en los que se explicita este moderno paradigma cuasi-constitutivo son los de la ‘reincidencia’, el ‘vagabundo’ y la ‘peligrosidad’ [28].

Da união dos axiomas da legalidade e da retributividade, tem-se o princípio da proporcionalidade, revelado pela máxima poena debet commensurari delicto. De acordo com o corolário, a resposta penal deve ser proporcional ao crime cometido, tanto na fase da predeterminação quanto nas fases da determinação e pós-determinação da pena.

Na predeterminação, o legislador deve guiar-se por critérios objetivos que propiciem a falseabilidade, como a lesividade e a culpabilidade da ação praticada, para que a pena cominada não seja onerosa ou tão mínima a ponto de não intimidar o indivíduo. Com relação à determinação da pena, cabe ao juiz analisar o caso concreto de acordo com as peculiaridades do ato, como a responsabilidade subjetiva e a extensão do dano, a fim de que a decisão seja fundamentada na sua verificabilidade. No que tange à pós-determinação, esta ocorre na execução da pena, com a autorização de benefícios ou imposição de gravames ao detento. Tal fase revela-se inquisitorial, uma vez que os procedimentos baseiam-se em uma avaliação de disciplina cujos parâmetros são contrários às regras que norteiam o convívio social [29].

O princípio da necessidadeou da economia do direito penal possui uma íntima ligação com o princípio da proporcionalidade, eis que considera a certeza da punição, ainda que branda, um estímulo coercitivo mais eficaz do que previsão de severas penas. Para tanto, visa coibir a violência institucional por meio da minimização das penas e das normas, salvaguardando as garantias fundamentais do agente, pois "[...] un estado que mata, que tortura, que humilla a um ciudadano no sólo pierde cualquier legitimidad, sino que contradice su razón de ser, poniéndose al nivel de los mismos delincuentes [30]".

A quarta equação garantista é o cerne do direito penal. Vinculada ao axioma retro, o princípio da lesividade afasta a incidência normativa e, por conseguinte, repressiva sobre a conduta interna do autor, determinando que somente lesões a bens jurídicos fundamentais sejam consignadas no texto penal [31]. Por este viés, prima pela despenalização de contravenções, delitos bagatelares e de desobediência, deixando a cargo do direito penal somente as penas privativa de liberdade e restritiva de direitos, evitando etiquetamentos desnecessários.

Fundada na laicização do Estado, o princípio da materialidade firma-se na objetividade, devendo ser observado o nexo causal entre a ação externa e o resultado como pressuposto da pena. Desse modo, preconiza ao agente "[...] el derecho de ser uno mismo y a seguir siéndolo – esto es, el derecho a libertad interior y a la propia identidad, malvada, inmoral, o peligrosa [32]", revelando-se antigarantista a punição amparada na imaterialidade de preceitos como reincidência ou delinqüência habitual [33].

Todavia, a exterioridade da ação lesiva não é suficiente, eis que a pena somente poderá ser aplicada se também for comprovada a responsabilidade subjetiva do agente imputável. Nesta esteira surge o princípio da culpabilidadeque, por ser o axioma mais recente nahistória da civilização, ainda encontra problemas, pois além da culpabilidade não ser mensurável, alguns sistemas insistem em recobri-la de critérios ético-biológicos que propiciam o juízo de valor. Atento à questão, o mestre italiano propõe que a culpabilidade seja aferida pelo ato criminoso praticado, eis que no sistema garantista

[...] no tienen sitio ni la categoría peligrosidad ni cualquier otra tipología subjetiva o de autor elaboradas por la criminología antropológica o eticista, tales como la capacidad criminal, la reincidencia, la tendencia a delinquir, la inmoralidad o la deslealtad [34].

Neste sentido, lamenta que as codificações penais ainda prevejam a reincidência, eis que tal instituto "[...] es un modo de ser más que un modo de actuar, que actúa, indebidamente, como un sustitutivo de la culpabilidad en el que queda expresada la actual subjetivización del derecho penal

[35]", constituindo-se, desse modo, numa "[...] homenaje a la equivalencia premoderna entre delito y pecado [...] [36]".

Encerrada a breve abordagem acerca das garantias penais, passa-se às processuais, responsáveis pela instrumentalização do sistema garantista.

3.2 AS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS

Considerando que o objetivo crucial do processo penal é o resguardo da liberdade negativa perseguida pela lesiva teia do sistema penal, Ferrajoli, com vistas a salvaguardar o aludido direito fundamental, insere em seu complexo sistema três axiomas, os quais são expressos pela nulla culpa sine iudicio (A7), pela nullum iudicium sine accusatione (A8),pela nulla accusatio sine probatione (A9) epela nulla probatio sine defensione (A10) [37].

O princípio da jurisdicionariedade se divide nos sentido lato e estrito. Enquanto o lato sustenta que não há "[...] culpa sin juicio (axioma 7) [38]", o estrito abrange todos os demais axiomas em prol do controle punitivo, primando pela presunção da inocência [39].

Neste diapasão, o princípio da estrita jurisdicionariedade assenta que o julgador deve apreciar as provas de acusação e de defesa cunhadas em aspectos verificáveis, evitando assim, que a decisão seja motivada por resquícios inquisitoriais, pois conforme Ferrajoli

[...] el objetivo justificador del proceso penal se identifica con la garantía de las ‘libertades’ de los ciudadanos, a través de la garantía de la ‘verdad’ – una verdad no caída del cielo, sino obtenida mediante pruebas y refutaciones – frente al abuso y el error. Es precisamente esta doble función garantista la que confiere valor político e intelectual a la profesión del juez, exigiendo de él tolerancia para las razones controvertidas, atención y control sobre todas las hipótesis y las contrahipótesis en conflicto, imparcialidad frente a la contienda, prudencia, equilibrio, ponderación y duda como hábito profesional y como estilo intelectual [40].

Por este viés, é manifesta a importância do princípio acusatório que, por assentar-se no contraditório e na imparcialidade do juiz, garante a isonomia entre as partes [41].

O princípio do ônus da prova, por seu turno, que corresponde à equação A9, determina à acusação a tarefa de comprovar a culpa do réu, mediante provas válidas que contenham critérios que possam ser contestados, eis que a inocência, preceito reitor de limitação das regras probatórias, é presumida [42], como assevera in verbis: "la culpa y no la inocencia debe ser demonstrada; y es la prueba de la culpa – y no la de la inocencia, que se presume desde el principio – la que forma el objeto de juicio [43]".

Desse modo, depreende-se que tal diretiva surge como ferramenta crucial no livre convencimento motivado do magistrado, visto que a fundamentação da decisão deve versar somente sobre provas a ele apresentadas, cristalizando, portanto, a incompatibilidade do ativismo probatório, seja ele subsidiário ou supletivo, com a terzietà [44].

Por este viés,

La garantía de la separación, así entendida, representa, por una parte, una condición esencial de la imparcialidad (terzietà) del juez respecto a las partes de la causa, que, […], es la primera de las garantías orgánicas que definen la figura del juez; por otra, un presupuesto de la ‘carga de la imputación y de la prueba’, que pesan sobre la acusación, […] son las primeras garantías procesales del juicio [45].

Nesta linha, sustenta o italiano que a verdade real, por inalcançável, é uma ingenuidad epistemológica das doutrinas jurídicas. O processo penal deve guiar-se, portanto, pela verdade processual, a qual funciona como um princípio regulativo e limitador na jurisdição, consubstanciando-se num modelo formalista que, por sua vez, somente é efetivado com a observância das demais garantias [46].

Atendido o princípio supramencionado, advém o princípio do contraditório que constitui a essência do sistema acusatório. Ausente em modelos inquisitoriais, este último axioma imprime uma tonalidade democrática ao sistema garantista, eis que ao assegurar à defesa a refutação da integralidade das provas condenatórias e dos argumentos explanados pela acusação, garante a paridade de armas, coibindo implicitamente o juízo de valor [47].

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Débora de Souza de Almeida

Doutoranda em Direito Penal pela Universidad Complutense de Madrid – UCM, Espanha. Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Especialista em Ciências Penais pela mesma instituição. Advogada. Autora dos livros “Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico” (em coautoria com o Dr. Luiz Flávio Gomes, pela Editora Saraiva) e “Reincidência criminal: reflexões dogmáticas e criminológicas” (Juruá Editora). Autora de artigos em periódicos especializados em âmbito nacional e internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Débora Souza. A teoria do garantismo penal em questão.: O olhar anti-inquisitorial da axiologia de Luigi Ferrajoli. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2701, 23 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17878. Acesso em: 25 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos