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O julgamento de Sócrates

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Agenda 22/01/2011 às 13:36

2. DA DEFESA

Não nos incomodamos em denominar as culturas grega e romana de "irmãs". Em verdade, a junção de ambas na forma da expressão "cultura greco-romana" nos parece das mais apropriadas. Para justificar essa associação, não nos referimos, contudo, unicamente aos deuses que elas tinham em comum (modificando apenas seus nomes), mas principalmente ao modo simbiótico como aquela influenciou esta e esta complementou aquela, gestando o que se tornaria, ao nosso sentir, um dos mais importantes bens da humanidade: a cultura ocidental.

Concordamos com Philippe Nemo quando este sustenta que:

De fato, a civilização ocidental pode ser definida, em uma primeira abordagem, pelo Estado de Direito, pela democracia, pela liberdade intelectual, pela racionalidade crítica, pela ciência e por uma economia baseada na propriedade privada. Ora, todos esses valores e todas essas instituições não são ‘naturais’, mas o resultado de uma longa construção histórica. 16

Essa construção histórica teve seu berço no mediterrâneo, através da Grécia e de Roma. Paradoxalmente, não obstante essas grandes semelhanças, o Direito romano e o Direito grego em pouco se pareciam. O primeiro era solene, surrealmente solene e formalista, ao ponto de uma palavra que fosse dita fora da ordem prescrita poder significar perda da ação. Segundo Coulanges:

Entre os antigos, e sobretudo para Roma, o conceito de Direito está ligado ao emprego de certas palavras sacramentais (...) As formas bizarras do antigo processo romano nada nos surpreenderão se nos lembrarmos de que o direito antigo era a religião; a lei, o texto sagrado; e a justiça, o conjunto de ritos. O demandista procede judicialmente contra alguém, com a lei, agit lege (...) Mas cautela, para ter a lei a seu favor, torna-se indispensável conhecer-lhe os termos e pronunciá-la rigorosamente. (...) Gaio narra a história de certo homem a quem o vizinho havia cortado as vinhas; o fato era verdadeiro e o homem pronunciou a lei, mas onde a lei dizia árvores o homem nomeasse videiras, logo perdeu a questão. 17

Na Atenas da antiguidade, por outro lado, priorizava-se a oratória. A eloqüência era mais importante do que o conhecimento literal das leis, devia-se buscar o êxito nas demandas através da persuasão, do convencimento18. Destarte, nos parece que Atenas homenageou o princípio do julgamento secundum conscientiam – ainda presente, mesmo que de forma mitigada, nos tribunais do júri – em oposição ao princípio da prova legal (prova de valor prefixado e inalterável)19, como as ordálias ou as adotadas por teocracias islâmicas que atribuem ao testemunho de um homem o dobro do valor daquele oferecido por uma mulher 20.

Uma vez que era dado as partes persuadir os julgadores, a atividade advocatícia não era bem vista na Atenas da antiguidade. Quem possuía a razão deveria igualmente possuir a capacidade de expô-la, sendo a parte supostamente melhor conhecedora de suas próprias alegações do que qualquer patrono poderia ser. Contudo, em Atenas havia aqueles que se dedicavam a redigir discursos para as partes no processo, eram os chamados logographoi (ou logógrafos) 21. Stone cita Diógenes Laércio para fazer menção a um interessante relato onde se afirma que Lísias, um dos mais famosos redatores de discursos na época, teria preparado uma oração para Sócrates ler em seu julgamento. O filósofo, apesar de reconhecer o discurso como belo, o teria rejeitado sob a seguinte justificativa: "Não concordas que belos trajes e belos sapatos seriam inadequados para mim?". O relato, entretanto, é considerado espúrio 22.

Sócrates defendeu a si mesmo diante da assembléia de jurados. Mestre na persuasão, o velho ateniense não deve ter desgostado da oportunidade. Na época, era possível conduzir a defesa na forma que mais agradasse ao réu, com a técnica que lhe parecesse melhor. O moderno sistema processual penal brasileiro não é tão liberal. Nele, não se pode prescindir de advogado habilitado, ainda que tal advogado possa atuar, caso queira, em causa própria (CPP. Arts. 261. e 263). O advogado, a propósito, é considerado pela Norma Maior e outros diplomas legais, a despeito de algumas exceções, indispensável para a administração da justiça (CF. Art. 133. Est. Advoc., Art. 2º).

O óbice quando da análise do julgamento do filósofo ático é: se era mestre na persuasão, por que Sócrates foi condenado? Por que não elaborou uma defesa que conquistasse os jurados, suscetíveis como eram os tribunais atenienses, segundo Xenofonte, ao discurso eloqüente a ponto de absolverem culpados e condenarem inocentes graças à influência das palavras das partes?23

A resposta vem pelo próprio Sócrates. Tudo indica que o velho filósofo buscava a morte desde o início do julgamento. Na Apologia, após ser condenado à morte, ele afirma que ela é bem-vinda, até mesmo desejada, e confessa que em nenhum momento seu daimônion (a voz de sua consciência) se manifestou no dia do seu julgamento, ainda que essa voz tivesse o costume de se insurgir pelas coisas mais pequenas24. Isso indica que o filosofo ático, ab initio, já ansiava pela morte, tendo encontrado em seu julgamento uma boa oportunidade para alcançá-la. Tal conclusão fica clara diante das provocações dirigidas ao júri (veremos infra), bem como da confissão que o maiêutico faz a Hermógenes, seu discípulo:

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Se minha existência se prolongar, sei que as debilidades da velhice virão inevitavelmente – minha vista se enfraquecerá, meu ouvido se tornará menos aguçado, demorarei mais para aprender e me esquecerei mais depressa do que aprendi 25

Sócrates queria morrer.

Por fim, vale apontar, porque curioso, que Sócrates provavelmente não teria logrado sucesso nessa elaborada forma de "suicídio indireto" caso estivesse sujeito ao sistema processual penal pátrio moderno. Ainda que fosse admitida pena de morte em nosso sistema (exceção para guerra declara, caso em que ela é possível, Art. 5º, inciso XLVII, a, da Lei Ápice), a inteligência do art. 497, inciso V do CPP bem como a súmula 523 do STF, por certo imporia ao "parteiro de idéias" a nomeação de um novo defensor para seu caso ou então faria com que o próprio processo fosse anulado, em vista da insuficiente defesa.


3. DO JULGAMENTO

Semelhante em alguns aspectos ao sistema moderno, na Atenas da antiguidade o julgamento era feito por mais de uma fase. Os juizes leigos áticos votavam duas vezes. Na primeira delas, decidiam sobre a condenação ou absolvição do réu. Na segunda, no caso de condenação, sobre qual seria a pena26 .

Sócrates se espanta quando do resultado da primeira deliberação. O velho filósofo não esperava ser condenado por diferença de votos que ele considerou tão pequena. Segundo Stone, bastaria que 6% dos componentes do júri mudassem de idéia para que Sócrates fosse absolvido27. Como o próprio Sócrates diz, conforme escreveu Platão:

(...) me espanto do número de votos dos dois partidos. Por mim, não acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas de muitos: pois se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo 28

O que mais espanta, em verdade, não é a pequena diferença nessa primeira fase, mas o resultado da segunda deliberação. Segundo Diógenes Laércio, o julgamento terminou com mais votos em favor da pena de morte do que os votos que pediam a condenação, ou seja, vários jurados que pediram a absolvição do maiêutico na primeira deliberação mudaram de posição e votaram a favor da pena de morte na segunda29 . Assim, inevitável que surja a pergunta: por quê? Por que a mudança no ânimo dos jurados?

Em Atenas, na segunda fase de um julgamento, a acusação oferecia uma proposta de pena, enquanto o réu oferecia outra. Os acusadores pleitearam a pena de morte para Sócrates. Ele, por outro lado, zombou da assembléia. É difícil ler sua contraproposta sem que o leitor se divirta esboçando um sorriso divertido pela ousadia do velho ático. Ele sugere receber refeições gratuitas, às custas do Estado, no Pritaneu!30. Ora, o Pritaneu era local de honra em Atenas, só os heróis da pátria ou os mais ilustres hóspedes estrangeiros lá comiam. Sócrates, assim, estava fazendo o possível para hostilizar o júri.

Na versão de Xenofonte, o velho filósofo se recusa a oferecer qualquer pena alternativa. Na versão platônica, contudo, ele oferece três. A primeira, já vista, deve ter sido o suficiente para ultrajar toda a assembléia. Sua segunda proposta é o pagamento de uma multa que ele arbitra em uma mina 31, valor considerado irrisório32 . Alarmados com a segunda proposta de seu mestre, Críton, Cristóbolo, Apolodoro e o próprio Platão se unem como fiadores e imploram para que ele ofereça quantia mais relevante, a de trinta minas33. O fato de ter sido necessário que quatro pupilos de Sócrates – que costumava ter discípulos abastados – se unissem para cobrir as trinta minas indica que o valor provavelmente era substancial. O mal, de todo modo, estava feito. Se Sócrates tivesse proposto as 30 minas logo no início, talvez o júri pudesse ter sido acalmado34. Vale repetir: Sócrates fez o possível para hostilizar o júri.

Conforme já comentado, os jurados em Atenas eram mais sujeitos aos seus sentimentos de justiça subjetivos do que necessariamente ao positivismo exacerbado, homenageando, portanto, o Direito Natural em detrimento do Direito Positivo. O próprio juramento que faziam de "votar segundo as leis, onde leis houver, e, onde não as houver, votar com tanta justiça quanto tivermos em nós"35 indica essa inclinação. Sócrates, não obstante, ao nosso sentir, optou pela morte. O júri acolheu a proposta da acusação. Sócrates, sem resistência, terminou sua vida.


CONCLUSÃO

É especialmente em tempos de grande instabilidade que o homem tende a violar seus princípios para defender esses mesmos princípios. Foi assim na Revolução Francesa, quando em nome de liberté criou-se um reino de terror e sangue que impediu essa mesma liberdade de ser exercida. Foi assim nas revoluções comunistas, quando sob o pretexto de proteger o povo de seus supostos opressores, governos que se auto-intitulavam e ainda se intitulam populares oprimiram as massas ainda mais do que seus predecessores. Foi assim no macartismo dos EUA, quando o país que deveria representar o maior baluarte da liberdade - aqui, tomando a palavra em sua acepção mais lata possível - perseguiu, ainda que transitoriamente, aqueles que considerava de idéias "pouco americanas". Foi assim, também, na Atenas de Sócrates.

Esperamos ter demonstrado no decorrer do trabalho que Sócrates poderia facilmente ter refutado as acusações e se salvado, porém o filósofo escolheu a morte. Não obstante as aparentes inclinações antidemocráticas do velho ateniense combinadas com os traumas na época ainda não cicatrizados experimentados pela pólis, Atenas permanece sem justificativas para a condenação de Sócrates. A liberdade, tanto há dois milênios como em nossos dias e dias que virão é dos maiores motores para a evolução humana. Em verdade, é o direito que permite ao homem ser realmente um indivíduo, ao invés de mero autômato. Atacar a liberdade, por vezes, acaba funcionando como auto-ataque. O caso de Sócrates, tornado mártir cuja execução ainda mancha a história da brilhante Atenas, é um desses exemplos. Exemplos a serem recordados e rechaçados.


BIBLIOGRAFIA

AGUIAR, Renan e MACIEL, José Fábio Rodrigues. História do Direito. Saraiva.

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Ediouro.

CINTRA, Antônio Carlos, DINAMARCO, Cândido Rangel e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. Malheiros Editores.

COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga. Martins Fontes

CRISTALDO, Janer. Ainda as mulheres e o islã. www.baguete.com.br

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. Saraiva

HITCHENS, Christopher. God Is Not Great: How Religion Poisons Everything. Twelve

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Saraiva

LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. Martins Fontes

MELLO, Leonel Itaussu Almeida e WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política v. I. Ática

NEMO, Philippe. O que é o Ocidente? Martins Fontes

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Ediouro

- A República. Martins Fontes

STONE, Isidor Feinstein. O Julgamento de Sócrates. Companhia das Letras


Notas

1 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 171. Companhia das Letras

2 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 48. Ediouro

3 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 235, 236. Companhia das Letras

4 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 156. e 157. Companhia das Letras

5 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 110. e 176. Companhia das Letras

6 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 71. e 72. Ediouro

7 Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga, pág. 248. Martins Fontes

8 – Pedro Lenza. Direito Constitucional Esquematizado, pág. 685. Saraiva

9 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 291. Companhia das Letras

10 Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga, pág. 249. Martins Fontes

11 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 101. e 102. Ediouro

12 Christopher Hitchens. God is not great, pág. 255. 256. Twelve

13 Christopher Hitchens. God is not great, pág. 256. 257. Twelve

14 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 169, 241 248. Companhia das Letras

15 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 170. Companhia das Letras

16 Philippe Nemo. O que é o Ocidente?, pág. 9. Martins Fontes

17 Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga, pág. 208. Martins Fontes

18 José F. R. Maciel e Renan Aguiar. História do Direito, pág. 61. Saraiva

19 Araújo Cintra, Ada Grinover e Cândido Dinamarco. Teoria Geral do Processo, pág. 73. Malheiros Editores

20 Janer Cristaldo. www.baguete.com.br/colunistas/31/janer-cristaldo/12/03/2007/ainda-as-mulheres-e-o-isla. Acessado 15/10/2010.

21 José F. R. Maciel e Renan Aguiar. História do Direito, pág. 62. Saraiva.. Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 187. Companhia das Letras

22 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 305. Companhia das Letras

23 Xenofonte apud Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 219. Companhia das Letras

24 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 101. e 102. Ediouro

25 Xenofonte apud Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 219. Companhia das Letras

26 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 217. Companhia das Letras

27 Na mitologia grega encontra-se uma curiosa explicação para o que pode ser entendido como o princípio do in dubio pro reo surgindo já na antiguidade. Agamenon, líder dos gregos em seu ataque a Tróia, ao retornar a Micenas após a guerra é assassinado por sua mulher, Clitemnestra, e o amante desta, Egistro, que estavam reinando durante sua ausência. Orestes, filho de Agamenon, vinga a morte do pai e retoma o trono, assassinando sua mãe e o amante dela. Em uma das versões da lenda, Orestes é julgado por um tribunal popular ateniense. O júri se divide e a deusa Atena termina por intervir ela própria para resolver o impasse. A deidade helênica vota em favor de Orestes, estabelecendo a regra de que, em caso de empate, o réu deve ser absolvido. Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 217, 242, 243, 244 e 245. Companhia das Letras

28 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 87. Ediouro

29 Diógenes Laércio apud Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 223. e 224. Companhia das Letras

30 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 90. Ediouro

31 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 94. Ediouro

32 Isidor Feinstein Stone. O Julgamento de Sócrates, pág. 225. e 226. Companhia das Letras

33 Platão. Apologia de Sócrates, pág. 94. Ediouro

34 Sócrates poderia ter proposto uma série de outras penas, como o exílio, de modo que pudesse esperar os ânimos se acalmarem para então retornar a sua pátria, a exemplo do que outros já haviam feito. Entretanto, ele rechaça essa possibilidade. Acredita que "onde quer que vá" os jovens ouvirão seu discurso e ele terá os mesmos problemas. Em Críton, porém, quando o homônimo da obra fala a seu mestre sobre o plano preparado para tirar Sócrates da prisão, Críton pede que Sócrates não se preocupe, pois "onde quer que vás, serás bem recebido". Mais uma vez, fica evidente o desejo de Sócrates pela morte, uma vez que esse se recusa a fugir. Aliás, há aí uma das primeiras menções ao Contrato Social – o contrato firmado entre o Estado e o cidadão. Sócrates se recusa a fugir porque se o fizer estará violando leis das quais gozou proteção durante toda sua vida. Vale lembrar, não obstante, que contratualistas que viriam séculos depois de Sócrates, como Locke, defendiam o direito de insurgência quando as leis ou o governo do Estado eram injustos.

Sobre o autor
Raphael L. Piaia

Quartanista de Direito. Assessor Comissão de Ética Médica

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIAIA, Raphael L.. O julgamento de Sócrates. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2761, 22 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18321. Acesso em: 23 dez. 2024.

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