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Direito Penal pós-CF/88: um olhar hermenêutico sobre o princípio da legalidade

Agenda 18/01/2011 às 18:53

RESUMO

O presente ensaio pretende traçar, em linhas gerais, algumas das modificações trazidas ao Direito Penal com o advento da Constituição federal de 1988, mormente com relação à proteção dos bens jurídicos e à filtragem constitucional. Assim, partindo de uma análise do princípio da legalidade (formal e material) buscar-se-á ressaltar alguns traços distintivos de uma hermenêutica própria de um Estado Democrático de Direito, de onde se impõe a diferenciação entre vigência e validade, legalidade e tipicidade formais e materiais.

Palavras-chave: Direito penal – Constituição Federal de 1988 - Hermenêutica


Uma das grandes conquistas do direito penal moderno, cujas bases foram fixadas ainda no Século das Luzes, foi a formulação do princípio da legalidade dos delitos e das penas [01]. Tal postulado, originariamente proposto por Beccaria, em 1764, afigura-se nos tempos atuais como uma das mais importantes garantias fundamentais do cidadão frente ao Estado.

Segundo esse princípio, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Tal garantia vem inscrita, no Brasil, tanto na Constituição da República de 1988 (art. 5º, XXXIX), quanto no Código Penal, em seu artigo inaugural.

Assim, somente a lei (em sentido estrito) elaborada em consonância com a forma previamente estabelecida pelo legislador constituinte é fonte criadora de delitos e de penas. Nesse sentido, Greco (2007, p. 94) salienta que

é o princípio da legalidade, sem dúvida alguma, o mais importante do Direito penal (...). A lei é a única fonte do Direito Penal quando se quer proibir ou impor condutas sob a ameaça de sanção. Tudo o que não for expressamente proibido é lícito em Direito Penal.

Para Batista (2007, p. 68), a principal função do princípio da legalidade é a constitutiva, pois é por meio dela que "se estabelece a positividade jurídico-penal, com a criação do crime". Assim, salienta o autor que ao mesmo tempo em que o referido princípio exclui as penas ilegais (função de garantia), ele constitui a pena legal (função constitutiva).

Para que se compreenda adequadamente o princípio da legalidade penal, deve o mesmo ser visto sob dois prismas, o formal e o material. Deve ser analisado, primeiramente, à luz das regras procedimentais constitucionalmente previstas para a elaboração de determinado modelo abstrato de conduta a ser incriminado na órbita penal. Assim, não havendo vícios inerentes ao procedimento legislativo, pode-se dizer que está preenchida a legalidade formal.

Em contrapartida, é necessário que se verifique a legalidade em seu aspecto material, sendo esta a questão fundamental a ser enfrentada e discutida hodiernamente. A legalidade material, para além da mera legalidade (FERRAJOLI, 2004, p. 66), impõe que o legislador, por meio da tipificação de delitos, busque resguardar, sobretudo, aqueles bens jurídicos extraídos da própria Constituição e diretamente ligados à garantia dos direitos fundamentais.

Frise-se que em um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CR/88), que tem a dignidade da pessoa humana como fundamento e que preza pela validade das leis e sua conformação constitucional, é imprescindível que se verifique o conteúdo dos atos emanados do Poder Legislativo. Nesse sentido, para que à determinada pessoa seja atribuída a prática de um crime, mais do que amoldar a sua conduta ao tipo penal abstratamente previsto, é imprescindível que sua ação/omissão ofenda gravemente o bem jurídico tutelado pela norma e que este possua, por sua vez, estreita relação com os direitos humanos positivados na Lei Fundamental.

Desse modo, conforme Andrade (2009),

a conduta tida por criminosa, para além da adequação típica formal, merece análise à luz dos princípios de Direito Penal emergentes do Estado Democrático de Direito, a partir do fundamento da dignidade da pessoa humana, que impõe uma atuação seletiva e subsidiária do Direito Penal, para a proteção apenas dos valores tidos como indispensáveis à ordem social, a exemplo da vida, da liberdade e da propriedade, quando efetivamente ofendidos (tipicidade material) [02].

Mutatis mutandis, na atual quadra do Direito, não cabe ao magistrado somente aplicar/dizer, acriticamente, o Direito ao caso concreto, pois nem sempre lei vigente se traduz em lei válida, evidência que, por vezes, somente pode ser colhida com uma adequada (pré-) compreensão do constitucionalismo contemporâneo.

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Isso nos remete novamente à diferenciação existente entre vigência e validade [03] das leis. No Estado Constitucional de Direito, mais do que a vigência, deve ser adequadamente observada a validade das leis penais. Assim, Greco (2007, p. 99) atenta que

a lei penal formalmente editada pelo Estado pode, decorrido período de vacatio legis, ser considerada em vigor. Contudo, a sua vigência não é o suficiente, ainda, para que ela possa vir a ser efetivamente aplicada. Assim, somente depois da aferição de sua validade, isto é, somente depois de conferir sua conformidade com o texto constitucional é que ela terá plena aplicabilidade, sendo considerada, portanto, válida.

A validade perquirida pelo intérprete de determinada norma penal pode se dar, muitas vezes, na análise de um caso concreto, ocasião em que o magistrado, utilizando-se dos meios fornecidos pelo sistema constitucional – mormente pela jurisdição constitucional difusa -, fará a adequada filtragem do tipo penal ao qual tenha se subsumido [04] determinada conduta (ação ou omissão).

Ainda que no direito penal a ideia de subsunção da conduta à norma seja de extrema relevância, pois é por meio dela que se verificará a ocorrência da tipicidade [05], não deve-se olvidar que "na interpretação das normas jurídicas, só aparentemente se trata de um processo em que a norma aplicável se coloca, à semelhança de um metro articulado, sobre a situação de fato a julgar e esta é por ela mensurada" (LARENZ, 1997, p. 293). Isso porque na atualidade não há que se conceber a existência do clássico apotegma segundo o qual in claris cessat interpretatio [06], haja vista que, conforme Eco [07] (apud BARROSO, 2009, p. 1),

um texto, depois de ter sido separado do seu emissor e das circunstâncias concretas da sua emissão, flutua no vácuo de um espaço infinito de interpretações possíveis (...). A linguagem diz sempre algo mais do que o seu inacessível sentido literal, que já se perdeu desde o início da emissão textual.

Embora tal afirmação afigure-se por demais relativista [08], porquanto vislumbra a possibilidade de um "espaço infinito de interpretações possíveis", o que deve ser buscado pelo operador do Direito, hoje, é uma interpretação das normas penais adequada à Constituição. Sendo assim, Streck (2009, p. 546) ensina que

a decisão (resposta) estará adequada na medida em que for respeitada, em maior grau, a autonomia do direito (que se pressupõe produzido democraticamente), evitada a discricionariedade (além da abolição de qualquer atitude arbitrária) e respeitada a coerência e a integridade do direito, a partir de uma detalhada fundamentação.

Ademais, no exercício da jurisdição constitucional, tendo por parâmetro os diversos critérios penais-constitucionais [09], é imprescindível que o intérprete/juiz possua uma satisfatória pré-compreensão [10] da Lei Fundamental, pois, de outro modo, corre-se o grave risco de haver decisões não amparadas ou conformadas constitucionalmente.

Conclui-se, assim, que por uma adequada pré-compreensão do próprio constitucionalismo em que se ergue e se concretiza o Estado Democrático de Direito, o intérprete poderá aplicar adequadamente as normas penais, seja evitando que se reprove condutas que não lesem de forma grave os bens jurídicos (übermassverbot) [11], seja impondo sanções nos casos em que a proteção conferida ao bem se mostre deficiente (untermassverbot).


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Renato Faloni de. Estado Democrático de Direito e posse de droga para consumo próprio . Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2276, 24 set. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/13563>. Acesso em: 10 ago. 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

______. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. 4. ed. Traducción de Perfecto Andrés Ibáñez y Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 2004.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 8.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, v. I.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

STRECK, Lenio Luiz. A permanência do caráter compromissório (e dirigente) da constituição brasileira e o papel da jurisdição constitucional: uma abordagem à luz da hermenêutica filosófica. In: Revista do Instituto de Pesquisa e Estudos: Divisão Jurídica. Instituição Toledo de Ensino de Bauru. n. 39, p. 75-119 jan./abr. 2004.

______. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (üntermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. 2007. Disponível em: <http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=66&Itemid=40>. Acesso em: 10 out. 2010.

______. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

______. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009.

SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

  1. Nas palavras de Batista (2007, p. 65), o princípio da legalidade "surge historicamente com a revolução burguesa e exprime, em nosso campo, o mais importante estágio do movimento então ocorrido na direção da positividade jurídica e da publicização da reação penal".
  2. Com base em uma hermenêutica contemporânea e balisada segundo o atual paradigma de Estado de Direito, tendo por objeto o art. 28, da Lei nº. 11.343/06, o autor conclui que o referido tipo penal "quando colocado à prova diante dos princípios da lesividade e da insignificância, corolários do fundamento da dignidade da pessoa humana, não subsiste, devendo o jurista, sobretudo aquele que decide, realizar o controle difuso de constitucionalidade, pois o mencionado tipo penal viola princípios extraídos do perfil constitucional adotado pela República Federativa do Brasil".
  3. Conforme Streck (2007, p. 6), "uma nova postura hermenêutica – sustentada na ontologische Wendung e na revolução copernicana (Jorge Miranda) que atravessou o direito constitucional a partir do segundo pós-guerra – implica a necessária diferenciação entre texto e norma e entre vigência e validade. Este é o ponto de partida e de chegada da filtragem hermenêutico-constitucional".
  4. Cumpre ressaltar que o conceito de subsunção em muito se confunde com a própria noção de tipicidade formal, sendo esta a perfeita adequação de uma conduta ao tipo penal ou, em outras palavras, "a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador" (GRECO, 2007, p. 156).
  5. A tipicidade, em sentido amplo, inserida no conceito de fato típico, contribui para a própria existência do delito. Noutro giro, a inexistência da tipicidade (formal ou material) levará à própria inexistência da infração penal.
  6. Conforme ensinamento de Suannes (2004, p. 262), "longe, muito longe vai o tempo em que se afirmava que cessat in claris interpretatio. O simples fato de afirmar-se ser o texto claro já supõe haver sido ele lido e entendido (i.e., interpretado). Logo, aquela afirmação contém um contrassenso".
  7. ECO, Umberto. Les limites de l’interprétacion. Tradução de Myriem Bouzaher. Paris: Bernard Grasset, 1992, p. 8.
  8. Apoiado em Heidegger, Streck (2009, p. 312) salienta que a atribuição de sentido ao texto jurídico, da qual se extrai a norma, não significa que o intérprete esteja autorizado a "dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa", isto é, "o texto já aparece na ‘sua’ norma, produto da atribuição de sentido do intérprete, sendo que, para isto, como será demonstrado em seguida, não existe um processo de discricionariedade do intérprete, uma vez que a atribuição de sentido ex-surgirá de sua situação hermenêutica, da tradição em que está inserido, enfim, a partir de seus pré-juízos".
  9. Para tanto, há que se levar também em consideração o que a doutrina contemporânea denomina de "constitucionalização do direito". Cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 377-382.
  10. O sentido aqui adotado de pré-compreensão é o mesmo utilizado por Streck (2004, p. 112) segundo o qual a interpretação de um texto está condicionada pela pré-compreensão que se tem acerca da Constituição, do constitucionalismo, da teoria do Estado, da sociedade etc. E prossegue: os pré-juízos do intérprete estarão, assim, "constitucionalizados" ou não (na medida em que se está mergulhado na "baixa constitucionalidade").
  11. Frise-se, nesse caso, que de grande valia é o reconhecimento dos princípios da lesividade e da intervenção mínima, pelos quais se exclui a tipicidade, no seu aspecto material. Acerca do segundo princípio, ver ROBERTI, Maura. A intervenção mínima como princípio no direito penal brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001.
Sobre o autor
Nairo José Borges Lopes

Professor do Curso de Direito da Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS). Mestre em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL/MG). Bacharel em Direito pela UNIFENAS. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Nairo José Borges. Direito Penal pós-CF/88: um olhar hermenêutico sobre o princípio da legalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2757, 18 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18297. Acesso em: 24 nov. 2024.

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