2. A perspectiva do direito brasileiro
O Código Civil Brasileiro de 1916 estabeleceu como regra a responsabilidade subjetiva, a qual está fortemente marcada pela idéia de culpa, conforme se pode inferir pela leitura do seu artigo 159: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano.
Poucos eram os dispositivos e as leis extravagantes que tratavam sobre a responsabilidade objectiva, a exemplo do artigo 1529 do antigo Código Civil e o artigo 26 do Decreto n° 2.681, de 7 de dezembro de 1912. O primeiro criava o dever jurídico de reparar para aquele que, independentemente de culpa, habitava uma casa, ou parte dela, pelo dano proveniente das coisas que dela caíssem ou fossem lançadas em lugar indevido. Já o segundo dispunha que as estradas de ferro seriam responsáveis pelos danos que a exploração de suas linhas causasse aos proprietários marginais.
A limitação que esse tipo de responsabilidade comportava era cada vez mais evidente, especialmente quando se acentuava o número de actividades perigosas decorrente do vasto desenvolvimento tecnológico da época, deixando muitas vezes ao desamparo as vítimas. Apesar da ausência de texto expresso na legislação civil, a jurisprudência acolhia o risco como fundamento da responsabilidade nessas situações:
Dentro dos estreitos limites de uma codificação subjetivista, como o Código Civil de 1916, poderão as vítimas ficar ao desamparo, em alguns casos, se a jurisprudência não completar o quadro protecionista da responsabilidade civil ante a realidade de novas situações de perigo que possam surgir, a par das já consagradas, como a da responsabilidade dos comitentes e das pessoas jurídicas de direito público. Nossos repertórios de jurisprudência estão plenos de questões sobre responsabilidade civil, em que se evidencia a problemática do perigo, principalmente quanto a acidentes com veículos automotores, destacando-se as que vêm acatando de frente a objetividade da responsabilidade do Estado nesse campo. Relativamente a atividades perigosas, vem a jurisprudência, mesmo sem texto expresso, acolhendo o risco como fundamento da responsabilidade, como ocorre na área de transporte (BITTAR, 1984, p. 95).
A teoria do risco, criada em torno da idéia de responsabilidade civil objetiva, ganhou grande espaço, no cenário jurídico mundial, em decorrência do forte desenvolvimento tecnológico que marcou todo o início do século XX, especialmente no domínio dos acidentes de trabalho, onde o maquinismo era expressão da revolução tecnológica da época e os operários não possuiam qualquer preparação para lidar com tais máquinas. Diante dos inúmeros acidentes que diariamente ocorriam e da grande dificuldade de se provar a culpa da entidade patronal, as legislações modernas passaram a colocar em relevo essa espécie de responsabilidade civil (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 127 e 128).
A teoria do risco se inspira na idéia de que o elemento culpa é desnecessário para caracterizar a responsabilidade. A obrigação de indenizar não se apóia em qualquer elemento subjetivo, de indagação sobre o comportamento do agente causador do dano, mas se fixa no elemento meramente objetivo, representado pela relação de causalidade entre o ato causador do dano e este. Savatier define a responsabilidade, baseada no risco, como aquela de reparar o prejuízo causado por uma atividade exercida no interesse do agente e sob seu controle (RODRIGUES, 2003, p. 156)
Enquanto a culpa é vinculada ao homem, o risco é ligado ao serviço, à empresa, à coisa, ao aparelhamento. A culpa é pessoal, subjetiva; pressupõe o complexo de operações do espírito humano, de ações e reações, de iniciativas e inibições, de providências e inércias. O risco ultrapassa o círculo das possibilidades humanas para filiar-se ao engenho, à máquina, à coisa, pelo caráter impessoal e o objetivo que o caracteriza (CRETELLA JUNIOR, 1991, p. 1019).
No Brasil, inúmeras leis extravagantes passaram a dispor sobre essas idéias, como a já referida lei das estradas de ferro, a legislação sobre acidentes de trabalho (lei 5.316/67, Decreto 61.784/67 e lei 8.213/91), as leis sobre seguro obrigatório de acidentes de veículos (lei 6.194/74 e lei 8.441/92), a lei sobre o meio ambiente (lei 6.938/81) e o Código de Defesa do Consumidor, que consagrou a responsabilidade objetiva do fornecedor do produto ou do serviço pelos danos causados aos consumidores. Convém também ressaltar que a própria Constituição Federal de 1988 estabeleceu a responsabilidade objetiva do Estado, conforme dispõe o seu artigo 37, § 6°.
O Novo Código Civil de 2002, constatando todos esses avanços legislativos em torno da idéia de reparação sem indagação de culpa, previu, de forma expressa, a responsabilidade civil objetiva, conforme se pode inferir através da leitura do seu artigo 927: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Diante disto, podemos dizer que a responsabilidade objetiva estará configurada em duas hipóteses: 1) nos casos especificados em lei; 2) e quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Quanto à primeira, não há maiores dificuldades, eis que o novo diploma legal apenas está mencionando todas as disposições especiais que se referem expressamente sobre espécie de responsabilidade civil. Em relação à segunda, convém ter alguma atenção, pois consagrou a teoria do risco na sua forma mais pura, gerando algumas discussões em torno do seu cabimento.
O legislador não atribuiu ao significado de atividade de risco um conceito determinado, ao contrário, estabeleceu-o de forma bastante genérica, ampliando as situações abrangidas por tal espécie de responsabilidade civil e abrindo espaço para o arbítrio do Poder Judiciário, que irá analisar cada caso concreto em conformidade não apenas com o direito positivo mas também com a equidade. [05]
A expressão por sua natureza implicar risco, disposta na norma supracitada, foi utilizada de forma vaga, sem um significado concreto. A questão consiste em saber se o legislador estava a referir-se àquelas atividades essencialmente perigosas, cujo risco faz parte da sua própria natureza. De acordo com Cavalieri Filho, deve-se fazer uma distinção entre risco inerente e risco adquirido, conceitos já desenvolvidos no domínio do Direito do Consumidor.
Para este autor, há riscos que são inerentes a determinados serviços, intrínsecos à sua natureza e ao seu modo de funcionamento, como os serviços médico-hospitalares, por exemplo. Essas atividades, por sí só, representam riscos que não podem ser impedidos, ainda que realizados com a técnica e segurança adequadas. Como o risco inerente está relacionado com diversos serviços essenciais à vida humana, a solução é controlar a sua execução. Assim, apenas aquelas atividades executadas com falta de segurança e sem a técnica adequada acarretariam responsabilidade para os seus executores. O risco adquirido está configurado quando bens e serviços não apresentam riscos superiores àqueles genuinamente esperados, mas tornam-se perigosos por apresentarem algum vício. Caracteriza-se, portanto, pela imprevisibilidade e anormalidade.
O bom senso indica que a obrigação de indenizar não decorre da simples natureza da atividade, principalmente quando há um risco inerente à mesma. Apenas os danos advindos de uma perigosidade adquirida são capazes de dar ensejo a um dever de reparar (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 156).
Para a configuração da atividade de risco não é necessário que ela seja propriamente ilícita, bastando apenas que seja capaz, por sua natureza, de gerar algum dano a terceiro. Por atividade normalmente desenvolvida, grande parte da doutrina entende que se trata de uma atividade costumeira, habitual, organizada de forma profissional, visando fins económicos. Ademais, essa atividade de risco deve gerar, para o agente infrator, determinado proveito, normalmente, de natureza econômica.
Quanto a este último aspecto, posiciona-se Sílvio de Salvo Venosa (2005, p. 13): A teoria do risco aparece na história do Direito, portanto, com base no exercício de uma atividade, dentro da idéia de que quem exerce determinada atividade e tira proveito direto ou indireto dela responde pelos danos que ela causar, independentemente de culpa sua ou de prepostos. O princípio da responsabilidade sem culpa ancora-se em um princípio de equidade: quem aufere os cômodos de uma situação deve também suportar os incômodos. O exercício de uma atividade que possa representar um risco obriga por si só a indenizar os danos causados por ela.
Normalmente, a atividade de risco é conceituada pela doutrina como aquela habitualmente desenvolvida com fins lucrativos, que, pela sua própria natureza, tem potencialidade de gerar danos na esfera jurídica de terceiro. Pode ser chamada de atividade risco-proveito, uma vez que o sujeito obtém determinado proveito econômico através da prática dessa atividade potencialmente danosa.
A teoria do risco-proveito determina a obrigação de indenizar sempre que o agente causador do dano retirar algum proveito ou vantagem na utilização de coisas ou no exercício de atividades perigosas. A grande questão aqui se refere ao significado de proveito, que poderá ter o sentido de proveito econômico ou de qualquer outro tipo de proveito.
Se proveito tem o sentido de lucro, vantagem econômica, a responsabilidade fundada no risco-proveito ficará restrita aos comerciantes e industriais, não sendo aplicável aos casos em que a coisa causadora do dano não é fonte de ganho. Ademais, a vítima teria o ônus de provar a obtenção desse proveito, o que importaria o retorno ao complexo problema da prova (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 129).
Além do risco-proveito, existem outras modalidades de risco citadas pelos doutrinadores brasileiros, como o risco integral, o risco profissional, o risco excepcional e o risco criado.
Na teoria do risco integral, o dever de indenizar se justifica tão-somente pela presença do dano, ainda que presentes a culpa exclusiva da vítima, facto de terceiro, caso fortuito ou força maior.
A teoria do risco profissional surgiu para amparar os empregados por acidentes ocorridos no âmbito do ambiente de trabalho, independentemente de culpa do empregador. Nesse caso, a obrigação de indenizar surge sempre que o dano resulta da atividade ou profissão do lesado.
Pela teoria do risco excepcional, haverá dever de indenizar sempre que o dano seja resultado de um risco não relacionado com a atividade habitual da vítima, como são os casos de rede elétrica de alta tensão e a exploração de materiais radioativos.
Por fim, a teoria do risco criado determina que todo aquele que cria um perigo em razão da sua atividade ou profissão, responde pelos danos que causar, independentemente de retirar um proveito ou vantagem dessa atividade.
O que se encara é a atividade em si mesma, independentemente do resultado bom ou mau que dela advenha para o agente. A teoria do risco criado importa ampliação do conceito do risco-proveito. Aumenta os encargos do agente; é, porém, mais equitativa para a vítima, que não tem que provar que o dano resultou de uma vantagem ou de um benefício obtido pelo causador do dano. Deve este assumir as consequências de sua atividade (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 130).
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona entendem que o disposto no parágrafo único do art. 927 do CC se refere ao denominado risco-proveito, o que basta para eliminar desta previsão os acidentes de trânsito envolvendo o comum condutor, isto é, aquele que faz da condução um mero meio de deslocação, e não a sua atividade profissional.
Segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2006, p. 156): Em nosso entendimento, o exercício dessa atividade de risco pressupõe ainda a busca de um determinado proveito, em geral de natureza econômica, que surge como decorrência da própria atividade potencialmente danosa (risco-proveito) (...) Isto bastaria, em nosso entendimento, para isentar da regra, sob análise, os condutores de veículo, uma vez que, embora aufiram proveito, este não é decorrência de uma atividade previamente aparelhada para a produção desse benefício. Além do que, o direito à circulação em avenidas e rodovias é imperativo da própria ordem constitucional, que nos garante o direito de ir e vir.
Nos casos dos motoristas de táxi, profissionais que atuam com fins claramente lucrativos, estes autores entendem que a responsabilidade é objetiva, uma vez que a atividade por eles exercida traz um risco embutido, sendo os danos daí decorrentes potencialmente esperados em função da probabilidade estatística de sua ocorrência.
Notas
- Entre as decisões que defendiam a mencionada presunção de culpa: Acórdão do STJ de 28 de Maio de 1974, Acórdão do STJ de 22 de Julho de 1975, Acórdão do STJ de 3 de Fevereiro de 1976 e Acórdão do STJ de 4 de Maio de 1976.
- Por direção efetiva do veículo entende-se o poder de fato que a pessoa tem sobre o veículo, independentemente de ser ou não titular de algum direito sobre o mesmo. Assim, possuem a direção efetiva não só os detentores legítimos, como o proprietário, o usufrutuário, o locatário e o comodatário, mas também o ladrão que roubou ou furtou o veículo e o denominado condutor abusivo. A expressão o utilizar no seu próprio interesse possui como fim afastar a responsabilidade objetiva daqueles sujeitos que utilizam o veículo não no seu próprio interesse, mas no interesse de outrem. É o que acontece com o comissário, que conduz o veículo por conta ou às ordens do comitente. Compete a este último, portanto, responder objetivamente pelos prejuízos causados.
- Mais tarde, o Assento de 14 de Abril de 1983 veio estatuir a aplicação da presunção de culpa do art. 503.º, nº 3, primeira parte, como aplicável na relação entre o lesante e os titulares do direito à indemnização.
- O Assento nº 3/94, de 26 de Janeiro, estabele que "a responsabilidade por culpa presumida do comissário, estatabelecida no art. 503.º, nº 3, primeira parte do Código Civil, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no art. 506.º, nº 1, do mesmo código". Quanto ao assento de 2 de março de 1994, determinou que "a responsabilidade por culpa presumida do comissário, nos termos do art. 503.º, nº 3, do Código Civil, não tem os limites fixados no nº 1 do art. 508.º do mesmo diploma".
- Cavalieri Filho analisa o sentido utilizado
pelo Código Civil para a palavra atividade: Não nos parece que tenha
sido no sentido de ação ou omissão, porque essas palavras foram utilizadas no
art. 186 na definição do ato ilícito. Vale dizer: para configurar a
responsabilidade subjetiva (que normalmente decorre da conduta pessoal,
individual), o Código se valeu das palavras "ação" ou
"omissão". Agora, quando quis configurar a responsabilidade objetiva
em uma cláusula geral, valeu-se da palavra "atividade". Isso, a toda
evidência, faz sentido. Aqui não se tem em conta a conduta individual,
isolada, mas sim a atividade como conduta reiterada, habitualmente exercida,
organizada de forma profissional ou empresarial para realizar fins econômicos.
Reforça essa conclusão o fato de que a doutrina e a própria lei utilizam a
palavra "atividade" para designar serviços. No Direito
Administrativo, por exemplo, define-se serviço público com o emprego da
palavra atividade (...) No plano da lei – o que é ainda mais eloquente -, o
Código de Defesa do Consumidor, no § 2º do seu art. 3º, dispõe:
"Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo
[...]". Logo não há como afastar a ideia, já consagrada pela lei e pela
doutrina, de que atividade indica serviço, ou seja, atuação reiterada,
habitual, organizada profissional ou empresarialmente para realizar fins
económicos. Comenta, por fim, que o objetivo do legislador, à época de
elaboração do Projeto do novo Código Civil de 2002, na década de 1970, era
abranger o maior número de serviços possível, como o transporte, a luz, o
gás, a saúde, os bancos, os seguros, a telefonia, etc. Apesar de essas
atividades serem organizadas de forma empresarial, a responsabilidade dos seus
exploradores era subjetiva, cabendo ao seus utilizadores arcarem com os seus
riscos. Reforça essa ideia o fato de que o Código do Consumidor (Lei 8078/90),
que trata da matéria de forma expressa no seu art. 14, estabelecendo a
responsabilidade pelo risco a todos os fornecedores de serviços, ainda não ter
sido elaborado quando da criação daquele projeto (CAVALIERI FILHO, 2007, p.
155 e 156).
REFERÊNCIAS BLIOGRÁFICAS:
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BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros, 2007.
CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1991.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2006.
MONTEIRO, Jorge Sinde. Acidentes de Viação: Anotação ao Assento nº1/80". Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LVII, 1981.
PORTUGAL. Código Civil Português. Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966.
RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O ónus da prova da culpa da responsabilidade civil por acidente de viação. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Teixeira Ribeiro, 1979.
RODRIGUES, Silvio. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
SERRA, Adriano Vaz. Anotação ao Acórdão do STJ de 17 de Outubro de 1978. Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3641, p. 118 e segs, 1981a.
______ Anotações ao Assento nº 1/80. Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3667, p. 158 e segs e 167 e segs, 1981b.
______ Anotação ao Acórdão do STJ de 19 de Outubro de 1978. Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3642, p. 135 e segs, 1981.
VARELA, João de Matos Antunes; LIMA, Fernando Andrade Pires. Código Civil Anotado. vol. I, Coimbra, 1987.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2005.