6. VISÃO CRIMINOLÓGICA
Por derradeiro, o conceito de funcionário público na lei penal deve ser analisado sob o olhar criminológico, deve ser analisado não sob o ponto de vista do desviante, mas do processo de criminalização.
Não se questiona o interesse social e os fundamentos da defesa do patrimônio público. O Estado social brasileiro traçado na constituição possui um papel atuante e garantidor, deve ter como fim principal garantir a efetividade dos direitos fundamentais, assegurar a todo brasileiro a dignidade da pessoa humana. Para tanto o Estado deve regulamentar e fomentar a atividade privada bem como prestar serviços públicos de qualidade ao cidadão, essas atividades poderão ser alcançadas apenas com a existência de um patrimônio público cuja preservação e utilização merece fundamental cuidado e relevância jurídica.
Diante da relevância jurídica do controle do patrimônio público a pergunta que deve ser feita é se o direito penal seria o caminho correto? A criminalização primária por meio de leis como o conceito de funcionário público do artigo 327, do Código Penal, com a utilização de conceitos indeterminados e extremamente amplo é o melhor caminho para o controle da moralidade administrativa, da preservação do patrimônio público?
A resposta para tais perguntas exigiria um aprofundamento teórico incompatível com a proposta do presente trabalho, contudo aí estão os questionamentos que merecem ser aprofundados pela doutrina nacional.
O que se pode afirmar é que a ampliação do conceito de funcionário público para fins penais possui um efeito imediato que é o de desviar a atenção da justiça criminal dos maiores causadores de danos sociais. Isto porque, a relação de poder que se impõe na criação e na aplicação das leis penais se reflete também no potencial de danosidade social na ação de seus detentores, em outras palavras, aqueles que detém poder para criar e influenciar na criação de leis bem como direcionar o desenvolvimento do conhecimento científico são os que detém maior poder para causar prejuízos ao patrimônio público. Ao se ampliar o conceito de funcionário público deixa-se de focar nestes agentes de maior poder para que as atenções se voltem aqueles de menor poder, ao invés de se combater possíveis ações ilícitas de um governador de estado o aparelho judicial coloca suas energias no combate aos possíveis ilícitos causados trabalhadores terceirizados em uma empresa contratada por uma entidade paraestatal.
O que se propõe não é distinção entre ilícitos grandes e ilícitos pequenos, mas sim que a realidade social e penal do estado brasileiro não pode ser analisada deixando-se de lado sua característica de seletividade, bem como que não se pode negar realidades como a cifra negra da criminalidade e a função simbólica do direito penal. Deve-se ter claro que enquanto se expõe a comunidade as rígidas sanções contra uma conduta ilícita inúmeras outras estão sendo praticadas e que o caminho da defesa do patrimônio público, da moralidade administrativa, enfim, das razões de existência do Estado e do alcance de suas metas não pode ser ilusoriamente trilhado por meio do direito penal.
CONCLUSÃO
Diante dos argumentos expostos acima relativos ao artigo 327 do Código Penal que dita o conceito de funcionário público para os fins da legislação penal brasileira pode-se concluir que muito há para ser estudado e desenvolvido pela doutrina brasileira.
É necessário um aprofundamento interdisciplinar do assunto. O conceito de funcionário público em matéria penal somente poderá ser analisado com correção quando confrontado com a matéria de fundo constitucional que o compõe. Os institutos presentes no conceito legal de funcionário público devem ser entendidos em razão de sua definição administrativista e não simplesmente definidos de forma aleatória para fundamentar uma falsa necessidade de ampliação do poder punitivo do Estado.
Não se pode analisar o estudado artigo 327 deixando de aplicar os postulados dogmáticos fruto da evolução histórica do direito penal como garantia do cidadão frente ao Estado. A confrontação com os princípios penais garantidores e com a moderna teoria do injusto penal é obrigatória no estudo dos tipos penais de crimes contra a administração pública.
Deve-se questionar a eficiência do direito penal e da disciplina imposta pelo conceito de funcionário público na lei penal como meio de defesa do patrimônio público, da moralidade administrativa e da eficiência estatal na prestação de serviços a sociedade. Existem inúmeros problemas camuflados pelo processo de criminalização dos ilícitos administrativos.
Destarte, os tipos penais de crimes contra a administração pública devem ser objeto de análise mais detida no âmbito jurídico nacional a fim de que se possam encontrar meios concretos e firmes na efetivação do Estado social brasileiro traçado no texto constitucional. Assim, dar-se-á mais um passo para que a dignidade da pessoa humana deixe de ser uma regra sem efetividade presente na ordem jurídica abstrata e se configure como direito concreto de todos.
Notas
- MESTIERI, João. Teoria Elementar do Direito Criminal, Parte Geral, Rio de Janeiro, edição do autor, 1990, p. 90
- Sobre a função do jurista na interpretação cabe destacar o seguinte ensinamento de Tercio Ferraz Jr.: "Na verdade, o propósito do jurista não é simplesmente compreender um texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento." FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, 4ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2003, p. 256)
- A expressão direito penal democrático é utilizada neste trabalho como ligação aos estudos dogmáticos do direito penal desenvolvidos sob os postulados do Estado Democrático de Direito, especialmente a dignidade da pessoa humana. Neste contexto o direito penal não pode ser visto como meio de controle social, mas sim como posição de garantia do cidadão diante do poder punitivo do Estado.
- Conforme ensina Lenio Streck a hermenêutica e a crítica não se anulam, pelo contrário somam uma a outra. O trabalho criativo da hermenêutica de base gadamerniana que acaba com a relação sujeito-objeto demonstrando por meio da linguagem a relação sujeito-sujeito expõe o caráter ideológico carregado pelo texto legal. Tanto o trabalh da hermenêutica como o da teoria crítica do direito demonstram que a lei não pode ser entendida como forma pura, pretensamente neutra e imparcial em uma interpretação ahistórica e acultural, mas como fruto da ideologia e do discurso das classes dominantes que as constroem, editam e aplicam: "fazer hermenêutica jurídica é realizar um processo de compreensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o direito de soslaio, rompendo-se com (um)a hermé(nêu)tica jurídica tradicional-objetivante prisioneira do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência." - STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 8ª ed., Porto Alegre, 2009, p. 236
- O direito penal e o direito administrativo, ambos ramificações do direito público, estabelecem as principais regras jurídicas das relações entre Estado e cidadão, justificando o destaque no texto.
- COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 980.
- MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 14ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 27
- Deve se tomar cuidado ao falar em interesse punitivo. O Estado não possui nenhum interesse punitivo, assim como não possui direito subjetivo de punir, o que existe é um poder constitucional de punir penalmente nos limites da lei.
- "A interpretação das leis penais, para determinar seu alcance e propor um sistema coerente de decisões às agencias judiciais, requer a incorporação de outros dados do mundo, porque a legislação penal é produto de atos do poder inseridos em uma realidade dinâmica e complexa. Sem, tais dados, o direito penal seria praticamente impossível ou quase inconcebível.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 23ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2010.
- NUCCI, Guilherme de Souza.Código Penal Comentado, 7ª ed., São Paulo, RT, 2007. p. 1031.
- JUSTEN FILHO, Marçal.Curso de Direito Administrativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 250/251.
- Sobre as formas extensivas e restritivas de interpretação das leis cabe destacar: "uma norma pode oferecer um horizonte interpretativo extremamente estreito, ensejando uma interpretação meramente especificadora ou declaratória (quando fixa um prazo ou estabelece uma certa idade para a prática de um ato, por exemplo) ou, ao contrário, possibilitar um significativo alargamento ou o fechamento, maior ou menor, da interpretação (por exemplo, quando contém conceitos indeterminados), possibilitando uma interpretação extensiva ou restritiva." (MELO, Carlos Antonio de Almeida. Interpretação, Hermenêutica e Horizonte Interpretativo, in Estudos de Teria Geral do Direito, org. Ivan Gueiros Curi, Juruá, Curitiba, 2006. p. 175)
- CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, Parte Geral, 3ª ed., Curitiba, Lúmen Júris – ICPC, 2008, p. 65.
- BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Vol. 4, São Paulo, Saraiva, 2004. p. 446.
Em princípio, a construção do tipo normativo de leis penais constitucionalmente admitidas (como instrumento que permita excluir as restantes, por serem inconstitucionais) impõe o conhecimento do direito constitucional e do direito internacional (em particular, do direito internacional dos direitos humanos). Por outro lado, o direito penal não pode aperfeiçoar seus conceitos sem levar em conta outras leis que lhe impõe conteúdos normativos (civis, comerciais etc)." (ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – I, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 186)