RESUMO: O ordenamento jurídico previu a sanção para o crime de receptação de produto de origem criminosa de forma diferente para quem conhece a sua origem criminosa em relação àquele que deveria conhecer essa procedência. Nesta última hipótese, a pena restou fixada de forma mais grave do que no primeiro caso. Esse contexto provocou a instalação de divergência doutrinária e parcial divergência jurisprudencial, notadamente no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Uma primeira corrente sustenta que a opção de natureza política criminal não pode ser perscrutada pelo Poder Judiciário, de modo que não se mostra inconstitucional. Numa segunda corrente, formou-se o entendimento de que haveria violação ao princípio da proporcionalidade, na medida em que o aspecto subjetivo deveria ter sido melhor equacionado. Com base nesse contexto, o trabalho se propõe a examinar a questão, sem pretensão de esgotar a discussão.
PALAVRAS-CHAVE: Receptação qualificada. Sanção. Princípio da proporcionalidade.
ABSTRACT: The law provided a penalty for the the crime of receiving stolen product of criminal origin differently to those who know their criminal origin in relation to what should know this source. In the latter instance, the penalty remains fixed more serious than the former. This context led to the installation of doctrinal disagreement and partial divergence of case law, notably under the Supreme Court. A first option advocates that the current political criminal can not be scrutinized by the judiciary, so that does not seem unconstitutional. In a second chain, formed the view that would infringe the principle of proportionality, in that the subjective aspect should have been better solved. Within this context, the study aims to examine the matter, without pretension of exhausting the discussion
KEIWORDS:Receiving qualified. Penalty. Principle of proportionality.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A pena da receptação qualificada no Código Penal. 3. Conclusões. 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O crime de receptação, previsto no Código Penal (CP) vigente (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, art. 180) sofreu mudança significativa com o tempo, diante das sucessivas alterações na redação conferida ao dispositivo.
Com o advento da Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996, o crime recebeu nova roupagem, prevendo no seu §1º, a forma qualificada da receptação, com pena de reclusão, de três a oito anos, e multa, diferentemente do que consta do caput que fixa pena de um a quatro anos, e multa.
Ocorre que a forma qualificada prevê a sanção para aqueles que deveriam saber a origem criminosa do produto de forma mais gravosa do que a forma simples, que tipifica a prática daquele que efetivamente conhece a proveniência ilícita do produto.
Além disso, verifica-se que a pena mínima prevista para a receptação qualificada (três anos) é muito superior àquela relativa à pena fixada para a receptação simples (1 ano).
Nesse sentido, após a publicação da referida Lei nº 9.246/96, instalou-se divergência doutrinária e jurisprudencial no âmbito do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Desse modo, este trabalho se propõe a examinar a questão, sem pretensões de exaurir o debate, objetivando, portanto, estimular a discussão sobre o tema.
2. A PENA DA RECEPTAÇÃO QUALIFICADA NO CÓDIGO PENAL
O Código Penal, na sua redação original, apenas penalizava aquele que "adquirir, receber ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro de boa fé a adquira, receba ou oculte" com pena de dois a quatro anos e multa.
Com a promulgação da Lei nº 2.505, de 11 de junho de 1955, previu um tipo simples no caput e uma forma culposa nos §§1º a 4º, sancionando-se com penas de um a quatro anos e um mês a um ano, respectivamente.
A promulgação da Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996, criou-se a figura da receptação qualificada, sancionando a conduta daquele que "adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime
com sanção de três a oito anos e multa" com pena de três a oito anos, superior, portanto, à pena prevista para o caput.
O Superior Tribunal de Justiça recentemente julgou, em sede de Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 772.086 (Relator Min. Jorge Mussi, julgados em 13.10.2010), instante no qual a Terceira Seção fixou o entendimento de que a pena prevista pela receptação qualificada deveria ser mantida, não podendo aplicar a sanção prevista no caput do art. 180 do CP (mais branda) para a prática tipificada no seu §1º.
O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, apresenta-se dividido no tema. De fato, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 443388/SP (relatora Min. Ellen Gracie, Diário de Justiça Eletrônico, 10.09.2009), por sua Segunda Turma, entendeu-se que
"(...) não há proibição de, com base nos critérios e métodos interpretativos, ser alcançada a conclusão acerca da presença do elemento subjetivo representado pelo dolo direto no tipo do § 1°, do art. 180, do Código Penal, não havendo violação ao princípio da reserva absoluta de lei com a conclusão acima referida" e, por isso, não havia que se falar em "violação aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização da pena. Cuida-se de opção político legislativa na apenação com maior severidade aos sujeitos ativos das condutas elencadas na norma penal incriminadora".
Noutra oportunidade, o Min. Celso de Mello, relator do Habeas Corpus nº 92.525/MG decidiu, monocraticamente, pela inconstitucionalidade da norma prevista no §1º do art. 180, do Código Penal. De acordo com Sua Excelência, "o legislador brasileiro - ao cominar pena mais leve a um delito mais grave (CP, art. 180, "caput") e ao punir, com maior severidade, um crime revestido de menor gravidade (CP, art. 180, § 1º) - atuou de modo absolutamente incongruente, com evidente transgressão ao postulado da proporcionalidade". Apesar de não ter havido julgamento definitivo, a questão mostra-se de extrema relevância.
Merece destaque, por todos, que, segundo SANTOS (2008, p. 28), o princípio da proporcionalidade encontra-se previsto implicitamente no caput do art. 5º da Constituição, sendo, portanto norma de obrigatória observância.
Há, pois, duas correntes sobre o assunto. A primeira, sustenta que a pena atribuída pelo legislador à receptação qualificada estaria inserida no âmbito da opção política e, portanto, insuscetível de exame pelo Poder Judiciário.
A segunda defende que a incongruência entre a sanção aplicada e a ação que se deseja reprimir, uma vez que a conduta de uma pessoa que devia saber a origem criminosa do produto receptado não poderia ser comparada, nem muito menos apenada de forma mais grave, do que uma pessoa que, efetivamente, sabe da sua origem criminosa. Nesse aspecto reside o núcleo da divergência.
A doutrina igualmente se apresenta dividida.
NUCCI (2008, p 820), adepto de uma primeira corrente doutrinária, esclarece que:
"Na essência, a figura do §1º é, sem dúvida, uma receptação - dar abrigo a produto de crime -, embora com algumas modificações estruturais. Portanto, a simples introdução de condutas novas aliás típicas do comércio clandestino de automóveis, não tem o condão de romper o objetivo do legislador de qualificar a receptação, alterando as penas mínimas e máxima, que saltaram da faixa de 1 a 4 anos para 3 a 8 anos."
Esta primeira corrente também possui como defensor GRECO (2006, p. 379) que entende que a modalidade qualificada teve por objetivo punir comerciantes e industriais no exercício de profissão, sendo válida e legítima.
Já FRANCO (2007, p. 918), defensor da segunda corrente, sustenta que:
"Ora, tendo-se por diretriz o princípio da proporcionalidade, não há como admitir, sob o enfoque constitucional, que o legislador ordinário estabeleça um preceito sancionatório mais gravoso que a receptação qualificada quando o agente atua com dolo eventual e mantenha, para a receptação do caput do art. 180, um comando sancionador sensivelmente mais brando quando, no caso, o autor pratica o fato criminoso com dolo direto. As duas dimensões de subjetividade dolo direto e dolo eventual podem acarretar reações penais iguais, ou até mesmo, reações penais menos rigorosas em relação ao dolo eventual. O que não se pode reconhecer é que a ação praticada com dolo eventual seja três vezes mais grave - é o mínimo legal que detecta o entendimento do legislador sobre a gravidade do fato criminoso - do que quase a mesma atividade delituosa, executada com dolo direto. Aí, o legislador penal afrontou, com uma clareza solar, o princípio da proporcionalidade."
Este último entendimento é compartilhado, dentre outros, por DELMANTO (2007, p. 565), BITTENCOURT (2002, p. 792) e JESUS (1998, p. 491). Este doutrinador, após examinar as possíveis orientações, deduz uma interessante solução para o conflito (que posteriormente veio a ser adotada monocraticamente pelo Ministro Celso de Mello):
"Preferimos a quinta orientação, para nós a menos pior, tendo em vista que a lei nova veio para confundir, não para esclarecer: o preceito secundário do §1º deve ser desconsiderado, uma vez que ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização legal da pena. Realmente, nos termos das novas redações, literalmente interpretadas, se o comerciante devia saber da proveniência ilícita do objeto material, a pena é de reclusão, de 3 a 8 anos (§1º); se sabia, só pode subsistir o caput, com reclusão de 1 a 4 anos. A imposição de pena maior ao fato de menor gravidade é inconstitucional, desrespeitando os princípios da harmonia e da proporcionalidade."
No campo estritamente positivo, no âmbito do Código Penal, verifica-se que, normalmente, o legislador comina a pena levando-se em consideração o aspecto tanto relacionado ao conhecimento efetivo (sebe) ou potencial (deveria saber). Isso pode ser verificado no caso dos arts. 130 (perigo de contágio venéreo), 174 (induzimento á especulação), 245 (entrega de filho menor a pessoa inidônea) e 316, §1º (excesso de exação), todos do CP.
Em todas essas hipóteses, a sanção é idêntica, valorando-se negativamente a conduta, considerando-se o dolo eventual ou direto. A política criminal, nesse caso, direcionou-se para sancionamento com igual pena para cada um dos aspectos subjetivos envolvidos.
Na hipótese do §1º do art. 180, do CP, por seu turno, a conduta de quem devia saber que o produto é oriundo de prática criminosa é mais rigorosamente reprimido (três a oito anos de reclusão e multa) do que aquela representativa de quem efetivamente conhece a procedência do produto adquirido (um a quatro anos e multa).
Essa fixação de pena não parece se conduzir de acordo com o princípio da proporcionalidade, como reconhecido pelo Ministro Celso de Mello (HC 92.525/MG). Quem deveria saber da origem criminosa não necessariamente o sabe de onde proveio o produto adquirido. Os dois aspectos subjetivos não se confundem. É o caso, por exemplo, de um comerciante de veículos que recebe um automóvel com preço inferior ao praticado no mercado.
A depender da variação do preço, é possível que o comerciante não identifique sua origem criminosa. Ademais, a comercialização de bens por preços inferiores ao mercado pode ter outra razão, como, por exemplo, a necessidade de viagem do vendedor ou a dificuldade financeira por ele experimentada.
A norma penal, contudo, com presunção de culpabilidade, imputou àquele que deveria saber a origem ilícita do produto uma pena mais grave do que aquele que reconhecidamente conhece a sua procedência ilícita.
Com relação ao argumento de que a fixação da pena decorreria da política criminal adotada pelo legislador e, assim, não poderia ser aferida pelo Poder Judiciário por se situar no campo dos espaços vazios de jurisdição, a argumentação, a despeito de respeitável, merece considerações.
Não se nega que há uma bem delimitada divisão de funções estatais. Contudo, o Poder Judiciário não deve desconsiderar que o princípio da proporcionalidade tem assento constitucional, ainda que implicitamente. Com isso, percebe-se que a supremacia da Constituição prevalece sobre as disposições infraconstitucionais, de modo que se mostra razoável a possibilidade de limitação pelo Poder Judiciário da pena abstratamente prevista pelo Poder Legislativo.
Há, pois, possibilidade de duas soluções: a) o reconhecimento de atipicidade da prática prevista no §1º do art. 180 do Código Penal; e b) reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo e afastamento do preceito secundário do §1º do art. 180 do CP e aplicação do preceito secundário previsto no caput do art. 180 do CP, conforme entendimento de JESUS (1998, p. 491).
Evidentemente, a primeira solução não merece acolhimento. A previsão de sancionamento de receptação qualificada se coaduna como importante forma de repressão de modalidade de crime contra o patrimônio.
A segunda opção é, pois, a que mais se ajusta ao princípio constitucional da proporcionalidade, adequando o preceito contido no caput tanto à situação de quem "sabe" quanto de quem "devia saber" a proveniência ilícita do produto adquirido. Estar-se-ia diante de uma sentença normativa, na espécie substitutiva, conforme classificação proposta por SAMPAIO (2001, p. 171).
3. CONCLUSÕES
Em vários dispositivos do Código Penal, há sancionamento equivalente entre a conduta derivada do conhecimento efetivo e aquele formada pelo conhecimento potencial do ilícito. No primeiro caso, o Código se utiliza do termo "sabe", ao passo que na segunda hipótese, a norma se vale da expressão "devia saber".
Após a Lei nº 9.246/96, que alterou o §1º do art. 180 do Código Penal, criou-se distinção entre as condutas de receptação de quem sabe a origem criminosa do produto adquirido e daquele que devia saber dessa procedência ilícita.
Em virtude dessa alteração legislativa, formou-se divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da previsão de pena em abstrato em relação à prática do crime de receptação qualificada, preconizada no art. 180, §1º, do Código Penal, com a redação ditada pela Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996.
Nesse sentido, duas correntes bem delimitadas se criaram: a primeira pela defesa da penalidade mais grave; a segunda, pela inconstitucionalidade do dispositivo, pela afronta ao princípio da proporcionalidade.
A divergência também se encontra instalada tanto no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, o que dificulta o estabelecimento uniforme sobre assunto importante, notadamente diante da habitual penalidade impostas em função de incremento de desmanches de veículos.
A despeito de ser preponderante a primeira corrente doutrinária no âmbito jurisprudencial, cremos que o dispositivo previsto no art. 180, §1º, do CP revela-se inconstitucional, na medida em que firma uma presunção de conhecimento que não se ajusta necessariamente ao caso concreto, não havendo margem para um adequado sancionamento.
Espera-se que o legislador, sensível ao problema, consiga definir, em caráter definitivo a adequada sanção pela receptação por parte de quem "devia saber" a origem ilícita do produto adquirido, concretizando o ideal de justiça previsto na Constituição (art. 3º, inciso I), com atendimento ao princípio da proporcionalidade.
4. REFERÊNCIAS
1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.
2. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial, 31.12.1940.
3. ______. Lei nº 2.505, de 11 de junho de 1955. Modifica o artigo 180 e seu parágrafo terceiro do Del 2.848, de 07.12.1940 (Código Penal) e artigo 208 do Del 6.227, de 24.01.1944 (Código Penal Militar). Diário Oficial, 16.06.1955.
4. ______. Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996. Altera dispositivos do Decreto-lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal - Parte Especial Diário Oficial, 26.12.1996.
5. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 772.086 (Relator Min. Jorge Mussi, julgado em 13.10.2010.
6. ______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 92.525/MG. Relator Min. Celso de Mello. Diário de Justiça Eletrônico, 04.04.2008.
7. FRANCO. Alberto Silva. Código Penal e sua Interpretação. Doutrina e Jurisprudência. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
8. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Parte Especial. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1998.
9. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. Vol. III. Niterói/RJ: Impetus, 2006.
10. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Interpretado. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
11. SAMPAIO, José Adércio Leite, CRUZ, Álvaro ricardo de Souza (Coord). Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte/MG: Del Rey, 2001.
12. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.