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A legitimidade da criação normativa das agências reguladoras

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Agenda 22/01/2011 às 13:01

4. Correntes doutrinárias que justificam a atividade normativa das agências.

Feitas essas considerações, cumpre verificar como, no âmbito da função regulatória estatal, se dá essa atividade normativa do Poder Executivo, notadamente por parte das agências reguladoras.

Como visto, tornou-se inegável o fenômeno do exercício da função normativa pelo Poder Executivo, tendo sido preconizado pela doutrina que tal fenômeno decorre de uma releitura do princípio da separação dos poderes, decorrente da evolução sócio-política da sociedade brasileira, no contexto do estado neoliberal e regulador.

Existem opiniões doutrinárias das mais diversas para justificar a constitucionalidade do poder regulatório da administração pública, em especial a sua vertente mais intrigante, que é justamente o exercício deste poder pelas agências reguladoras.

O pensamento dos doutrinadores pátrios se enquadra em quatro correntes majoritárias sistematizadas em estudo feito por Leopoldo Fontenele Teixeira. [21] Tais correntes não são inteiramente excludentes entre si, entretanto, a última é a mais aceita atualmente.

a) A primeira corrente é composta pelos que defendem que as agências reguladoras exercem suas atribuições de ordem normativa, por meio de uma descentralização do exercício da competência regulamentar do Presidente da República (art. 84, IV, da CF/88). Assim, o fato do constituinte ter atribuído ao Chefe de Estado a função de regulamentar as leis não significa que está proibida a possibilidade de desconcentração ou descentralização do exercício deste poder.

Conforme mencionado acima, no Brasil a desconcentração e a descentralização do poder regulamentar decorrem da participação de órgãos diversos na elaboração dos regulamentos ou mesmo em função da delegação de atribuições para que órgãos inferiores regulamentem a matéria (são os chamados regulamentos terciários).

Assim, o poder normativo das agências reguladoras decorreria do seu poder-dever de regulamentar as leis. Poder este originário de ato de descentralização da competência regulamentar do poder executivo central. Defende este entendimento, dentre outros, Sérgio Guerra. [22]

Alguns doutrinadores mais conservadores, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, posicionam-se pela impossibilidade da livre edição de atos regulatórios pelo executivo, defendendo a tese de que a criação de obrigações para os administrados só deveria advir de lei, nos termos do art. 5º, II, da Constituição [23] (cláusula da reserva legal).

Assim, defende o autor que as normas oriundas das agências devem se ater aos aspectos estritamente técnicos, não podendo se contrapor às leis ou aos princípios constitucionais, "sendo aceitáveis apenas quando indispensáveis, na extensão e intensidade requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar e obsequiosas à razoabilidade". [24]

Nesse contexto, conclui Celso Antônio que as agências brasileiras normalmente incorrem em inconstitucionalidade, pois extrapolam os limites puramente regulamentares e invadem a competência do Legislativo. [25]

Desse modo, seria preferível que o legislativo se adequasse à demanda de regulação das mais diversas áreas e passasse a emitir leis contento a delimitação dos direitos e obrigações dos usuários e dos prestadores de serviços públicos, deixando para as agências apenas a regulação da matéria eminentemente técnica.

Ressalte-se, todavia, que uns dos maiores argumentos para a criação das agências são justamente a necessidade de grande especialização técnica do órgão regulador e a inabilidade do poder legislativo, com a sua estrutura atual, para atender rapidamente à demanda gigantesca de produção normativa inerente aos mais variados ramos de atividades econômicas, notadamente os setores de tecnologia e de domínio econômico.

b) a segunda corrente doutrinária entende que a competência de regulamentar as leis é atribuição privativa do Presidente da República, não podendo as agências exercerem a função reguladora com base neste poder-dever, mas apenas editar atos normativos terciários (resoluções, portarias), subordinados aos regulamentos, com aplicação limitada ao âmbito interno da agência, bem como àqueles que possuam vínculo especial de sujeição [26] para com a Administração.

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Como sabido, todos estão obrigados a cumprir as disposições em lei em função da determinação contida no art. 5º, II, da Constituição. Assim, independentemente da vontade dos cidadãos, todos estão compulsoriamente submetidos à lei em função do regime geral de sujeição que lhe é próprio. Por inexistir delegação de poder legiferante para as agências, os atos regulatórios por elas expedidos não possuem o mesmo atributo de obrigatoriedade das leis. Assim, somente aqueles submetidos ao regime especial de sujeição decorrente da condição de concessionário, autorizatário ou permissionário de serviço público, estariam, a princípio, obrigados a cumprir as resoluções das agências.

Ressalte-se que os delegatários se vinculam ao regime regulatório voluntariamente, no momento em que formalizam o contrato de concessão, termo de autorização ou ato correspondente. Deste modo, eles aderem ao regime regulatório, que compreende tanto as normas atuais quanto as que venham a ser criadas em relação ao serviço em questão.

Conforme o art. 5º, II, da Constituição, todos estão obrigados a cumprir as determinações contidas em lei, independentemente da concordância ou não com o texto legal. O regime de sujeição especial, por outro lado, decorre de uma adesão consciente e voluntária (e de certo modo contratual) do agente econômico a um regime próprio, decorrente da sua condição de prestador de serviços públicos.

Caso o delegatário não concorde com a hipótese de vinculação às normas da agência reguladora, poderá simplesmente retirar-se da atividade econômica. O funcionamento ao alvedrio da regulação, todavia, não é permitido, pois a lei estabelece que o exercício de certas atividades econômicas só é permitido sob a condição de vinculação ao regime normativo do ente regulatório respectivo.

Adotando-se uma interpretação elástica desta teoria, pode-se afirmar que o regime especial de sujeição também vincula os consumidores dos serviços regulados, pois estes, ao firmar contratos de prestação de serviço com os delegatários (contratos de adesão, convencionais ou mesmo tácitos ou verbais), se vinculam ao regime regulatório aplicável ao serviço.

Por fim, de se mencionar que o regime regulatório, mesmo proveniente de uma relação de sujeição especial, deve sempre se pautar nos limites e condicionantes existentes na Constituição, legislação e regulamentos, suportes diretos de validade da regulação.

Destacam-se como adeptos desta corrente Clèmerson Merlin Clève, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Marcos Juruena Villela Souto. [27]

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em particular, ressalta que a competência reguladora das agências, inclusive as que têm fundamento constitucional, é limitada "aos chamados regulamentos administrativos ou de organização, só podendo dizer respeito às relações entre os particulares que estão em situação de sujeição especial ao Estado". [28]

c) A terceira corrente defende a tese de que apenas as agências com expressa previsão constitucional, quais sejam, a ANATEL e a ANP, teriam competência normativa abstrata, em função da aplicação da teoria dos poderes implícitos.

Esta teoria desenvolveu-se no constitucionalismo norte-americano (caso Mc Culloch v. Maryland). Funda-se na idéia de que, para cada poder outorgado pela constituição a certo órgão, são implicitamente conferidos amplos poderes para possibilitar a execução do poder outorgado constitucionalmente. A atribuição de direitos constitucionais, portanto, envolve a correspondente atribuição de capacidade para o seu exercício.

Destaca-se como defensora dessa corrente Mônica Nicida Garcia, que, em breve síntese, aduz:

De acordo com o sistema jurídico vigente no Brasil [...] constituindo-se as agências reguladoras , ainda que ditas de ‘regime especial’, sua função reguladora deveria ser limitada à expedição de atos estabelecendo regras gerais e abstratas de conduta, sempre de alcance limitado ao âmbito de atuação do órgão expedidor, exceção podendo ser feita à ANP e à ANATEL, cuja previsão constitucional poderia ser interpretada como autorizadora da expedição de normas inovadoras do ordenamento jurídico. [29]

Esta interpretação, apesar de resolver razoavelmente a problemática da legitimidade do poder normativo das agências com assento constitucional, não serve para as demais. A aplicação por analogia da teoria aos demais casos de agências reguladoras parece-nos ser uma solução completamente insustentável. E mesmo no caso da ANATEL e da ANP, a teoria não resolve definitivamente a questão, uma vez que a sua aplicação também pode ser questionada, pois no direito administrativo pátrio impera o princípio da legalidade estrita, o qual preconiza a necessidade de definição legal expressa e exaustiva das competências administrativas, não se admitindo, a princípio, competências implícitas ou por exclusão.

Dentre os autores que fazem uma interpretação contrária a esta corrente, podemos citar Marcos Juruena Villela Souto: [30]

Todas as agências detêm um poder normativo e não apenas a ANP e a ANATEL. A previsão constitucional de um órgão regulador para telecomunicações e para o petróleo não significa que só estes teriam capacidade para editarem atos de efeitos externos. O que estes dispositivos fizeram foi afastar uma discricionariedade legislativa para criar ou não um agente regulador, discricionariedade esta que existe para os demais setores; nestes, onde existia um monopólio, se impôs a existência de um regulador para reduzir os malefícios e riscos de uma posição dominante. Nos demais segmentos de mercado, cabe ao legislador identificar, por provocação do Executivo, onde existem falhas de mercado que justifiquem a criação de um agente regulador, com poderes para a prática de intervenção do Estado na Economia.

Não obstante, não se nega que a teoria dos poderes implícitos, contextualizada com outras teorias acerca do poder normativo das agências, reforça grandemente a legitimação da ANATEL e da ANP, em particular.

d) a quarta e última corrente a ser mencionada defende a possibilidade de exercício de função normativa pelas agências a partir da distinção entre regulação e regulamentação, o que requer o conhecimento do que se convencionou denominar de teoria da deslegalização. [31] Destaca-se entre os adeptos desta corrente, Alexandre Santos de Aragão.

Assim sendo, traz-se o entendimento de alguns autores acerca do tema. De acordo com Eduardo Garcia de Enterría, deslegalização é a "operação que efetua uma lei que, sem entrar na regulação material de um tema, até então regulado por lei anterior, abre tal tema à disponibilidade da potestade regulamentar da administração". [32]

Importantíssimo citar o posicionamento de Alexandre Santos de Aragão, um dos autores que mais se destaca na defesa desta corrente: [33]

As leis atributivas de poder normativo às entidades reguladoras independentes possuem baixa densidade normativa, a fim de propiciar o desenvolvimento de normas setoriais aptas a, com autonomia e generalidade, regular a complexa e dinâmica realidade social subjacente. Ademais, recomenda-se que propiciem à Administração a possibilidade de, medida do possível, atuar consensualmente, com alguma margem de negociação junto aos agentes econômicos e sociais implicados. [...] As leis com essas características não dão maiores elementos pelos quais o administrador deva pautar sua atuação concreta ou regulamentar, referindo-se genericamente a valores morais, políticos e econômicos existentes no seio da sociedade [...] Assim, confere à Administração Pública um grande poder de integração do conteúdo da vontade do legislador. O objetivo das leis assim formuladas é "introduzir uma vagueza que permita o trato dos fenômenos sociais, muito fugazes para se prestarem ao aprisionamento em uma regra precisa.

Tratando da análise entre regulação e regulamentação, Leopoldo Fontenele Teixeira apresenta uma diferenciação adequada ao contexto. Segundo ele, regulação é a atividade de "concretização de preceitos legais genéricos, assentada em critérios técnicos e na ponderação valorativa dos diversos interesses envolvidos, destinada a propiciar o equilíbrio do setor regulado". Já a regulamentação, seria a "atividade privativa do Chefe do Poder Executivo e consiste em possibilitar a fiel execução de uma lei, por meio de sua concretização, com base em critérios políticos e não, necessariamente, técnicos". [34]

Marcos Juruena Villela SOUTO, em seu turno, afirma que:

A regulação não se confunde com a regulamentação privativa do Chefe do Poder Executivo; primeiro, porque a regulação não se limita à produção de normas (envolvendo a regulação executiva e a regulação judicante); depois, porque é técnica e não política e deve ser destinada a uma coletividade e não à sociedade em geral. Mais importante, é fruto de uma decisão colegiada que pondera entre os vários interesses em jogo (e não apenas à luz de uma orientação política majoritária). [35]

Deste modo, a atividade normativa da agência consiste, sob a ótica desta corrente, na produção de atos infralegais destinados a regular o setor econômico, e não a regulamentar lei de deslegalização.

Edmir Netto de Araújo, captando este sentido, explica que este poder normativo não se confunde com a competência regulamentadora do Executivo e muito menos com a função legiferante: [36]

Assim, o Poder Normativo das agências reguladoras (não regulamentadoras) vincula-se às normas gerais pertinentes, sem inovar na ordem jurídica, e não é o de regulamentar leis e muito menos situações jurídicas autônomas (leis em sentido material) que criem direitos, deveres ou penalidades. [...] Assim, suas normatizações deverão ser operacionaisapenas, regras que, às vezes aparentemente autônomas, prendem-se a disposições legais efetivamente existentes.

Assim, as agências, apesar de produzirem atos aparentemente autônomos, na verdade se limitam à moldura normativa estabelecida nas leis que lhe conferem tal poder (lei de deslegalização). Estas leis, no mesmo momento em que criam este poder normativo, também fixam os parâmetros e os limites para o seu exercício, bem como as metas e as políticas a serem alcançadas.

A fim de compatibilizar a teoria com o principio da separação de poderes, os doutrinadores que a defendem esclarecem que a competência normativa das agências consiste em uma função executiva, qual seja, a de praticar atos administrativos a fim de executar a lei (concretização).

A função regulatória consistiria, assim, na edição de atos normativos e concretos destinados a reger a conduta dos agentes econômicos, atos esses que devem ser editados com base nos standards legais e em critérios técnicos, com fulcro em uma ponderação dos interesses em conflito.

Destarte, sob a ótica desta corrente, a atividade normativa (executiva) das agências não consiste na regulamentação da lei de deslegalização, apesar da própria atividade de regulamentação ser, também, considerada concretização da lei.

A propósito, as leis de deslegalização possuem baixa densidade normativa, isto é, são genéricas, estabelecem valores morais, políticos e econômicos existentes no seio da sociedade, e metas a serem alcançadas. Estes valores constituem os padrões ou standards, ou seja, a moldura legal onde a produção normativa da agência deverá se encaixar. As metas, por sua vez, traduzem-se nas políticas de estado fixadas para o setor.

Dentro destes parâmetros definidos pelo legislador, compete às agências, no exercício da função de concretizar o preceito legal (complementação enriquecedora), expedir atos normativos para disciplinar as atividades econômicas que lhe são afetas, com o propósito de atingir os fins estabelecidos na lei, dentre as quais o funcionamento eficiente e equilibrado do setor regulado.

Assim, segundo Leopoldo Fontenele Teixeira, esta função regulatória, sob a ótica da teoria da deslegalização: [37]

Representa o exercício de típica função executiva, consistente na edição de atos destinados a propiciar a aplicação das normas genéricas editadas pelo legislador, normas essas que conterão a política pública para o setor, bem como preceitos com baixa densidade normativa destinados a servir de baliza para a edição dos atos normativos regulatórios.

Assim, a depender do tipo de teoria utilizada, o controle a ser exercido sobre as agências sofre variações, sendo que a atuação das agências sob o pálio da teoria da deslegalização certamente é mais abrangente que a outra corrente.

Pensamos que a corrente que prega a origem terciária dos atos regulatórios, com vinculação ao regime especial de sujeição, parece ser a mais compatível com o Direito Constitucional brasileiro. Alguns elementos da corrente que prega a deslegalização, entretanto, são muito válidos, notadamente aqueles que tratam da vinculação das agências à moldura das leis, regulamentos e políticas públicas (standards).

Sobre o autor
Marcio Sampaio Mesquita Martins

Procurador Federal, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, pesquisador e autor de livros e artigos sobre temas de Direito Administrativo e de Direitos Fundamentais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Marcio Sampaio Mesquita. A legitimidade da criação normativa das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2761, 22 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18330. Acesso em: 27 nov. 2024.

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