Smário:1 - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. BREVES CONSIDERAÇÕES GERAIS. 2 – POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES. REQUISITO SUBJETIVO. REINCIDÊNCIA DO AGENTE. 3 - DELITOS DE PEQUENA MONTA E A NECESSÁRIA ATIVIDADE ESTATAL. 4 – CONCLUSÃO.
1 - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. BREVES CONSIDERAÇÕES GERAIS.
O princípio da insignificância surgiu no Direito Romano atrelado a esfera civil, fundado no "minimus non curat praetor", isto é, o direito não deve ocupar-se de assuntos irrelevantes. Somente na década de 60, passou a integrar o sistema penal por meio dos estudos de Claus Roxin.
Por longo tempo, travaram-se discussões sobre a admissibilidade da bagatela como causa de exclusão supralegal da tipicidade, no entanto a questão foi superada e a doutrina e a jurisprudência já a reconhecem de forma pacífica. A discussão atual reside nos seus limites e critérios, mais especificamente, nos requisitos (objetivos e subjetivos) de sua aplicação.
De acordo com entendimento reiterado do Supremo, é pacífico que para a incidência do princípio "devem ser relevados o valor do bem e os aspectos objetivos dos fatos – tais como a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica causada" [01].
Diante da presença cumulativa dos elementos, inexistirá a tipicidade material - capaz de lesar ou colocar em perigo o bem jurídico penalmente tutelado - o que determina o afastamento da conduta criminosa. "Equivale à desconsideração típica pela não materialização de um prejuízo efetivo, pela existência de danos de pouquíssima importância". [02]
Sem prejuízo, há que se considerar os requisitos subjetivos, tais como maus antecedentes, registro de processos criminais em andamento e, em especial, a reincidência (aquele que pratica um novo fato criminoso após ter sido condenado por crime anterior, em sentença transitada em julgado – arts. 63 e 64 do Código Penal)que é objeto de grande celeuma, conforme se verá no presente artigo.
2 – POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES. REQUISITO SUBJETIVO. REINCIDÊNCIA DO AGENTE.
A aplicação do princípio da insignificância permite que haja a necessária proporcionalidade da atuação estatal na pretensão punitiva (ius puniendi) em face da lesividade da conduta. Assim, somente será necessária a ação do Poder Público quando a lesão for efetivamente relevante.
Isto porque, a sociedade busca uma resposta do Estado, a fim de que seja o agente criminoso compelido a responder por sua conduta lesiva, toda vez que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, resguardada, assim, a ideologia punitivista da segurança.
Nesse sentido, a Suprema Corte tem decidido em diversos julgados por afastar a aplicabilidade do princípio da insignificância em razão da reincidência delituosa do agente.
No entanto, referido posicionamento é alvo de críticas de juristas, pois contrario sensu argumentam que para a aplicação da bagatela, somente é necessária a observância dos requisitos objetivos - desvalor da ação e do resultado jurídico – uma vez que se relaciona tão somente ao injusto penal. Assim, a insignificância estaria localizada no fato, pois o Direito Penal não se preocupa em julgar as pessoas, mas sim os seus atos.
Admitir-se a análise dos elementos subjetivos é permitir a cumulação tríplice dos desvalores da ação, resultado e culpabilidade do agente. É avaliar de maneira imprescindível todas as circunstâncias judiciais - culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime, consequências, condição econômica, dentre outras – concebidas pela lei penal como irrelevantes para a configuração do tipo penal.
Entretanto, "não se pode fazer essa confusão: a insignificância relaciona-se ao injusto penal, nada tendo com os critérios subjetivos típicos da reprovação da conduta, que se relacionam com a culpabilidade (necessidade da pena)". [03]
A esse respeito, de grande valia a lição do Juiz de Direito Vinicius de Toledo Piza Peluso: "[...] o princípio da insignificância tem a natureza meramente objetiva, sendo erro procedimental grave a análise de elementos subjetivos, pertencentes à culpabilidade do agente - especificamente a primariedade -, no momento da valoração do referido princípio. Portanto, determinado que o fato é penalmente irrelevante (atípico), pouco importa, para o deslinde da questão, a personalidade do réu, inclusive porque, no momento da tipicidade, o Direito Penal é um direito do fato e não do autor, sendo, assim, indevida qualquer análise da personalidade do acusado". [04]
Contudo, a discussão sobre a relevância ou não da reincidência é ponto controvertido até mesmo entre os órgãos fracionários do Supremo Tribunal Federal. Atualmente, a 1ª Turma do STF não admite a aplicação do princípio da insignificância, quando o agente pratica o delito de forma reiterada, já a 2ª Turma tem entendimento diametralmente antagônico.
Além disso, muito se discutiu sobre a temática no Superior Tribunal de Justiça, posicionando-se a 5ª Turma, durante longo período, pela sumária inaplicabilidade da bagatela aos agentes reincidentes. No entanto, percebe-se uma tendência da Turma, com base em precedentes firmados pelo próprio Tribunal, em orientar suas decisões unicamente de acordo com os critérios objetivos.
Nesse sentido, para fins de ilustração, seguem trechos de recentes julgados da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal:
"o princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de conduta ínfimos, isolados, sejam sancionados pelo direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica de bagatela e devem se submeter ao direito penal. Tenho, pois, que o criminoso reincidente apresenta comportamento reprovável que não pode ficar imune ao direito penal e sua conduta deve ser considerada materialmente típica". [05]
"[...] não há como acatar a tese da irrelevância material da conduta protagonizada pelo paciente, não obstante a reduzida expressividade financeira dos objetos que se tentou furtar. De início, porque o paciente é reincidente específico em delito contra o patrimônio [...]. Logo, o reconhecimento da insignificância material da conduta increpada ao paciente serviria muito mais como um deletério incentivo ao cometimento de novos delitos do que propriamente uma injustificada mobilização do Poder Judiciário". [06]
"A 1ª Turma, ao afastar a aplicação do princípio da insignificância, denegou habeas corpus a condenado por furto de 9 barras de chocolate de um supermercado avaliadas em R$ 45,00. Reputou-se que, em razão da reincidência específica do paciente em delitos contra o patrimônio, inclusive uma constante prática de pequenos delitos, não estariam presentes os requisitos autorizadores para o reconhecimento desse postulado". [07]
De outro lado, os argumentos esposados pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal:
"Ação Penal. Justa causa. Inexistência. Delito de furto. Subtração de roda sobressalente com pneu de automóvel estimados em R$ 160,00 (cento e sessenta reais). Res furtiva de valor insignificante. Crime de bagatela. Aplicação do princípio da insignificância. Irrelevância de considerações de ordem subjetiva. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Precedentes. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser afastada a condenação do agente, por atipicidade do comportamento." [08]
"Para a incidência do princípio da insignificância só devem ser considerados aspectos objetivos da infração praticada. Reconhecer a existência de bagatela no fato praticado significa dizer que o fato não tem relevância para o Direito Penal. Circunstâncias de ordem subjetiva, como a existência de registro de antecedentes criminais, não podem obstar ao julgador a aplicação do instituto." [09]
Por fim, julgados da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que rumam para um novo entendimento sobre o assunto:
"HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL. TENTATIVA DE FURTO QUALIFICADO. SUBTRAÇÃO DE BENS DE VALOR ÍNFIMO. CONDUTA DE MÍNIMA OFENSIVIDADE PARA O DIREITO PENAL. ATIPICIDADE MATERIAL. CONDIÇÕES PESSOAIS DESFAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.
APLICAÇÃO. TRANCAMENTO. ORDEM CONCEDIDA.
(...) 4. A existência de circunstâncias de caráter pessoal desfavoráveis, tais como o registro de processos criminais em andamento, a existência de antecedentes criminais ou mesmo eventual reincidência não são óbices, por si só, ao reconhecimento do princípio da insignificância. Precedentes deste STJ." [10]
"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. HABEAS CORPUS. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO DELITO DE FURTO. INSIGNIFICÂNCIA. MAUS ANTECEDENTES. OMISSÃO. AUSÊNCIA. FATOR QUE NÃO ALTERA O DECISUM. EMBARGOS REJEITADOS.
I. As circunstâncias de caráter pessoal, tais como reincidência e maus antecedentes, não devem impedir a aplicação do princípio da insignificância. Precedentes." [11]
Diante desse cenário, posicionar-se pela aplicabilidade ou não do princípio da insignificância ao agente reincidente é questão deveras delicada. Certo é que, o momento é de ampla discussão, sendo não só permitida, mas também necessária a avaliação dos divergentes entendimentos, destituídos de qualquer pré-concepção, a fim de buscar-se o melhor desfecho a cada caso.
3 - DELITOS DE PEQUENA MONTA E A NECESSÁRIA ATIVIDADE ESTATAL.
Consoante já apontado no tópico anterior,osistema jurídico-penal é a ultima ratio e somente deverá ser movimentado, para o fim de privar a liberdade do indivíduo ou restringir seus direitos, quando necessários a proteção da sociedade e dos bens juridicamente tutelados expostos a dano, seja ele efetivo ou potencial.
Assim, o Estado não pode admitir que o agente adote a criminalidade como estilo de vida ou mesmo a ausência de punição seja incentivo ao cometimento de novos delitos. Não obstante a reduzida expressividade financeira dos crimes insignificantes é inconcebível a inércia do Poder Público quando a contumácia delituosa estiver presente, uma vez que o ordenamento pátrio não permite a prática reiterada de condutas criminosas indefinidamente.
Partindo-se dessa premissa, são necessárias algumas considerações a respeito dos tipos de reincidência. Conforme os ensinamentos de Luis Flávio Gomes, devemos ponderar:
a)multirreincidência ou reiteração cumulativa - o sujeito pratica reiteradas condutas de pequena monta contra a mesma vítima, sendo que a somatória dos eventos lesa seriamente o bem jurídico. Deverá sempre ser afastado o princípio da insignificância;
b) multirreincidência ou reiteração não cumulativa – o sujeito pratica vários fatos insignificantes, não cumulativos, sem liame temporal e contra vítimas diversas. Tomados apenas os requisitos objetivos, não há obstáculo a aplicação do princípio da insignificância;
c)fato único cometido por agente reincidente – Mais uma vez, avaliados apenas os requisitos objetivos, as peculiaridades do caso concreto e constatada que a insignificância independe das condições pessoais do agente (requisitos subjetivos), será, também, cabível a possibilidade de aplicação da bagatela.
Diante da conceituação proposta pelo jurista, a questão da reincidência deve ser tratada de forma individualizada, observando-se as circunstâncias de cada caso, para assim concluir-se pela aplicação ou não da insignificância.
Entretanto, a diferenciação ora proposta não é alvo de convicção pelo Supremo Tribunal Federal. Conforme entendimento explicitado em diversos julgados, para a inaplicabilidade da insignificância basta a simples repetição de comportamento nos mesmos moldes e nas mesmas condições, o que privilegia a multirreincidência ou reiteração cumulativa, em detrimento das outras formas.
Em verdade, a grande questão é não permitir a contumácia dos delinquentes nas condutas criminosas de pequena monta, assim como possibilitar a aplicação do princípio em comento de maneira mais equilibrada, avaliadas as peculiaridades do fato, do "caso a caso", devendo, de forma necessária, todas as circunstâncias do delito precedente ser analisadas (sua tipificação, quando ocorreu, sua gravidade, quem foi a vítima, dentre outros).
Além disso, devem ser ponderados os critérios de proporcionalidade (entre a conduta e a lesão ao bem tutelado), razoabilidade (na punição judicial) e a necessidade de aplicação do rigor penal, vetores do Estado Democrático de Direito.
Desse modo, é inadmissível permitir que o que seria insignificante passa a ser penalmente relevante diante da reincidência do agente ou, ainda, o contrário, o que seria penalmente relevante pode deixar de ser por conta de seus bons antecedentes. Seguindo esse raciocínio, a mesma conduta poderia ser ou deixar de ser crime, dependendo das condições pessoais do agente.
O que não se pode olvidar é que aquele que pretende realizar a Justiça tem o dever de agir toda vez que for necessário. No entanto, para um direito justo, devem-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Caso contrário, estar-se-iam criando privilégios aos não reincidentes, em detrimento do princípio da isonomia do Direito Processual e do Direito Penal do fato.
4 – CONCLUSÃO
Punir ou não punir o reincidente nos delitos de pequena monta? Este é o grande entrave a ser solucionado em relação ao tema.
Não há dúvida que não podemos conceber que o autor de um fato insignificante fique totalmente impune. Caso contrário, estaríamos a fomentar a insegurança social da qual padece a sociedade brasileira. Alguma sanção ele tem de experimentar, mas porque condenar alguém a ir para "trás das grades" em decorrência de uma conduta sem maior significância? E, pior, que não coloca em risco a sociedade?
É certo que essas pessoas, em contato com o nosso falido sistema penitenciário, bem como com criminosos mais perigosos, ficam sujeitas a "escola do crime", o que pode levá-las, no futuro, mais uma vez à cadeia.
Como uma forma de solucionar a questão, faz-se necessário que a legislação futura discipline o assunto, a fim de prever especificamente a temática da insignificância versus a reincidência, de modo a evitar entendimentos equivocados ou divergentes.
Além disso, poder-se-ia pensar em uma punição alternativa, mas para que seja possível, também, é necessária uma reforma legislativa. Somente dessa maneira restaria privilegiada a boa técnica jurídica e o respeito social diante da correta aplicação do direito.
BIBLIOGRAFIA
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GOMES, Luiz Flávio. "Princípio da Insignificância e Requisitos Subjetivos". Disponível em http://www.lfg.com.br Acesso em 22 de novembro de 2010.
GOMES, Luiz Flávio; INFANTE, Christiane de O. Parisi. "Réu reincidente e princípio da insignificância: âmbito de (in)aplicabilidade". Disponível em http://www.lfg.com.br Acesso em: 24 de novembro de 2010.
SCHECAIRA, Sérgio Salomão. CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena. São Paulo: RT, 2002.
Notas
- HC 96.684, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 25.05.2010, 1ª Turma.
- SCHECAIRA, Sérgio Salomão. CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena. São Paulo: RT, 2002. Pág. 155.
- GOMES, Luiz Flávio; INFANTE, Christiane de O. Parisi. "Réu reincidente e princípio da insignificância: âmbito de (in)aplicabilidade". Disponível em http://www.lfg.com.br Acesso em: 24 de novembro de 2010.
- A objetividade do princípio da insignificância. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 109, dez. 2001.
- STF, HC 97.772/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 03.11.2009.
- STF, HC 96.202/RS, rel. Min. Ayres Brito, j. 04.05.2010.
- STF, HC 101.998/MG, rel. Min. Dias Toffoli, j. 23.11.2010 – Informativo 610 STF.
- STF, HC 90.747/PR, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 01.12.2009.
- STF, RE 514531/RS, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 21.10.2008.
- STJ, HC 177822/MG, rel. Min. Jorge Mussi, j. 26.10.2010.
- STJ, EDcl no HC 156377 / RS, rel. Min. Gilson Dipp, j. 26.10.2010.