Mídias, governantes e grande parcela da população estão aplaudindo (a mais não poder e acertadamente) as invasões da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão. Eram mesmo necessárias, mas não são suficientes. Nossas dez preocupações são as seguintes:
1ª) Expulsar alguns narcotraficantes não significa acabar com o tráfico. Os grandes "chefões" do tráfico (nas áreas invadidas) ainda não foram presos. O risco de migração dessa atividade ilícita (de um território para outro) é mais do que provável. O narcotráfico ainda domina a maior parte das 1.006 favelas do RJ (as milícias, antes das invasões, dominavam 41,5%; o tráfico, 55,9% e as UPPs - Unidades de Polícia Pacificadora-, 2,6% (de acordo com dados do Nupevi – Núcleo de Pesquisas das Violências da Eerj – Folha de S. Paulo de 30.11.10, p. C6).
2ª) As milícias continuam intocadas. Mais de 40% das favelas do RJ continuam sendo dominadas pelas milícias (formadas por policiais e ex-policiais, que vivem extorquindo a população). Ora atuam em conjunto, ora separadamente dos narcotraficantes. A população (em geral) mostrou-se solidária com as invasões (houve crescimento de mais de 30% no "disque-denúncia"). Mas continua subjugada aos milicianos em vários bairros e morros do RJ. O gravíssimo problema do crime organizado no RJ possui três protagonistas de destaque (conforme Luiz Eduardo Soares): os narcotraficantes, as milícias e a banda podre (corrupta e violenta) da polícia. Os primeiros estão sendo perturbados, mas nada até agora aconteceu com os demais.
3ª) A banda podre da polícia continua atuando. O crime organizado no RJ chegou onde chegou em virtude, sobretudo, da conivência das bandas podres das polícias e dos políticos. Enquanto não forem expurgados os policiais corruptos e abusivamente violentos não se pode esperar qualquer mudança de cenário. Incontáveis são as denúncias de todo tipo de abuso e de corrupção policial até mesmo durante as operações de invasão do Complexo do Alemão. Uma polícia que não começa pela eliminação dos abusos dos seus próprios membros não tem credibilidade para pacificar ninguém.
4ª) Policiais com salários aviltados são "soldados do crime". Os salários dos policiais (em geral) são ridículos. Eles, tanto quanto grande parcela da população brasileira, não ganham o suficiente para manter honestamente uma casa e uma família. São obrigados a viver dos "bicos" ou partem logo para o crime organizado. Tramita pelo Congresso a PEC 300 (que estabelece um piso salarial mínimo para os policiais). Os governos estaduais, incluindo o do RJ, são contrários à referida emenda constitucional. O programa de tolerância zero, sobretudo em Nova York, só deu certo (durante um período) porque eliminaram os corruptos da polícia e porque passaram a pagar salários decentes.
5ª) A corrupção política (e de alguns políticos) não acabou. Muitos são os políticos envolvidos com o crime organizado e com as milícias. O filme Tropa de Elite 2 foi preciso e extraordinário nesse sentido. Enquanto não for cortado pela raiz esse contubérnio (essa mancebia) entre a política e o crime organizado não se pode esperar grandes mudanças institucionais ou no direcionamento das políticas públicas.
6ª) Falta a definição de uma política confiscatória de bens. A preocupação primeira dos órgãos repressivos do Estado é com a prisão dos narcotraficantes. Paralelamente (mas com igual relevância) deveriam os órgãos estatais (Receita Federal, COAF etc.) desenvolver uma política de confisco e seqüestro dos bens dos narcotraficantes, dos milicianos e dos policiais corruptos. Urge um serviço de inteligência só para cuidar disso. Enquanto não forem confiscados todos os bens ilícitos dos criminosos eles continuarão com força para comprar armamentos (que permitem a intimidação) assim como para corromper pessoas (policiais, políticos, juízes etc.).
7ª) Falta uma política de segurança pública no Brasil. As polícias, em regra, são desconexas. Não existe uma central de inteligência que unifique a atuação de todas elas. Muitas se comportam como rivais. A defesa do Estado e da população, muitas vezes, é colocada em segundo plano. Não existe articulação entre estratégias de repressão e de prevenção. O populismo penal constitui o vetor preponderante. A prevenção puramente "penal" é a tônica, mas ela nunca conseguiu diminuir a violência no nosso país (Brasil é o 6º país no ranking mundial em número de homicídios: algo perto de 25 mortes para cada 100 mil habitantes).
8ª) O mundo inteiro está de olho no Brasil. Brasil é a 8ª economia do mundo. Será a 7ª no próximo ano. A 5ª em poucos anos (muito provavelmente). RJ (inclusive) será sede da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. O mundo inteiro está de olho no Brasil! Seja para nele investir, seja para constatar seu nível de civilização. Nossa credibilidade pode cair por terra se persistirem as constantes violações de direitos humanos (das vítimas, da população em geral e dos presos). A transmissão das invasões (em tempo real) pelas TVs abertas muito contribuíram para evitar abusos deploráveis assim como imensos derramamentos de sangue (que poderiam colocar em risco toda reputação do nosso país).
9ª) Falta clareza na nossa política de prevenção e repressão ao uso das drogas. Nossa lei é extremamente confusa no que diz respeito à distinção entre usuário e traficante. A polícia e a Justiça contam com uma grande margem de discricionariedade. Isso facilita abusos e discriminações contra os "selecionados" pelo sistema. O usuário de drogas jamais deveria ser considerado criminoso. Problema de saúde pública e individual jamais deveria ser confundido com problema policial. O Brasil e o mundo devem refletir seriamente sobre a descriminalização geral das drogas, salvo quando envolve menores.
10ª) Vencer uma batalha não significa vencer a "guerra". Foram invadidos e retomados dois bairros: Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão. RJ tem 1.006 favelas. Apenas 2,6% delas contam com UPPs (Unidades de Polícia Preventiva). Como se vê, há muito que se fazer. Reconquistar territórios sem levar para dentro deles a presença massiva do Estado, com densas políticas de inclusão social, significa vitória de Pirro. Vencer não é convencer. As populações locais, o Brasil inteiro e o mundo só acreditarão de verdade no sucesso das invasões quando chegarem a civilização, a urbanização, a educação, escolas, hospitais, transporte público, creches, segurança, justiça, lazer etc.