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O conceito de funcionário público na lei penal.

Uma análise do artigo 327 do Código Penal

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Agenda 12/01/2011 às 10:52

6. VISÃO CRIMINOLÓGICA

Por derradeiro, o conceito de funcionário público na lei penal deve ser analisado sob o olhar criminológico, deve ser analisado não sob o ponto de vista do desviante, mas do processo de criminalização.

Não se questiona o interesse social e os fundamentos da defesa do patrimônio público. O Estado social brasileiro traçado na constituição possui um papel atuante e garantidor, deve ter como fim principal garantir a efetividade dos direitos fundamentais, assegurar a todo brasileiro a dignidade da pessoa humana. Para tanto o Estado deve regulamentar e fomentar a atividade privada bem como prestar serviços públicos de qualidade ao cidadão, essas atividades poderão ser alcançadas apenas com a existência de um patrimônio público cuja preservação e utilização merece fundamental cuidado e relevância jurídica.

Diante da relevância jurídica do controle do patrimônio público a pergunta que deve ser feita é se o direito penal seria o caminho correto? A criminalização primária por meio de leis como o conceito de funcionário público do artigo 327, do Código Penal, com a utilização de conceitos indeterminados e extremamente amplo é o melhor caminho para o controle da moralidade administrativa, da preservação do patrimônio público?

A resposta para tais perguntas exigiria um aprofundamento teórico incompatível com a proposta do presente trabalho, contudo aí estão os questionamentos que merecem ser aprofundados pela doutrina nacional.

O que se pode afirmar é que a ampliação do conceito de funcionário público para fins penais possui um efeito imediato que é o de desviar a atenção da justiça criminal dos maiores causadores de danos sociais. Isto porque, a relação de poder que se impõe na criação e na aplicação das leis penais se reflete também no potencial de danosidade social na ação de seus detentores, em outras palavras, aqueles que detém poder para criar e influenciar na criação de leis bem como direcionar o desenvolvimento do conhecimento científico são os que detém maior poder para causar prejuízos ao patrimônio público. Ao se ampliar o conceito de funcionário público deixa-se de focar nestes agentes de maior poder para que as atenções se voltem aqueles de menor poder, ao invés de se combater possíveis ações ilícitas de um governador de estado o aparelho judicial coloca suas energias no combate aos possíveis ilícitos causados trabalhadores terceirizados em uma empresa contratada por uma entidade paraestatal.

O que se propõe não é distinção entre ilícitos grandes e ilícitos pequenos, mas sim que a realidade social e penal do estado brasileiro não pode ser analisada deixando-se de lado sua característica de seletividade, bem como que não se pode negar realidades como a cifra negra da criminalidade e a função simbólica do direito penal. Deve-se ter claro que enquanto se expõe a comunidade as rígidas sanções contra uma conduta ilícita inúmeras outras estão sendo praticadas e que o caminho da defesa do patrimônio público, da moralidade administrativa, enfim, das razões de existência do Estado e do alcance de suas metas não pode ser ilusoriamente trilhado por meio do direito penal.

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CONCLUSÃO

Diante dos argumentos expostos acima relativos ao artigo 327 do Código Penal que dita o conceito de funcionário público para os fins da legislação penal brasileira pode-se concluir que muito há para ser estudado e desenvolvido pela doutrina brasileira.

É necessário um aprofundamento interdisciplinar do assunto. O conceito de funcionário público em matéria penal somente poderá ser analisado com correção quando confrontado com a matéria de fundo constitucional que o compõe. Os institutos presentes no conceito legal de funcionário público devem ser entendidos em razão de sua definição administrativista e não simplesmente definidos de forma aleatória para fundamentar uma falsa necessidade de ampliação do poder punitivo do Estado.

Não se pode analisar o estudado artigo 327 deixando de aplicar os postulados dogmáticos fruto da evolução histórica do direito penal como garantia do cidadão frente ao Estado. A confrontação com os princípios penais garantidores e com a moderna teoria do injusto penal é obrigatória no estudo dos tipos penais de crimes contra a administração pública.

Deve-se questionar a eficiência do direito penal e da disciplina imposta pelo conceito de funcionário público na lei penal como meio de defesa do patrimônio público, da moralidade administrativa e da eficiência estatal na prestação de serviços a sociedade. Existem inúmeros problemas camuflados pelo processo de criminalização dos ilícitos administrativos.

Destarte, os tipos penais de crimes contra a administração pública devem ser objeto de análise mais detida no âmbito jurídico nacional a fim de que se possam encontrar meios concretos e firmes na efetivação do Estado social brasileiro traçado no texto constitucional. Assim, dar-se-á mais um passo para que a dignidade da pessoa humana deixe de ser uma regra sem efetividade presente na ordem jurídica abstrata e se configure como direito concreto de todos.


Notas

  1. MESTIERI, João. Teoria Elementar do Direito Criminal, Parte Geral, Rio de Janeiro, edição do autor, 1990, p. 90
  2. Sobre a função do jurista na interpretação cabe destacar o seguinte ensinamento de Tercio Ferraz Jr.: "Na verdade, o propósito do jurista não é simplesmente compreender um texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento." FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, 4ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2003, p. 256)
  3. A expressão direito penal democrático é utilizada neste trabalho como ligação aos estudos dogmáticos do direito penal desenvolvidos sob os postulados do Estado Democrático de Direito, especialmente a dignidade da pessoa humana. Neste contexto o direito penal não pode ser visto como meio de controle social, mas sim como posição de garantia do cidadão diante do poder punitivo do Estado.
  4. Conforme ensina Lenio Streck a hermenêutica e a crítica não se anulam, pelo contrário somam uma a outra. O trabalho criativo da hermenêutica de base gadamerniana que acaba com a relação sujeito-objeto demonstrando por meio da linguagem a relação sujeito-sujeito expõe o caráter ideológico carregado pelo texto legal. Tanto o trabalh da hermenêutica como o da teoria crítica do direito demonstram que a lei não pode ser entendida como forma pura, pretensamente neutra e imparcial em uma interpretação ahistórica e acultural, mas como fruto da ideologia e do discurso das classes dominantes que as constroem, editam e aplicam: "fazer hermenêutica jurídica é realizar um processo de compreensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o direito de soslaio, rompendo-se com (um)a hermé(nêu)tica jurídica tradicional-objetivante prisioneira do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência." - STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 8ª ed., Porto Alegre, 2009, p. 236
  5. O direito penal e o direito administrativo, ambos ramificações do direito público, estabelecem as principais regras jurídicas das relações entre Estado e cidadão, justificando o destaque no texto.
  6. COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 980.
  7. MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 14ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 27
  8. Deve se tomar cuidado ao falar em interesse punitivo. O Estado não possui nenhum interesse punitivo, assim como não possui direito subjetivo de punir, o que existe é um poder constitucional de punir penalmente nos limites da lei.
  9. "A interpretação das leis penais, para determinar seu alcance e propor um sistema coerente de decisões às agencias judiciais, requer a incorporação de outros dados do mundo, porque a legislação penal é produto de atos do poder inseridos em uma realidade dinâmica e complexa. Sem, tais dados, o direito penal seria praticamente impossível ou quase inconcebível.
  10. Em princípio, a construção do tipo normativo de leis penais constitucionalmente admitidas (como instrumento que permita excluir as restantes, por serem inconstitucionais) impõe o conhecimento do direito constitucional e do direito internacional (em particular, do direito internacional dos direitos humanos). Por outro lado, o direito penal não pode aperfeiçoar seus conceitos sem levar em conta outras leis que lhe impõe conteúdos normativos (civis, comerciais etc)." (ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – I, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 186)

  11. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 23ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2010.
  12. NUCCI, Guilherme de Souza.Código Penal Comentado, 7ª ed., São Paulo, RT, 2007. p. 1031.
  13. JUSTEN FILHO, Marçal.Curso de Direito Administrativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 250/251.
  14. Sobre as formas extensivas e restritivas de interpretação das leis cabe destacar: "uma norma pode oferecer um horizonte interpretativo extremamente estreito, ensejando uma interpretação meramente especificadora ou declaratória (quando fixa um prazo ou estabelece uma certa idade para a prática de um ato, por exemplo) ou, ao contrário, possibilitar um significativo alargamento ou o fechamento, maior ou menor, da interpretação (por exemplo, quando contém conceitos indeterminados), possibilitando uma interpretação extensiva ou restritiva." (MELO, Carlos Antonio de Almeida. Interpretação, Hermenêutica e Horizonte Interpretativo, in Estudos de Teria Geral do Direito, org. Ivan Gueiros Curi, Juruá, Curitiba, 2006. p. 175)
  15. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, Parte Geral, 3ª ed., Curitiba, Lúmen Júris – ICPC, 2008, p. 65.
  16. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Vol. 4, São Paulo, Saraiva, 2004. p. 446.
Sobre o autor
Caio Marcelo Cordeiro Antonietto

Advogado Criminalista, inscrito na OAB/PR sob n. 36.917. Professor de Direito Penal do Curso de Direito da FAMEC - Faculdade Metropolitana de Curitiba. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela UFPR-ICPC. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo IBCCRIM - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTONIETTO, Caio Marcelo Cordeiro. O conceito de funcionário público na lei penal.: Uma análise do artigo 327 do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2751, 12 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18250. Acesso em: 23 dez. 2024.

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