3. DO MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL
3.1. ESCORÇO HISTÓRICO
Conforme afirma Alfredo Buzaid: "o mandado de segurança é uma criação do direito brasileiro" [24]. Mas não se quer com isso dizer que o mandamus surgiu do nada, a partir de elucubrações de juristas reunidos em um gabinete de trabalho. O remédio heróico, tal como a maioria dos direitos, nasceu de uma evolução histórica e social, mediante um processo dialético de convivência dos homens.
As origens do mandado de segurança são controvertidas.
Afirma-se que remonta às chamadas seguranças reais¸ invocando as Ordenações Manuelinas e Filipinas. Tal instituto era invocado quando alguém temia ou se sentia ameaçado por outrem.
Todavia, ante o caráter absoluto da monarquia lusitana, o Brasil só começou a vislumbrar alguma proteção efetiva em face de abusos e ameaças por parte da Administração a partir da proclamação da República, com a ampliação do cabimento do habeas corpus.
Foi a chamada Teoria Brasileira do Habeas Corpus. Em face dos reclamos sociais em busca da proteção dos administrados, expandiu-se o writ para além da simples proteção do direito de liberdade de locomoção. Por ele se asseguravam, outrossim, todos os demais direitos individuais que eventualmente fossem violados pelo Estado, desvirtuando, assim, as origens históricas que remontam ao direito inglês e norte-americano.
A reforma constitucional de 1926, todavia, buscou restringir, novamente, o campo de atuação do habeas corpus ao seu verdadeiro significado histórico, qual seja, a defesa do direito de liberdade de locomoção.
Daí o esforço dos juristas para criar um instituto mais amplo, que protegesse o cidadão, de forma mais completa, do poder estatal. Muitos projetos legais foram propostos a partir de então.
Eis que, na Constituição de 1934, inseriu-se, em seu artigo 133, §33, sob a rubrica de "garantias de direitos", dispositivo de seguinte teor:
Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do hábeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado de segurança não prejudica as ações petitórias competentes.
O golpe de 1937, porém, fez com que o instituto, de cunho eminentemente democrático, tivesse curta duração. Omissa a constituição outorgada, somente o Decreto-lei n.º 6, de 16/11/1937, previa o mandado de segurança, limitando-o, entretanto, em sua extensão e efeitos.
Restabelecendo o Brasil o regime democrático, a Constituição de 1946 incluiu-o, novamente, entre as garantias dos direitos individuais.
A Constituição de 1967, em seu artigo 153, §21, então, prescrevia:
Conceder-se-á mandado de segurança, para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder.
O instituto foi regulado pela Lei n.º 1.533/51, alterada pelas Leis n.º 2.770/56, 4.166/92, 4.348/64, 4.357/64, 4.862/65, 5.021/66, 6.014/73, 6.071/74, Lei Complementar n.º 35/79 e Lei n.º 6.978/82. Atualmente, está previsto na Lei 12.016/2009.
Somente após esse longo desenvolvimento histórico e legislativo que chegamos ao atual mandado de segurança individual, previsto no artigo 5.º, LXIX, de nossa Carta Magna, cujo teor já foi transcrito no início deste trabalho, já na sua introdução.
3.2. O MANDADO DE SEGURANÇA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A Constituição de 1988 inovou, no particular, ao instituir o mandado de segurança coletivo, que pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados. Vale esse registro, em que pese o tema da presente monografia versar especificamente sobre o mandado de segurança individual.
O seu objeto continua sendo a correção de ato comissivo ou omissivo, marcado pela ilegalidade ou abuso de poder, quando o responsável for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público. Acresça-se que o direito protegido pelo mandamus deve apresentar-se líquido e certo e não ser amparado por habeas corpus ou habeas data.
Tais pressupostos constitucionais vão ser mais detidamente analisados nos itens seguintes.
Por ora, diga-se somente que, como qualquer dispositivo legal, o já mencionado inciso LXIX, do artigo 5.º de nossa Carta Magna, deve ser interpretado sistematicamente, conjugando-o com os demais preceitos constantes em nosso ordenamento jurídico.
Destarte, lembre-se do estabelecido no inciso XXXV, do mesmo artigo de nossa Constituição, o qual estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (grifo nosso). Deflui-se de tal dispositivo que não só o ato omissivo ou comissivo ilegal ou com abuso de poder será protegido pelo mandamus. A simples ameaça, desde que séria e plausível, é protegida pelo writ. Daí o chamado mandado de segurança preventivo.
3.3. NATUREZA JURÍDICA
3.3.1. Negativa do mandado de segurança como ação
Diverge a doutrina acerca da natureza jurídica do mandado de segurança. Tal discordância advém, principalmente, das origens históricas do instituto, ante a diversidade de sistemática dos vários projetos legislativos, bem como do caráter excepcional que lhe quis dar o primeiro texto legal regulador da matéria.
Nos primórdios de sua aplicação pelos tribunais pátrios, houve quem dissesse que o mandamus não seria ação, e sim causa, ou remédio de natureza especial.
Ensina o professor Celso Agrícola Barbi que o Ministro Carvalho Mourão, em voto proferido no Supremo Tribunal Federal, registrou que o mandado de segurança não é causa nem ação, e sim medida acautelatória, remédio com finalidade preventiva principalmente, embora sirva também para reposição das coisas no estado anterior, até serem decididas pela ação competente. [25]
Tal posição, a qual, repita-se, originou-se da extrema confusão legislativa histórica do mandado de segurança, já foi superada, preponderando, hoje, a opinião que o considera como ação.
3.3.2. Mandado de Segurança como ação constitucional - enquadramento
Ultrapassada a discussão acerca da natureza do mandamus como ação, divergência ainda há quanto ao seu enquadramento, ou melhor, a que espécie de ação pertence o instituto.
Tomando por base, novamente, os confiáveis ensinamentos de Celso Agrícola Barbi, Sebastião de Souza considera o mandado de segurança como ação constitutiva; Lopes da Costa e outros afirmam ser ação mandamental; Temístocles Cavalcanti o considera executório; Castro Nunes, aproximando-o das ações prejudiciais e das declaratórias, conclui afirmando ser mesmo executório.
Diverge, outrossim, a doutrina ao tentar enquadrá-lo em uma das formas de atuação da lei no processo, que, como sabido, pode assumir três – cognição, execução e conservação – correspondentes, respectivamente, às chamadas ações de conhecimento, execução e cautelar.
Entretanto, como adverte o próprio professor citado, in verbis:
A nosso ver, o mandado de segurança não pode, como figura geral, ser classificado, com exclusividade, em qualquer dos três tipos de ação que se caracterizam pela natureza da sentença pleiteada. Em cada caso concreto é que se poderá dizer se a ação ajuizada é condenatória, constitutiva ou declaratória. O que se pode afirmar, com base apenas na observação do movimento forense, é a predominância dos casos em que a ação tem caráter constitutivo. [26]
Tal posição é compartilhada por Alfredo Buzaid, conforme se deflui de sua afirmação:
Embora, considerado genericamente, o mandado de segurança tenha por escopo invalidar ato de autoridade eivado de ilegalidade ou abuso de poder, quando submetido à apreciação judicial cabe ao impetrante particularizar a ofensa ao direito líquido e certo, postulando de modo específico a sua tutela. Semelhante pedido é que define a natureza da ação, dando-lhe caráter declaratório, constitutivo ou condenatório. Antes da propositura da ação parece difícil senão impossível generalizar um conceito de mandado de segurança abrangente de todos os possíveis casos." [27]
3.3.3. Mandado de Segurança como procedimento especial
Antes de se exporem os argumentos em prol da tese de que o mandado de segurança nada mais é do que um procedimento especial, registre-se o que vem a ser a natureza jurídica de um instituto jurídico.
Para tanto, invoque-se, mais uma vez, os ensinamentos do Prof. Galdino, que assim defende:
Natureza jurídica é o ser, a essência do instituto ante a ciência do direito. [28]
Logo, quando se indaga acerca da natureza jurídica de um instituto quer-se saber o que ele, em essência, é. Assim, para alcançar-se a natureza jurídica é necessário enquadrar o instituto objeto de estudo nos diversos ramos e classes em que o estudo do direito é organizado. Dizer qual a natureza jurídica seria, dessarte, o mesmo que classificar o instituto jurídico dentro das diversas divisões em que a ciência do direito é sistematizada, alcançando, com isso, a essência do instituto analisado.
Nesse ensejo, dizer que o mandado de segurança é um tipo de ação em nada resolve o problema da natureza jurídica do mesmo. Afinal, conforme sabido, ação é, em suma, o ato de levar a juízo uma pretensão. Assim, o ato de impetrar o mandamus é, de fato, uma ação. Mas tal afirmação, repita-se, em nada ajuda para alcançar a essência do mesmo – a sua natureza jurídica.
Buscando auxílio nos seguros e sempre esclarecedores ensinamentos do saudoso Miguel Seabra Fagundes, veja-se como este conceitua o mandado de segurança, in verbis:
O mandado de segurança é uma ação civil de rito sumariíssimo (...). O mandado é, portanto, uma ação particularmente destinada pelo legislador a remover as situações contenciosas formadas pela negação de direito líquido e certo, por ato de qualquer agente do Poder Público, praticado com ilegalidade ou abuso de poder. [29]
O mandado de segurança é, portanto, um tipo de procedimento específico criado pelo legislador para amparar os jurisdicionados quando a situação se subsumir aos pressupostos específicos previstos na Constituição Federal. O que o diferencia, nesse sentido, dos demais procedimentos judiciais é seu rito sui generis, e nada mais.
E qual o nome se dá, juridicamente, a um tipo específico de procedimento, aplicável em detrimento das normas comuns do procedimento ordinário, quando lhes contraria? Responda-se: chama-se procedimento especial.
Eis, portanto, a natureza jurídica do mandado de segurança. Ele nada mais é do que um tipo de procedimento especial previsto pelo legislador quando a ilegalidade ou abuso de poder for qualificado pelas exigências legais para concessão do mandamus. O que o diferencia do procedimento ordinário, o qual, ressalte-se, é aplicável naquilo que não contrariar as normas específicas do mesmo, é o seu rito particular, o seu procedimento especial.
3.4. PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS ESPECÍFICOS
3.4.1. Ilegalidade e abuso de poder
O legislador constituinte de 1946 suprimiu a exigência de que, para concessão do mandado de segurança, o ato da autoridade deveria ser manifestamente ilegal. Limitou-se a falar: "seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder". [30]O alcance dessa supressão é imenso, quer na aplicação prática do instituto quer em sua configuração teórica.
Antes de 1946 não bastava a ilegalidade para legitimar a impetração do writ, exigia-se, ainda, que a ilegalidade fosse de um tipo especial, de clara e fácil percepção. Com a supressão do qualificativo "manifestamente" do texto constitucional, a ilegalidade, pressuposto do mandado de segurança, passou a ser a ordinária, enquanto afronta à ordem jurídica.
Nesse sentido, ensina o professor BARBI:
A ilegalidade exigida hoje para concessão do mandado de segurança não tem caráter especial: é a mesma ilegalidade necessária à proteção do direito pelas vias processuais. O mesmo podemos dizer quanto ao abuso de poder que, no expressivo dizer de Seabra Fagundes, é espécie do gênero ilegalidade. [31]
Quando se diz que um ato é legal, quer-se com isso dizer que foi praticado conforme a lei. Por outro lado, ilegal é aquele ato contrário à lei.
Resta agora saber se as expressões ilegalidade e abuso de poder se equivalem. Vejam-se as opiniões de alguns conceituados autores, segundo o professor Alfredo Buzaid:
LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL entende que ‘ilegalidade e abuso de poder são expressões que se equivalem. É, pelo menos, certo que não se pode conceber abuso de poder sem violação da lei’. Para CASTRO NUNES, a expressão abuso de poder, mais própria do direito penal que do direito administrativo, supõe a autoridade legalmente investida da função ou competente para o ato. É no desempenho da função que se verifica o abuso, seja pela preterição de forma legal, seja na adoção de alguma medida exorbitante da lei que excede de sua alçada, configurando-se já a incompetência. Sustenta SEABRA FAGUNDES que à definição do âmbito do instituto bastaria a expressão ilegalidade, compreensiva de todos os vícios administrativos capazes de ensejar o controle jurisdicional, inclusive o que se queria denominar especialmente de abuso de poder. Ensina, porém, JOSÉ CRETELLA JÚNIOR que ‘ilegalidade é gênero de que abuso de poder é espécie. Não há um só caso de abuso de poder que não configure também ilegalidade. Pode, no entanto, haver caso de ilegalidade que não configure necessariamente o abuso de poder. [32]
Pedindo vênia pela longa citação, que se fez necessária em face da precisa concisão do professor BUZAID das posições de alguns importantes juristas, algumas conclusões se pôde tirar.
É certo, em que pese algumas respeitáveis opiniões em contrário, que a expressão abuso de poder não é sinônima de ilegalidade. O abuso de poder, como a própria expressão indica, refere-se à existência de um poder, de uma competência especial para a prática do ato. Logo, como é próprio do mandado de segurança, o abuso de poder refere-se a uma autoridade no exercício de uma função pública (lato sensu). Por abuso de poder se há de entender tudo o que diga respeito à infração das regras de competência, seja ela uma violação frontal, pela prática de ato totalmente alheio ao âmbito de atribuição do agente, seja ela uma exorbitância de uma competência realmente existente. Já a ilegalidade, conforme já dito, é o simples desrespeito às normas de direito, genericamente.
Conclui-se, dessarte, que, por certo, abuso de poder não é a mesma coisa de ilegalidade. Todavia, acertou Seabra Fagundes ao afirmar que bastaria ao legislador ter mencionado simplesmente ilegalidade, omitindo-se em relação ao abuso de poder. É que o abuso de poder, enquanto espécie do gênero ilegalidade, é sempre um ato ilegal, embora não se identificando com ele.
Feitas tais observações, diga-se que, quando a lei fala em ilegalidade ou abuso de poder, compreendem-se todas as formas de ilegalidade, seja ela uma ofensa à lei ordinária, seja à Constituição. Nesse sentido, Seabra Fagundes afirma:
Na expressão ilegalidade se compreende também a inconstitucionalidade, o que vale dizer, se abrangem, tanto a violação da lei ordinária, como a infração da lei constitucional". (...) Se a ofensa da lei ordinária rende ensejo ao remédio presentâneo e eficaz do mandado de segurança, a da lei constitucional mostra-se ainda mais grave e clama, ainda mais alto, pela aplicação do remédio heróico. [33]
Não é correta, portanto, a assertiva de que o mandado de segurança não é meio hábil para se discutir a constitucionalidade de um ato. Exige-se, para concessão do mandado de segurança, que o ato seja ilegal, e que ato é mais ilegal do que aquele que afronta à maior das leis?
3.4.2. Autoridade coatora
Antes de se lançarem vistas especificamente sobre esse pressuposto constitucional do mandado de segurança, mister diferençá-lo do sujeito passivo.
Conforme ensina a professora titular de Direito Administrativo da PUC/SP, Lúcia Valle Figueiredo:
Autoridade coatora é o agente administrativo que pratica ato passível de constrição.
Na verdade, é aquela que efetivamente pratica o ato, ou que tem poder legal de praticá-lo, nos casos de omissão. Portanto, autoridade coatora será aquela designada pelo ordenamento jurídico, aquela a quem a regra de competência obriga à prática do ato. [34]
Enquanto, por outro lado:
O sujeito passivo do mandado de segurança será, sempre, a pessoa jurídica que deverá suportar os encargos da decisão do mandado de segurança. Destarte, sujeitos passivos serão sempre União, Estados, Municípios ou delegados de serviço público, sejam dirigentes de estatais ou concessionárias de serviço.
O nosso legislador ordinário, sacrificando a regra geral em prol da brevidade, mandou notificar somente o órgão, isto é, a autoridade coatora, sem qualquer necessidade de citar a pessoa jurídica. Disse-se "sacrificando a regra geral" porque ré na ação de mandado de segurança não é a autoridade coatora, mas a pessoa jurídica, da qual ela é órgão.
Conforme salienta o professor Alfredo Buzaid [35], a palavra autoridade está empregada na Constituição (art. 5.º LXIX) e na Lei n.º 1533/51 (art. 1.º) para significar não só os órgãos do Poder Executivo, como também os dos poderes Legislativo e Judiciário.
A Constituição de 1988, conforme salienta o mestre José Afonso da Silva [36], ampliou o espectro passivo do mandado de segurança, compreendido em dois grupos, a saber, autoridades públicas e agentes de pessoas jurídicas no exercício de atribuições de Poder Público. No primeiro grupo, entram todos os agentes públicos, expressão que abrange todas as pessoas físicas que exercem alguma função estatal, como os agentes políticos, os agentes administrativos e os agentes delegados, entrando neste último grupo os exercentes de funções delegadas (concessionários e permissionários de obras ou serviços, os serventuários, os notários e oficiais de registros públicos etc). Logo, no segundo grupo entram todos os agentes de pessoas jurídicas privadas que executem, a qualquer título, atividades, serviços e obras públicas.
Frise-se a importância da exata determinação de quem seja a autoridade coatora nos casos concretos, já que disso depende a fixação do órgão competente para o julgamento, uma vez que, segundo o nosso direito positivo, a competência para conhecer dos mandados de segurança não deriva da natureza da questão ajuizada, e sim da hierarquia da autoridade que praticou o ato impugnado por aquela via processual.
Certo é, ademais, que o juiz não se deve ater a preciosismos processuais, sob pena de contrariar o festejado princípio da instrumentalidade das formas. Todavia, se o impetrante errar grosseiramente a designação da autoridade coatora, deverá o juiz extinguir, de pronto, o Processo sem julgamento do mérito (art. 267, VI, do Código de Processo Civil).
3.4.3. Direito líquido e certo – conceito
Feitas essas breves considerações acerca dos demais pressupostos constitucionais específicos do mandado de segurança, passe-se, finalmente, e de forma um pouco mais detida, ao direito líquido e certo, objeto do presente artigo.
A expressão direito líquido e certo, hoje utilizada pelo texto constitucional como pressuposto do mandado de segurança, substituiu à constante nas origens do writ, quando se adotou o termo direito certo e incontestável. Todavia, em que pese a singela melhora no texto, nenhuma das expressões satisfaz, vez que o direito, quando existente, é sempre líquido e certo.
Buscando o melhor conceito de direito líquido e certo, invoque-se, primeiramente, como não poderia deixar de ser, a clássica conceituação do grande administrativista e constitucionalista Hely Lopes Meirelles:
Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocado, para ser amparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se sua existência for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais. [37] (grifo nosso)
O conceito trazido pelo saudoso professor deve ser analisado com ressalvas. É que, à primeira vista, poderia parecer, mormente quando se fala que o direito há de vir expresso em norma legal, que é o direito invocado que deve ser líquido e certo. Ora, essa não é a conclusão mais acertada, como se passa a demonstrar.
Um direito subjetivo, pelo simples fato de existir, não ganha o qualificativo de líquido e certo. O direito ou assiste ou não assiste a um determinado sujeito. Ou ele existe ou não existe.
Não há que se falar, portanto, em direito incerto ou ilíquido, porquanto, se existente, o direito é sempre certo, exigindo apenas que o intérprete-aplicador do direito por excelência – o juiz – aplique ao caso concreto lançado ao seu julgamento as normas do ordenamento jurídico.
O direito será declarado e aplicado pelo magistrado, que lançará mão dos processos hermenêuticos estabelecidos pela ciência para esclarecer os textos eventualmente obscuros, ou harmonizar os contraditórios.
Conforme lembra, oportunamente, Lúcia Valle Figueiredo:
Pode ocorrer de o juiz ter dúvidas de qual seja o direito realmente aplicável para o caso concreto. Porém, isso não é relevante. Não tira a liquidez e certeza do direito. A propósito, se o ordenamento jurídico assegurar direitos, há de haver correspondente proteção no mesmo ordenamento. Destarte, diante de ato ou fato constritivo, incontroverso, praticado por autoridade, caberá mandado de segurança. [38]
No mesmo sentido, invoque-se Miguel Seabra Fagundes, o qual afirma, com toda a sua autoridade:
A incidência da lei sôbre o fato, uma vez apurado êste, é sempre certa. A obscuridade da norma a aplicar ou a incerteza sôbre qual seja ela, acarretará dúvidas ao juiz, dificultará a formação do seu juízo, exigirá estudo prolixo, mas não poderá fazer ilíquido e incerto o direito subjetivo do impetrante, pois a ocorrência dos pressupostos de fato dá lugar, automàticamente, à incidência da norma. Esta, preexistindo aos fatos, passa a regê-los, necessária e imediatamente, desde que ocorrem. [39]
A jurisdição é poder-dever indeclinável do Estado. O juiz, investido pelo Estado de jurisdição, não se pode recusar a aplicar o direito sob a alegação de ser ele obscuro ou de difícil percepção (non liquet).
E de forma diversa não poderia ser. Afinal, se se exigisse que o direito fosse líquido e certo para concessão da segurança pelo Judiciário, chegar-se-ia ao absurdo de um magistrado, exempli gratia, especialista em direito tributário, conceder a segurança em um processo que verse sobre tal matéria, por considerar o direito, no caso, de fácil e clara percepção, enquanto outro juiz, especialista em matéria penal, mas desconhecedor da tributária, denegasse-a, por considerar a questão obscura e complicada.
Patenteia-se, portanto, o despropósito e desrazão da posição daqueles que, como Carlos Maximiliano, assim definem o direito líquido e certo:
(..) o direito translúcido, evidente, acima de toda dúvida razoável, aplicável de plano, sem detido exame nem laboriosas cogitações. [40]
Ora, o que é evidente e translúcido para um juiz, pode não o ser para outro. Valer-se, portanto, de um conceito de tamanha subjetividade e fluidez para delimitar o cabimento de tão importante ação constitucional seria uma afronta aos direitos e garantias do cidadão em face da administração pública.
No mesmo equívoco incorre, neste ponto, não obstante a sapiência do autor, a quem tantas vezes se recorreu nos estudos prévios desta monografia, o professor Alfredo Buzaid, o qual defende:
O que, a nosso ver, esclarece o conceito de direito líquido e certo é a idéia de sua incontestabilidade, isto é, uma afirmação jurídica que não pode ser séria e validamente impugnada pela autoridade pública, que pratica um ato ilegal ou de abuso de direito. (...) a norma constitucional ou legal há de ser certa em atribuir à pessoa o direito subjetivo, tornando-o insuscetível de dúvida. Se surgir a seu respeito qualquer controvérsia, quer de interpretação, quer de aplicação, já não pode constituir fundamento para a impetração de mandado de segurança. [41](grifo nosso)
Data maxima venia, não se pode deixar o jurisdicionado em tamanha insegurança, lançando seu direito na dependência de o magistrado, em cujas mãos fora distribuída sua ação, conheça, suficientemente, a matéria discutida.
Nesse sentido, cite-se, novamente, Seabra Fagundes:
Colocar a liquidez e certeza do direito na dependência do critério pessoal de cada juiz, de sorte que exista direito líquido e certo quando o julgador se sinta em condições de superar os embaraços da pesquisa técnico-científica, a que se tenha de votar, e inexista quando a questão se lhe afigure de solução penosa, é lançar aos perigos da discrição personalíssima e ilimitada do juiz relações tidas pela lei como merecedoras de proteção imediata. Haverá aí uma violação, a latere, de norma do art. 113. do Código de Processo Civil, que impõe ao juiz o dever de sentenciar, ainda quando lacunosa ou obscura a lei. Uma violação, quando não do seu sentido imediato, do seu espírito. [42](grifo nosso)
Como, então, deve ser entendida a exigência constitucional de que o direito invocado, para ser defendido pelo mandado de segurança, seja líquido e certo?
Almejando responder a tal indagação, cite-se o Professor Kildare Gonçalves Carvalho, o qual, em poucas linhas, conclui:
O direito líquido e certo é aquele cuja comprovação se faz de plano com a impetração, sem necessidade de dilação probatória. [43]
Tal conceito, o qual resume posição reiteradas vezes adotada pelos tribunais pátrios, vincula a liquidez e certeza do direito à necessidade ou não de dilação probatória.
Mister, então, buscando auxílio, mais uma vez, nos conceitos de Teoria Geral do Processo, responder a seguinte pergunta: qual é o objeto da prova? O que se prova no processo? Sem maiores considerações, responda-se: provam-se fatos.
Dessarte, para que o mandado de segurança seja a via adequada para defender determinado direito subjetivo, basta que o fato, e não o direito, em que se funda a pretensão seja provado de plano, sem necessidade de produção de provas no decorrer do procedimento. É o fato que há de ser líquido e certo, portanto.
Nesse sentido, invoque-se, novamente, o professor Barbi:
(...) a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo. E isto normalmente só se dá quando a prova for documental, pois esta e a adequada demonstração imediata e segura dos fatos [44].
O próprio professor Hely Lopes Meirelles, cuja conceituação inicial poderia fazer supor posição diversa, ensina:
As provas tendentes a demonstrar a liquidez e certeza do direito podem ser de todas as modalidades admitidas em lei, desde que acompanhem a inicial, salvo no caso de documento em poder do impetrado (art. 6.º, parágrafo único) ou superveniente às informações. Admite-se, também, a qualquer tempo, o oferecimento de parecer jurídico pelas partes, o que não se confunde com documento. O que exige é prova pré-constituída das situações e fatos que embasam o direito invocado pelo impetrante." [45] (grifo nosso)
Do exposto, pode-se concluir: uma coisa é o direito subjetivo invocado, outra é o qualificativo "liquidez e certeza" que os fatos que fundamentam o direito podem possuir. Quer-se com isso dizer que os fatos alegados podem ser líquidos e certo, isto é, ser provados de plano, previamente, mas não ensejarem o nascimento do direito, como se supunha. Basta, para tanto, que do fato não decorra o direito alegado, tornando improcedente o pedido formulado através do mandamus.
Somente da conjunção dos fatores, ou seja, da união entre a circunstância de o fato ser líquido e certo com a existência do direito, o qual pode ser, até mesmo, de difícil percepção, que surge, para o impetrante, o direito à concessão da segurança.
Tal conclusão parte da separação entre a liquidez e certeza, qualificativos pertinentes aos fatos alegados, e o direito invocado.
A certeza e liquidez dos fatos constituem pressupostos constitucionais para o cabimento do próprio mandado de segurança. Sem tal apanágio, ou melhor, se os fatos não forem comprovados de forma prévia, juntamente com a petição inicial, o mandamus não será a via adequada para proteção do direito invocado, não podendo o juiz, no caso, chegar a apreciar o mérito debatido.
Por outro lado, uma vez provados de plano os fatos alegados, demonstrando a sua liquidez e certeza, o juiz mandará que a autoridade coatora preste as informações para, ao fim, verificar se dos fatos demonstrados decorre o direito invocado, concedendo ou não a segurança.
3.5. DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO
3.5.1. Condição da ação X mérito
Eis que se chegou no núcleo do presente trabalho – seria o direito líquido e certo condição da ação ou estaria ele inserto no próprio mérito do mandado de segurança?
Visando a responder a tal indagação, mister será conjugar os conceitos trazidos na parte inicial do presente artigo, reservada à Teoria Geral do Processo, com aqueles propostos em seguida, voltados mais especificamente ao mandado de segurança individual.
Consoante já salientado alhures, o legislador pátrio, em consonância com a doutrina, subdividiu a estrutura processual em dois tipos de questões – as preliminares e as meritórias.
As questões preliminares, como o próprio nonem iuris faz supor, são todas aquelas, de natureza processual, que se levantam antes do exame da questão meritória. [46] Costumam ser divididas em pressupostos processuais, enquanto requisitos para a formação e desenvolvimento válido e eficaz do procedimento, e condições da ação, concebidas como as exigências para que se possa exigir o provimento jurisdicional em espécie, o julgamento do mérito.
Saliente-se que, conquanto haja tal distinção entre pressupostos processuais e condições da ação, ante a ausência de qualquer deles, a conseqüência processual será a mesma, qual seja, a extinção do processo sem julgamento do mérito.
Já as questões meritórias, por sua vez, constituem o substrato do processo. É onde se encontram as controvertidas pretensões das partes. O mérito é, pois, a própria lide, nos limites do pedido deduzido em juízo, mais especificadamente, nos limites do objeto mediato do pedido. Sem repetir conceitos já desenvolvidos no presente trabalho [47], em suma, examinar as questões meritórias nada mais é que examinar o próprio pedido formulado pelas partes, respondendo à pretensão deduzida em juízo. É julgar o pedido procedente ou improcedente.
Feitas essas considerações, voltemos à indagação – o direito líquido e certo está inserto nas questões preliminares ou meritórias?
Seguindo as linhas desenvolvidas neste trabalho, a liquidez e certeza são apanágios dos fatos que ensejaram o nascimento do alegado direito, não se relacionando com o direito em si.
São os fatos que podem ser incertos e ilíquidos, nunca o direito, o qual, se existente, é, sempre, certo.
Nesse ensejo, é pressuposto constitucional do mandado de segurança que os fatos alegados sejam comprovados de plano, juntamente com a petição inicial [48]. A liquidez e certeza é, justamente, essa existência de prova pré-constituída, sem a qual o mandado de segurança não é a via adequada para defender o direito invocado.
Neste momento o juiz não verifica se do fato alegado decorre o direito pleiteado, mas, tão-somente, se o fato está devidamente comprovado, geralmente por prova documental.
Percebe-se, portanto, claramente, que o magistrado, neste momento prévio, não adentra o mérito debatido, não perquire se o pedido pleiteado procede ou não.
Ora, assim procedendo, o juiz nada mais estará do que examinando questões preliminares do mandado de segurança, deixando a análise do mérito debatido para fase posterior.
A questão se apresenta nas seguintes hipóteses, portanto:
- Se o juiz verificar que os fatos alegados não foram comprovados de forma prévia, exigindo, portanto, dilação probatória, concluirá que não estão presentes a liquidez e certeza exigidos, preliminarmente, para a concessão da segurança. Deverá, dessarte, extinguir o processo sem julgamento do mérito, já que o impetrante não se desincumbiu do ônus do provar, previamente, os fatos alegados. Neste caso, o juiz nem chegará a verificar se o pedido formulado procede ou não;
- Por outro lado, se o juiz verificar que os fatos alegados foram provados de forma prévia, patenteando-se, assim, a sua liquidez e certeza, receberá ele a petição inicial e mandará que a autoridade coatora preste as informações cabíveis. Neste caso, prestadas as informações e juntado aos autos o parecer do órgão do Ministério Público, o juiz julgará o pedido formulado, concluindo se do fato alegado decorre o direito invocado.
No primeiro caso, o mandado de segurança não será a via adequada para defender o direito alegado, podendo a parte supostamente lesada buscar o provimento jurisdicional por outras vias, geralmente pela ação ordinária. Com a extinção do processo com base unicamente na ausência de prova pré-constituída – liquidez e certeza – o juiz não chegou a adentrar o mérito debatido, não chegou, portanto, a apreciar o direito invocado.
Já no segundo caso, o mandado de segurança será, sim, a via adequada para defesa do direito invocado. O juiz, então, comprovados os fatos previamente, poderá dizer se a pretensão deduzida em juízo procede ou não. Diga-se, nessa linha de raciocínio, que o juiz poderá, até mesmo, dizer que estão presentes a liquidez e certeza, sendo cabível, portanto, o mandado de segurança, mas denegar a segurança pleiteada, por entender que não houve ilegalidade ou abuso de poder algum no ato praticado, sendo, assim, improcedente o pedido formulado.
Neste último caso, julgou-se o mérito. No primeiro, não.
Chega-se, destarte, à seguinte conclusão: o exame da liquidez e certeza, que são sempre qualificativos dos fatos alegados, pertence às questões preliminares do mandado de segurança, e não ao mérito.
Tanto assim é que o professor Celso Agrícola Barbi erigiu a liquidez e certeza do direito à categoria de condição da ação, enquanto exigência específica do mandado de segurança para fazer nascer a possibilidade jurídica do pedido. In verbis:
Enquanto, para as ações em geral, a primeira condição para sentença favorável é a existência da vontade de lei cuja atuação se reclama [possibilidade jurídica do pedido], no mandado de segurança isto é insuficiente; é preciso não apenas que haja o direito alegado, mas também que ele seja líquido e certo. Se ele existir, mas sem essas características, ensejará o exercício da ação por outros ritos, mas não pelo específico do mandado de segurança. [49]
Poder-se-ia enquadrar a liquidez e certeza do direito em outras subdivisões das questões preliminares do mandado de segurança, dependendo da conceituação que se dá a elas.
Assim, seguindo os ensinamentos do professor Humberto Theodoro Júnior, o qual classifica os pressupostos de existência válida ou de desenvolvimento regular do processo em subjetivos e objetivos, considera-se a observância da forma processual adequada à pretensão como um dos pressupostos de desenvolvimento objetivo do processo [50]. Consoante tal entendimento, poder-se-ia chegar à conclusão de que a existência de prova pré-constituída (liquidez e certeza) seria um pressuposto processual objetivo do mandado de segurança, já que, na sua ausência, o mandamus não será a forma processual adequada à pretensão deduzida.
Por outro lado, em considerando o interesse de agir como a necessidade e utilidade da tutela jurisdicional, ante a impossibilidade de obter a satisfação do alegado direito sem a intercessão do Estado, bem como a adequação entre a situação lamentada pelo autor ao vir a juízo e o provimento jurisdicional concretamente solicitado, poder-se-ia chegar à conclusão de que a falta de liquidez e certeza dos fatos alegados levaria à falta de interesse de agir. Isto porque, sem a existência de prova pré-constituída, o mandado de segurança não seria a via adequada para defender o direito invocado.
Todavia, independentemente da posição adotada, enquadrando a liquidez e certeza dos fatos alegados como pressuposto processual, possibilidade jurídica do pedido ou interesse de agir, a conclusão será sempre a mesma – está ele inserto nas questões preliminares do mandado de segurança, e não no mérito.
3.5.2. Conseqüências da ausência da liquidez e certeza do direito – extinção do processo com ou sem julgamento do mérito?
Ante todo o exposto, a resposta à indagação que se propõe responder neste item torna-se evidente.
Se o juiz verificar que não há prova pré-constituída acerca dos fatos alegados, ausentes, portanto, a liquidez e certeza, e este for o único motivo para a extinção do processo, a sentença que o fizer será sem julgamento do mérito.
Por outro lado, se o juiz verificar que, mesmo provados os fatos alegados, a hipótese descrita na inicial não leva à conclusão objeto do pedido do impetrante, será o caso de extinguir o processo com julgamento do mérito.
Firmada essa conclusão, interessante trazer à colação entendimento da professora Lúcia Valle Figueiredo, a qual propõe uma divisão acerca dos momentos em que se examina a existência da liquidez e certeza do direito. Afirma a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo:
(...) o próprio conceito de direito líquido e certo incide duas vezes. Incide de início no controle do juiz. Quando se apresenta a inicial, impende ao juiz verificar se há – como diz o Professor Sérgio Ferraz – a plausibilidade da existência do direito líquido e certo. [51]
Neste primeiro momento, o juiz apenas verifica se é plausível a liquidez e certeza dos fatos alegados. Lembre-se de que, uma vez incontroversos os fatos, o direito será sempre certo. Essa análise inicial é feita apenas de forma superficial, verificando, unicamente, se os fatos foram provados previamente ou não. É nesse momento, consoante conclusão trazida neste item, que a liquidez e certeza é considerada como verdadeira condição da ação.
Outra fase apareceria ao fim do processo, como afirma a professora:
O problema que se coloca, a seguir, é de como aparece o direito líquido e certo no final do mandado de segurança. É dizer, instruído o mandado de segurança, se ao juiz se apresentou o direito como líquido e certo inicialmente, mesmo assim poderá, a final, o juiz dizer que inexiste tal direito. [52]
Neste segundo momento, ao final do processo, a análise já seria do mérito debatido. Seria o caso de o fato que, a princípio, parecia, pelas provas carreadas aos autos, ter ocorrido, mas que, com as informações e provas acostadas pela autoridade coatora, demonstrou-se não ter ocorrido daquela forma. Poderia, ainda, ocorrer, que os fatos ocorreram, sim, da forma alegada, mas deles não decorra o direito invocado. Em ambos os casos, o juiz examinou o mérito debatido, sendo a sentença, que extinguiu o processo, com julgamento do mérito.
Visando ao melhor esclarecimento da questão, com as escusas da longa citação, que se fará necessária em face da insubstituível clareza do autor, cite-se trecho do livro do professor Barbi:
Para melhor compreensão do tema, é necessário, todavia, recordar que, no julgamento do mandado de segurança, superadas as questões prévias, o juiz deverá verificar se existe o direito subjetivo do impetrante, que está ameaçado ou violado. Para isso, terá de examinar se os fatos alegados pelo autor existem ou não. Se houver dúvida quanto a estes, deverá denegar o mandado, porque inexiste no caso direito líquido e certo. Mas, se os fatos forem certos, passará então o juiz ao exame da norma jurídica, para saber se o ordenamento jurídico do país atribui ou não ao reclamante o bem jurídico. A conclusão poderá ser favorável ou desfavorável ao impetrante, decorrendo disto a concessão ou não do mandado.
Como se vê, as duas hipóteses de denegação diferem: na primeira, não se chegou ao exame da existência do direito subjetivo, porque os fatos eram incertos; o juiz não afirma nem nega sua existência; mas na segunda, com os fatos comprovados, a conclusão foi pela inexistência do direito subjetivo. Usando a linguagem das leis sobre mandado de segurança, podemos dizer que, na primeira hipótese, não havia direito líquido e certo; eventualmente, poderia haver o direito subjetivo do autor, mas sem a característica da certeza exigida para essa via processual; na segunda hipótese, a conclusão do julgador é que o bem pretendido pelo autor não lhe foi atribuído pelo ordenamento jurídico. [53] (grifos nossos)
3.6. DA COISA JULGADA NO WRIT
3.6.1. Quando a sentença faz coisa julgada material
Saber se a sentença que extinguiu o processo no mandado de segurança julgou com ou sem julgamento do mérito constitui ponto fundamental para saber se a mesma faz ou não coisa julgada material.
Lembre-se que coisa julgada é a qualidade que o provimento jurisdicional que extingue o processo, através da sentença ou acórdão, adquire quando da decisão não cabe mais recurso, inatacável por qualquer via dentro do mesmo processo, quando a coisa julgada for meramente formal, ou fora dele, quando for, também, material.
Dizer que uma sentença possui a qualidade da coisa julgada material significa dizer que não poderá ela ser modificada nem por intermédio de outro processo judicial. Nem mesmo a lei poderá modificá-la, ex vi do disposto no artigo 5.º, XXXVI, da Constituição Federal.
A sentença (ou acórdão) só ganha tal apanágio quando houver apreciado o mérito debatido, isto é, quando houver respondido à pretensão deduzida em juízo.
No mandado de segurança as coisas não são diferentes. Assim, a sentença que apreciar o mérito discutido fará, sim, além da coisa julgada formal, coisa julgada material, impedindo a sua modificação por processo posterior.
Assim, no escólio de Celso Agrícola Barbi, se o juiz considerar que os fatos eram, sim, incontroversos, mas afirmar que o direito subjetivo do autor não existe, denegará a própria segurança. Essa sentença possuirá, por atingir o mérito debatido, a qualidade da coisa julgada material, inatacável, portanto, por qualquer outra via judicial posterior.
3.6.2. Quando a sentença não faz coisa julgada material
Conforme sabido, toda sentença ou acórdão do qual não caiba recurso, por haver transcorrido o prazo legal ou por se ter chegado à ultima instância possível, possui a qualidade da coisa julgada formal.
É a chamada preclusão máxima. O processo, então, internamente, não poderá ser modificado nem pelo próprio magistrado que proferiu a sentença. O processo, enfim, acabou.
Todavia, a coisa julgada formal, por si só, não impede que as partes busquem a resposta judicial novamente, pela mesma via ou por outra, conforme o caso. É que o objetivo colimado não foi alcançado, já que o juiz não chegou a apreciar o pedido formulado, ou melhor, não examinou o mérito da causa.
Assentou-se, no item anterior, quando a sentença faz coisa julgada material no mandado de segurança. Mas quando fará coisa julgada formal? Responda-se: sempre. A pergunta a se fazer, portanto, é quando a sentença não faz coisa julgada material.
Em consonância com a posição esposada nessa monografia, sempre que a sentença extinguir o processo sem julgamento do mérito, por entender que o impetrante não se desincumbiu do ônus de provar previamente os fatos alegados, possuirá a decisão a qualidade, tão-somente, da coisa julgada formal. Poderá, portanto, ser toda a questão reexaminada em processo posterior, bastando, para tanto, que o impetrante consiga a prova pré-constituída que lhe faltava, ou que escolha as vias ordinárias para defender seu direito, provando os fatos alegados durante a instrução processual.
Por fim, em que pese a posição contrária defendida nesse trabalho, interessante e coerente a posição esposada por Seabra Fagundes, o qual defende que a sentença que denega a segurança sempre fará somente coisa julgada formal, nunca material. Cite-se-o:
A sentença no mandado de segurança não conduz, em caso de denegação da medida, ao trancamento definitivo da lide (...) O pedido é formulado para que se declare ser o impetrante titular de um direito desse tipo [líquido e certo]. Decidir que o impetrante não tem, nem o direito líquido e certo que invoca, nem qualquer outro direito, é decidir invertendo o pedido contra o autor e ultrapassando o conteúdo natural da situação contenciosa ajuizada. O impetrante de mandado de segurança correria o risco de se ver privado de melhor demonstrar e provar a sua pretensão, por ter-se valido daquela via sumariíssima. E a invocação da certeza e liquidez do direito acabaria resultando num pronunciamento irretratável de uma justiça mal informada. [54]
Em que pese a seriedade e coerência da posição defendida pelo saudoso professor, a posição por ele defendida não pode prevalecer.
É que, quando a sentença denega a segurança por considerar inexistente o direito subjetivo invocado, ela o faz tendo em vista que os fatos são incontroversos, não há dúvida quanto à sua existência. São eles, enfim, líquidos e certos. Nesse sentido, a ausência de dilação probatória, ou o fato de o rito do mandamus ser sumaríssimo, em nada prejudicou a análise do mérito debatido, já que a sentença denegou a segurança não em face da ausência de provas, mas por considerar que daqueles fatos, já provados, não decorre, juridicamente, o direito subjetivo invocado.
Nesse ensejo, conclui-se que, nesse caso, a sentença que denega a segurança faz, sem dúvida, coisa julgada material.