1. O CONCUBINATO ADULTERINO
A noção do concubinato adulterino está umbilicalmente associada à de pluralidade ou simultaneidade conjugal. Carlos Ruzyk define a simultaneidade familiar como a circunstância de alguém, ao mesmo tempo, se colocar como componente de duas ou mais entidades familiares diversas entre si. Segundo menciona o aludido autor "(...) Trata-se de uma pluralidade sincrônica de núcleos diversos que possuem, entretanto, um membro em comum.(...)" [01]
Logo, pensar em concubinato adulterino é pensar, inicialmente, em uma pluralidade de famílias que compartilham um de seus membros, ou seja, é pensar em um homem, ou em uma mulher, que exerce o poder familiar em mais de um lar, na mesma posição hierárquica.
A existência do concubinato adulterino resta configurada nos casos em que há um relacionamento amoroso não eventual onde pelo menos um dos envolvidos está, paralela e simultaneamente, na vigência de vínculo conjugal oriundo de matrimônio ou de união estável com outrem. Por conseguinte, a idéia do concubinato adulterino remete a de uma família central e constitucionalmente reconhecida como entidade familiar e de uma ou mais sociedades conjugais paralelas à mesma.
Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho [02] conceitua o concubinato adulterino como sendo "(...) uma relação estável entre duas pessoas de sexos diferentes, constituída faticamente, com a possibilidade de manifestação do afeto, presumidamente pública e de modo contínuo".
Neste diapasão, algumas características que marcam o concubinato adulterino merecem ser destacadas. Inicialmente a já mencionada distinção de sexos entre os concubinos, necessária para a configuração de qualquer espécie de concubinato. Em seguida passa-se à não eventualidade. Encontros esporádicos e não marcados pela eventualidade desnaturam a existência do concubinato. O mero caso de adultério findo em um ou dois encontros não é capaz de criar vínculo concubinário.
Outro requisito para configuração do concubinato é a publicidade. O autor Anderson Lopes entende que a publicidade não é requisito essencial para a configuração do concubinato adulterino. [03] Todavia, há entendimentos no sentido de que para configuração do concubinato adulterino é necessária certa publicidade do relacionamento afetivo entre os concubinos, ainda que não o seja no âmbito da família central e paralela. [04]
E, por último e não menos importante, o concubinato adulterino está atrelado a prática de adultério, eis que pelo menos um dos concubinos deve, necessariamente, estar na constância de casamento ou união estável concomitantemente ao relacionamento adulterino.
Anderson Lopes assim se manifesta acerca do concubinato adulterino [05]:
Em nosso ordenamento jurídico, o concubinato adulterino sempre foi compreendido a partir da criatividade dos operadores do direito — juízes e doutrinadores —, em face do sinal de exclusão que sempre recebeu da legislação e, porque não dizermos, da sociedade. Partia-se do princípio de que concubinato adulterino era uma relação que não podia ser convertida em casamento, moralmente reprovável e contrária aos bons costumes.
Feitas estas ponderações, insta frisar que, na hipótese de um dos conviventes ser civilmente casado com outrem que não o(a) seu(ua) parceiro(a) e estar separado de fato há mais de dois anos, não restará caracterizado o concubinato adulterino. E isto porque a separação de fato por mais de dois anos é uma das hipóteses para a propositura da ação de divórcio direto de modo que apesar de persistir o impedimento matrimonial, por não ter havido a dissolução oficial do vínculo matrimonial, a sociedade conjugal já estará desfeita e não mais persiste o dever de fidelidade entre os cônjuges.
Posterior decretação de divórcio, na hipótese supra, irá declarar uma situação de fato pretérita não podendo os conviventes restarem prejudicados pelo mero descumprimento de questões burocráticas. Neste ínterim percebe-se que o concubinato pressupõe a concomitância e a simultaneidade fática de dois ou mais relacionamentos conjugais. [06]
O exposto é corroborado pelo teor do Art. 1.723, parágrafo 1º do CC/2002 que dispõe:
Art. 1.723, §1º do CC/2002: A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do Art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente."
(grifo nosso)
Em sentido contrário é o posicionamento de Maria Helena Diniz, para quem o mero decurso do tempo de separação de fato não tem o condão de extrair, por si só, o caráter ilícito do relacionamento concubinário. Aduz a reconhecida civilista que as normas de direito de família são de ordem pública e que só se poderia atribuir algum efeito ao relacionamento concubinato, nesta hipótese, como sociedade de fato e não como união estável. [07]
Entrementes, em algumas situações a existência do concubinato é ignorada pelo próprio concubino que pressupõe não haver impedimento matrimonial e desconhece a existência da família nuclear. São os casos de indivíduos que constituem, relacionamentos múltiplos e tanto o cônjuge traído ignora tal fato quanto o concubino que é partícipe do adultério. Como exemplo prático cita-se a existência de uma união estável e de um relacionamento concubinário no qual o partícipe ignora a existência deste.
Sobre esta situação a doutrina elucubrou algumas teorias acerca dos efeitos do relacionamento concubinário. Para a primeira teoria nenhum dos relacionamentos simultâneos caracterizaria uma união estável ou apenas um deles. Esta teoria é defendida por Maria Helena Diniz [08] para quem é imprescindível a unicidade dos relacionamentos, na similarmente ao enlace matrimonial, pois, segundo afirma, a união de um homem com duas ou mais mulheres faz desaparecer o valor de ambas ou de uma das relações, tornando difícil saber qual a lesada.
A segunda corrente é no sentido da possibilidade de reconhecimento de ambos todos os relacionamentos simultâneos, independentemente da ciência ou não do impedimento.
Esta corrente, como já exposto, tem como uma das mais fervorosas defensoras a doutrinadora Maria Berenice Dias.
Um dos entendimentos mais consagrados pela jurisprudência entende que devem ser aplicadas as regras previstas na legislação civil para o casamento putativo, por analogia. Logo, o concubino que ignore o adultério de seu parceiro poderá se valer de sua ignorância para pleitear indenização por danos morais, aplicando analogicamente o teor do Art. 1.561, parágrafo 1º do CC/2002. [09] Nesse sentido é o posicionamento de Rolf Madaleno [10]:
[...] o concubinato adulterino não configura uma união estável, como deixa ver estreme de dúvidas o artigo 1.727 do Código Civil. [...]. Não ingressam nesta afirmação os concubinatos putativos, quando um dos conviventes age na mais absoluta boa-fé, desconhecendo que seu parceiro é casado, e que também coabita com o seu esposo, porquanto a lei assegura os direitos patrimoniais gerados de uma união em que um dos conviventes foi laqueado em sua crença quanto à realidade dos fatos.
Questão que precisa ser pontuada refere-se a existência do concubinato adulterino com a concordância do cônjuge ou companheiro(a) traído(a). A natureza jurídica do matrimônio pode elucidar tal tema.
Conforme exposto, a doutrina majoritária está no sentido de que o casamento possui natureza jurídica eclética, ou seja, é um contrato especial do direito de família mediante o qual os nubentes aderem a uma instituição pré-organizada e alcançam o estado matrimonial. Logo, aqueles que aderem ao casamento institucionalizado aderem a uma série de regras que estão previamente estabelecidas, não podendo se eximir das mesmas. O único aspecto que pode ser relativizado no âmbito do matrimônio é o que pertence ao regime de bens a disciplinar a sociedade conjugal.
Por conseguinte, as partes não podem negar os deveres inerentes ao matrimônio, quais sejam: o dever de fidelidade recíproca, vida em comum, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos e respeito e consideração mútuos. Ainda que o cônjuge não cumpra com tais deveres e conte com a passividade do seu consorte não se pode dizer que houve renúncia por parte deste.
No que tange a união estável a mesma, como visto, é uma entidade familiar constitucionalmente equiparada ao casamento de forma que os companheiros também se submetem às regras impostas pela legislação.
Em conseqüência lógica do que foi exposto conclui-se que ainda que o cônjuge traído conheça e anua com a existência da relação concubinária de seu consorte ele não pode dispor sobre a chancela estatal de tal fato, de modo que apenas no âmbito patrimonial as partes envolvidas neste triângulo amoroso poderão livremente dispor sobre o que lhes aprouver. Deste modo, não pode o cônjuge traído que concorda com a relação adulterina de seu consorte pleitear efeitos jurídicos para a mesma e impor a terceiros e ao Estado o seu reconhecimento.
Diante o exposto, verifica-se que o concubinato é uma situação multifacetária e que pode contar com diversas variáveis. A relação concubinária pode ser simultânea a uma família matrimonial ou oriunda da união estável. Do mesmo modo é possível que haja mais de um relacionamento concubinário paralelo (um homem casado que possui duas ou mais concubinas). Na maioria dos casos o cônjuge traído ignora a existência da família paralela, contudo é possível que haja o conhecimento e a anuência de todos os envolvidos.
Isto posto, reitera-se que o concubinato adulterino é uma situação delicada e que merece atenção por parte do Estado, da doutrina e da jurisprudência. Sentimentos diversos e intensos estão envolvidos. Agir com prudência quando da apreciação de casos envolvendo relações concubinárias é conselho valioso para todos os aplicadores do Direito, ainda mais se for considerada a atual ausência de regulamentação do tema.
2. O CONCUBINATO ADULTERINO NA SOCIEDADE BRASILEIRA
A importância da regulamentação das conseqüências dos relacionamentos concubinários só pode ser mensurada após a análise da amplitude do fato em certame na sociedade brasileira. Como exposto supra, o concubinato adulterino é um situação deverás complexa e que envolve elementos subjetivos delicados. Além disto, em muitos dos casos encontra-se na clandestinidade e não é possível cogitar com exatidão o número de casos eis que o cônjuge adultero quase sempre oculta de seu(ua) esposo(a) ou companheiro(a) a existência da simultaneidade conjugal.
Antes de adentrar na realidade contemporânea do concubinato adulterino conveniente uma breve análise da evolução histórica do mesmo.
O bacharel Érico Viana Santos Neto [11] menciona em sua obra de conclusão de curso a obra do historiador Bóris Fausto e assevera que a origem do concubinato adulterino na sociedade brasileira remonta dos primórdios da colonização portuguesa. Sustenta que as primeiras mulheres européias só chegaram ao Brasil meia década após os homens e por tal motivo os europeus acabaram constituindo relações concubinárias com as nativas indígenas.
Fabiana Meira Maia em seus estudos acerca da história do concubinato adulterino cita que o Padre Anchieta mencionou que a mulher indígena via com passividade a poligamia de seus parceiros. [12] Sustenta, ainda, que o doutrinador Gilberto Freyre asseverou que a simultaneidade conjugal foi elemento decisivo para o povoamento do território nacional, uma vez que, num primeiro momento, o número de europeus era escasso, e apenas a hibridização da população possibilitou a abertura do caminho para a interiorização dos colonizadores nas regiões mais distantes do país. [13]
Como visto alhures, após o primeiro período de colonização brasileira as ordenações filipinas consagravam a monogamia como única forma de constituição familiar. O concubinato adulterino era repudiado pela legislação vigente. Todavia, a repressão ao adultério feminino sempre foi mais intensa. Corroborando tal assertiva Fabiana Maia, mencionando o jurista Lafayette Rodrigues Pereira, aduz que:
O jurista Lafayette Rodrigues Pereira, em sua obra Direitos de Família, referência para a redação do Código Civil de 1916, salientava o caráter distinto da conduta delituosa do adultério do cônjuge varão e do cônjuge virago: para que fosse caracterizado o adultério do virago, bastava-se a ocorrência de um mero encontro furtivo com outrem que não seu marido; para a caracterização do adultério por parte do varão, era necessária a manutenção, por parte dele, de uma concubina adulterina, de modo que meras infidelidades fugazes não o qualificariam como adúltero.
Após a independência a proibição da concomitância conjugal ainda se fez presente, de forma que o Código Penal de 1940 tipificava a conduta de adultério como ilícito penal. O crime de bigamia só foi abolido em 2005, como visto.
Carlos Ruzyk demonstra as conjunturas da formação das estruturas familiares da sociedade brasileira ao dispor que no século XIX e início do século XX o modelo de família das elites agrárias, patriarcal e extensa, se impôs no modelo da legislação do Código Civil de 1916 por ser a lei editada pelos detentores do poder econômico e político. [14] A estruturação patriarcal da sociedade e a desigualdade entre os gêneros sexuais (a educação masculina era ostensiva e voltada para a administração do patrimônio familiar enquanto a feminina direcionada aos afazeres domésticos) dada condições propícias a prática do concubinato adulterino, sejam nas classes mais privilegiadas seja nas menos abastadas.
Com efeito, a incidência das relações concubinárias é bem maior no gênero masculino, por questões culturais ligadas a anterior supremacia do sexo masculino sobre o feminino e pelo contato mais direto da mulher na educação e criação da prole, o que constitui obstáculo a manutenção de relacionamentos simultâneos não eventuais.
Com o advento da CRFB/1988 e do CC/2002 a vedação da simultaneidade familiar se manteve, conforme visto, o que não impediu a prática do concubinato adulterino.
Assim sendo, e considerando a complexa natureza humana não é possível cogitar o percentual de pessoas solteiras que estaria disposta a vivenciar um relacionamento adulterino.
Pablo Stolze expõe em seu artigo "Direitos do(a) amante" dados sobre índices de infidelidade. Aponta que para cada mulher que trai existem dois homens infiéis. Cita dados do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo que apontam o estado do Paraná como o que conta com os menores índices de traição masculina (43%). Em São Paulo 44% dos homens são infiéis, segundo a pesquisa, em Minas Gerais 52%, Rio Grande do Sul 60%, Ceará 61% e na Bahia 64%. [15]
Insta destacar que os dados acima não se referem unicamente ao concubinato adulterino e englobam todas as relações adulterinas, ainda que eventuais.
Ainda que não se possa mensurar com exatidão a quantidade de pessoas que vivem relacionamentos adulterinos é cediço que grande parcela da sociedade conhece casos de concubinato, até mesmo no âmbito familiar próximo. Infere-se, pois, que é relevante e pertinente a regulamentação dos efeitos dos relacionamentos concubinatos vez que fato social de tamanha incidência não pode constituir uma lacuna normativa, dando asno a interpretações variadas e instáveis.
3. O CONCUBINATO ADULTERINO COMO AFRONTA AO PRINCÍPIO DA MONOGAMIA
A concomitância de relacionamentos inerente ao concubinato adulterino é ofensa mais que explícita ao princípio da monogamia, norteador do Direito de Família brasileiro. Embora a legislação pátria não reconheça as sociedades conjugais concubinárias como entidades familiares doutrinadores abalizados insistem em atribuir natureza familiar a estes agrupamentos. Como percussora na defesa do concubinato adulterino como entidade familiar, Maria Berenice Dias, alega que não há óbice para o reconhecimento jurídico desta espécie de relacionamento como entidade familiar. [16] Segue a eminente desembargadora o entendimento de Carlos Pianovski para o qual atribuir efeitos à simultaneidade na perspectiva da conjugalidade implica em trazer a tona o atendimento do objeto de proteção da dignidade da pessoa humana. [17]
Berenice Dias, como já exposto, é fervorosa defensora do reconhecimento das "famílias paralelas". Cumpre transcrever trecho de sua obra doutrinária elucidativa de seu entendimento sobre o tema: [18]
Negar a existência de famílias paralelas – quer um casamento e uma união estável, que duas ou mais uniões estáveis – é simplesmente não ver a realidade. Com isso a justiça acaba cometendo enormes injustiças. Mas não é esse sentido que vem se inclinando a doutrina e decidindo a jurisprudência. Ao contrário do que dizem muitos – e do que tenta dizer a lei (CC 1.727) -, o concubinato adulterino importa, sim, pata o direito. Verificadas dias comunidades familiares que tenham entre si um membro em comum, é preciso operar a apreensão jurídica dessas duas realidades. São relações que repercutem no mundo jurídico, pois os companheiros convivem, muitas vezes tem filhos, e há construção patrimonial em comum. Não ver essa relação, não lhe outorgar qualquer efeito, atenta contra a dignidade dos partícipes e filhos porventura existentes
Na mesma linha de entendimento está o autor Anderson Gomes. Para o mencionado doutrinador, o pluralismo familiar consagrado na Constituição Federal de 1988 e o princípio da dignidade da pessoa humana dão asno para o reconhecimento do concubinato adulterino como entidade familiar.
Postas essas noções, temos que não mais se justifica a não inclusão do concubinato adulterino entre as entidades familiares merecedoras de proteção especial pelo Estado brasileiro. Ora, se é verdade que o princípio do pluralismo familiar impôs a abertura do ordenamento para as famílias não explicitadas no texto maior, afastando a clausura de outrora, então o concubinato adulterino também conta com o selo de legitimidade familiar. A sua vez, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana impede o tratamento desigual entre as entidades familiares, porque dessa forma estaríamos amesquinhando as pessoas dos concubinos — mais exatamente da concubina, geralmente a parte que sai mais prejudicada dessas relações, conquanto não tenha sido ela quem quebrou efetivamente o dever da fidelidade ou lealdade conjugal. [19]
A corrente que defende o reconhecimento das relações concubinárias como entidades familiares propõe a mitigação ou declaração de inexistência do princípio da monogamia. Os adeptos deste posicionamento entendem que não há previsão legal do princípio da monogamia, de modo que as espécies de famílias mencionadas na CFRB/1988 são meramente exemplificativas. [20]
É fato público e notório que a sociedade contemporânea conta com diversos exemplos de relações concubinárias, prática deverás comum no âmbito da conjugalidade. Sabidamente a complexa natureza humana pode se dispor a sustentar relacionamentos múltiplos, com ou sem o consentimento e o conhecimento de todos os envolvidos neste polígono amoroso. É possível, também, a construção de patrimônio comum entre os concubinos. Ademais, é cediço que em muitas dessas relações há o advento de prole e que a legislação vigente veda qualquer espécie de discriminação para com esta. [21] Todavia, a análise da possibilidade de conceder à relação concubinária o status de família precisa levar em consideração o aspecto pessoal dos parceiros e cônjuges envolvidos, bem como os princípios norteadores do direito de família (em especial o da monogamia) e a segurança jurídica.
A legislação vigente consagra o princípio da monogamia que, por diversas razões, demonstra ser a mais acertada forma de nortear as organizações familiares. Tal assertiva é ainda mais precisa quando a contextualizamos a realidade sócio-cultural brasileira. Senão vejamos.
Todo o histórico do conceito de família, exposto nos capítulos anteriores, denota que o Brasil é um país que sofreu e ainda sofre forte influência das religiões cristãs, em especial a Católica. Também restou demonstrado que o figura da mulher nas unidades familiares alcançou o mesmo patamar outrora atribuído apenas aos homens, tanto o é que a CRFB/1988 reconheceu o status de família a família monoparental e o CC/2002 está no sentido da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges que exercem em conjunto o poder familiar (outrora pátrio poder).
Assim, em uma nação onde reina a igualdade entre homens e mulheres impossível cogitar-se a aceitação social e tampouco jurídica da simultaneidade familiar. Em que pese a existência de diversos exemplos de relacionamentos concubinários, é inecrível que a poligamia vigente em nações de religião islâmica possa ser aceita e reconhecida juridicamente.
Ainda que não se cogite a possibilidade de múltiplos matrimônios, pensar no reconhecimento jurídico do concubinato como entidade familiar é pensar que os cônjuges podem estar legalmente obrigados a suportar as conseqüências jurídicas do adultério de seus companheiros, o que seguramente não é viável. E isto porque a igualdade jurídica entre homens e mulheres vigente no Brasil e a influência da religião cristã não se coadunam com o reconhecimento do concubinato. Uma, pois no plano subjetivo é difícil a aceitação de compartilhamento de seu cônjuge, resultado da formação cultural brasileira, predominantemente cristã. Tanto que na maioria dos casos o cônjuge da família nuclear desconhece a existência da figura do(a) amante. Duas, pois a existência da concomitância conjugal pressupõe a de superioridade do cônjuge adúltero, que se coloca em uma situação conjugal de vantagem perante o outro que deve aceitar o concubinato, em explícita afronta ao princípio da igualdade entre os membros das famílias. [22]
Além deste aspecto o reconhecimento do concubinato como entidade familiar traz imensurável segurança jurídica aos cônjuges que, de boa fé, ignoram a existência desta "família" paralela. Ora, imagine-se que sejam dados aos concubinos os mesmos direitos dados aos companheiros. Qual seria a garantia de manutenção do patrimônio da família central? Seguramente o cônjuge que ignore a existência desta "família" paralela não poderia cogitar o valor de sua real meação nos bens havidos na constância do casamento ou da união estável. Outrossim, seria impossível mensurar, por exemplo, o valor de um possível benefício previdenciário deixado por seu cônjuge.
Suponha-se um caso de pluralismo conjugal onde haja uma família central e três paralelas, todas ignoradas pelo cônjuge traído. Certamente a segurança jurídica da família constitucionalmente reconhecida seria mitigada acaso a lei atribuísse status de família aos relacionamentos adulterinos.
Outro ponto que precisa ser levantado diz respeito ao ambiente familiar monogâmico, que traz melhores condições para o desenvolvimento da prole. Camilla Fittipaldi Duarte Jales em seu artigo "O Concubinato adulterino sob o prisma do Código Civil de 2002" menciona elucidativo ensinamento de Pinto Ferreira que merece transcrição [23]:
[...] citando ensinamentos de Pinto Ferreira, reconhece a primazia do princípio monogâmico no ordenamento jurídico pátrio, mas não olvida da existência de uniões de fato merecedoras de tutela jurídica ao dissertar que a família monogâmica [...] tem evidentemente diversas vantagens sobre a poligâmica. Entre outras, caberia mostrar que a monogamia permite uma melhor criação da prole, um superior desvelo pela velhice, uma profunda estabilidade do grupo social e corresponde à necessidade biológica da divisão numérica eqüitativa, existente na natureza entre o sexo masculino e o feminino, sem levar em conta, ainda, que ela permite uma vida espiritual mais aperfeiçoada nas relações domésticas.
Destarte, o relacionamento monogâmico traz melhores condições para o desenvolvimento da prole eis que os genitores podem dispensar mais tempo na sua educação (o que não ocorre na existência de relacionamentos múltiplos), na ocorrência de enfermidade de um dos cônjuges há mais estabilidade e segurança de amparo familiar e os sentimentos existentes entre os conviventes são mais estáveis e com menor número de desentendimentos.
A família monogâmica é a que assegura maior estabilidade e o reconhecimento jurídico do concubinato adulterino como entidade familiar é uma afronta a incontestável supremacia do princípio da monogamia no Direito de Família brasileiro.
Thiago de Almeida Quadros, em seu artigo "O Princípio da Monogamia e o Concubinato Adulterino" assim assevera:
Deveras, a quebra do modelo matrimonializado de família consiste em uma verdade insofismável. Entretanto, a superação deste modelo único não implica a exposição do Direito de Família a toda e qualquer demonstração de afeto. A família, ainda que tenha se desvencilhado dos elementos religioso e formalístico, ainda carrega no seu bojo o elemento estabilidade. Constituir uma família ainda significa optar por uma relação estável, a qual é marcada pela comunhão de esforços em prol de um núcleo que transcende ao plano individual. Neste diapasão, sem sombra de dúvidas, as relações adulterinas são causa de desestabilização das relações familiares. Isto é, consistem na negação do que se entende, no mundo ocidental, por família. O concubinato adulterino representa a prevalência de interesses individuais, os quais muitas vezes não passam de mera satisfação sexual, em detrimento do grupo, frustrando-se as expectativas tanto do consorte – entenda-se em sentido lato, a fim de abarcar a esposa, o marido, o companheiro ou a companheira – quanto dos filhos. Assim sendo, não há espaço no Direito de família para o concubinato adulterino. [24]
Feitas estas ponderações depreende-se que o reconhecimento do concubinato adulterino como entidade familiar não se mostra em consonância com os princípios norteadores do Direito de Família pátrio, tampouco traz qualquer benefício aos relacionamentos familiares, razão pela qual é desarrazoado e não deve ser aplicado pelos operadores do Direito.
Entrementes, não se pode olvidar que ainda que não se reconheça o concubinato adulterino como entidade familiar ele é uma realidade na sociedade contemporânea que precisa ser disciplinada. A disciplina de efeitos do concubinato adulterino não implica, necessariamente, no seu reconhecimento como entidade familiar. Cuida-se de um ilícito contratual (ofende o dever de fidelidade oriundo do casamento, que possui natureza eminentemente contratual) de grande incidência e de repercussão na vida dos seus partícipes. Deixar de disciplinar os efeitos do concubinato adulterino é deixar sem qualquer perspectiva um grande número de pessoas que convive com esta realidade, na condição de concubino ou de cônjuge traído.