Sumário: 1 – Introdução; 2 – Poder Regulamentar (características e extensão); 3 – Descentralização administrativa; 4 – Correntes doutrinárias que justificam a atividade normativa das agências; 5 – Posição do Supremo Tribunal Federal e da Administração Pública; 6 – Conclusão. Referencias.
Resumo: A possibilidade de criação normativa por parte das agências reguladoras é um tema de vital importância para a justificação e legitimação do modelo regulatório atual. A esse respeito, várias correntes doutrinárias procuraram defender a constitucionalidade desse poder normativo. A corrente que encontrou maior destaque defende a tese de que o poder normativo das agências decorre da produção de atos terciários pela Administração pública, os quais se tornam obrigatórios em função do regime de sujeição especial ao qual os delegatários estão submetidos. Sobre o assunto também já se manifestaram o Supremo Tribunal Federal e a Administração Pública Federal, tendo ambos reconhecido a legitimidade do poder normativo das agências reguladoras ante ao atual panorama constitucional.
Palavras-chave: Direito Constitucional e Administrativo. Agências Reguladoras. Criação Normativa. Constitucionalidade. Legalidade.
1. Introdução.
Tem o presente trabalho por escopo analisar a questão da constitucionalidade da criação normativa por parte das agências reguladoras.
Ab inicio, pretende-se proceder a uma exploração introdutória, de modo a perquirir, sob o ponto de vista doutrinário, as características e peculiaridades das figuras da lei, regulamento, ato regulatório e o próprio conceito de legalidade.
Em seguida, traz-se à baila uma análise do sistema regulatório americano à luz do ordenamento jurídico pátrio, a fim de se verificar a compatibilidade do modelo de regulação já pacífico naquele país com o constitucionalismo brasileiro, de modo a confirmar a própria legitimidade dos atos emanados pelas agências brasileiras no uso desse poder regulador.
É que o modelo regulatório adotado no Brasil, como bem sabido, é uma verdadeira importação do modelo americano, acrescido de certas nuances para compatibilizá-lo com as normas da Constituição Federal de 1988.
Com relação à vertente que trata especificamente dos atos emanados pelas agências reguladoras, analisar-se-á as diversas correntes doutrinárias que buscam justificá-los, assim como estabelecer limites para os mesmos. Nesse contexto, temos que opiniões doutrinárias das mais diversas buscam justificar a constitucionalidade do poder regulatório por parte das agências reguladoras.
Nesse campo, encontra maior acolhida por parte dos operadores do direito as correntes que se manifestam no sentido de que a legitimidade do poder normativo das agências se dá em função do regime de sujeição especial e em função da teoria da deslegalização.
A corrente que trata do regime de sujeição especial defende a possibilidade de produção de atos normativos pelas agências em face daqueles que estejam submetidos a um vinculo especial, decorrente normalmente da condição de delegatário de serviços públicos, sendo respeitadas, naturalmente, as regras gerais previstas em lei e os limites da desconcentração normativa, a serem observadas obrigatoriamente pelo regulador. Tratam-se, deste modo, de atos normativos terciários que vinculam apenas os delegatários, não devendo trazer conseqüências para terceiros.
A corrente que defende a teoria da deslegalização, por sua vez, preconiza que o ato regulatório decorre diretamente da lei e será legítimo se observar os seus preceitos gerais (standards), parâmetros e limites fixados na lei, os quais pautam a concretização (execução) da norma primária pela autoridade reguladora. Tais atos seriam aplicáveis ao setor regulado, e não apenas aos delegatários.
Como se pode observar, há clara proximidade entre as correntes. Em ambos os casos, os preceitos e as regras gerais contidos em lei devem ser observados, sob pena de extrapolação do poder normativo e invalidade da norma emitida pela agência. A divergência fica por conta de que, na primeira corrente, as normas se dirigem aos delegatários stricto sensu, enquanto que, na segunda, se destinam ao setor regulado.
As referidas correntes, em especial a primeira, tiveram boa acolhida na doutrina Brasileira, tendo encontrado abrigo inclusive no âmbito do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema, quando do julgamento da medida cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1668-DF, em 1997, oportunidade em que se posicionou pela constitucionalidade do poder normativo das agências, tendo se alinhado com a primeira corrente, mais conservadora, que encara os atos regulatórios como terciários, tendo deixado claro, ainda, que os atos normativos das agências podem ter efeitos externos. [01]
Pelo exposto, pode se observar que os esforços doutrinários nacionais procuram, normalmente, uma interpretação que consiga harmonizar os princípios da legalidade e da separação dos poderes com a atuação normativa autônoma desses entes autárquicos, a fim de identificar parâmetros normativos de controle da discricionariedade administrativa. Isto é, sempre sob um enfoque jurídico-normativo, observando-se os princípios da legalidade e da separação dos Poderes.
2. Poder regulamentar (características e extensão).
Em um primeiro momento, a análise ora proposta requer rápido intróito sobre as figuras da Lei, regulamento e ato regulatório, a fim de melhor analisar a questão da constitucionalidade do poder normativo das agências reguladoras.
Seguindo-se a teoria kelseniana, as leis estão quase no topo da pirâmide hierárquica das espécies normativas, encontrando-se abaixo apenas da própria constituição. Por decorrerem diretamente do texto maior, elas são consideradas atos normativos primários e fonte, por natureza, de direitos e obrigações.
Assim, as leis são as espécies normativas apropriadas para se estabelecer obrigações, sendo certo que, a princípio, não é permitido no sistema constitucional brasileiro que atos normativos infra-legais estabeleçam obrigações não previstas em lei. Trata-se do princípio da reserva legal, estabelecido no art. 5º, II, da Constituição. Ademais, em função do princípio da separação de poderes (art. 2º), compete exclusivamente ao Poder Legislativo editar leis, sendo tal competência absoluta e indelegável.
Noutra quadra, compete ao Poder Executivo expedir atos normativos abstratos para regulamentar as leis, isto é, complementar o seu conteúdo, a fim de que possam ser cumpridas. Não podem, entretanto, em função do princípio da reserva legal, inovar no ordenamento jurídico, de modo a criar ou extinguir obrigações previstas nas leis, ou ainda modificar indevidamente as suas hipóteses de incidência. O poder regulamentar é exercido essencialmente através de decretos e regulamentos, conforme art. 84, IV, da Constituição. [02] É considerado secundário, pois tira o seu suporte de validade das leis.
A esse respeito, elucidativa a definição de regulamento exarada por Diogo de Figueiredo Moreira Neto: [03]
[...] sob o aspecto material, a regulamentação é uma função política, no exercício de uma prerrogativa do pode político de impor regras secundárias, em complemento às normas legais, com o objetivo de explicitá-las e de dar-lhes execução, sem que possa definir quaisquer interesses públicos específicos nem, tampouco, criar, modificar ou extinguir direitos subjetivos. De resto, sob o aspecto formal, é uma atribuição de estritíssima previsão constitucional, por isso mesmo, geralmente cometida a chefes de estado ou de governo.
No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles [04] aduz que, "como ato inferior à lei, o regulamento não pode contrariá-la ou ir além do que ela permite. No que o regulamento infringir ou extravasar da lei, é írrito e nulo, por caracterizar situação de ilegalidade".
Do mesmo modo, Maria Silvia Zanella Di Pietro defende claramente os limites do regulamento: [05]
Ele não pode inovar na ordem jurídica, criando direito, obrigações, proibições, medidas punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, conforme o artigo 5°, II, da Constituição; ele tem que se limitar a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração.
Desta feita, temos que a função regulamentar estará sempre presa a existência de uma lei anterior, ressalvado os excepcionais casos de decreto autônomo permitidos pela Constituição.
Nesse sentido, traz-se à baila esclarecedor excerto da lavra do Supremo Tribunal Federal: [06]
A RESERVA DE LEI EM SENTIDO FORMAL QUALIFICA-SE COMO INSTRUMENTO CONSTITUCIONAL DE PRESERVAÇÀO DA INTEGRIDADE DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS.
O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua ‘contra legem’ ou ‘praeter legem’, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, inciso V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar (...)’. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Existem, a princípio, duas espécies de regulamentos: regulamento executivo e regulamento autônomo ou independente. O primeiro complementa a lei ou lhe garante a fiel execução, (art. 84, IV, da Constituição), razão pela qual não pode inovar a ordem jurídica. Destina-se a estabelecercomo os cidadãos ou a própria Administração irá cumprir o que está previsto em lei.
O segundo tipo é o regulamento autônomo, espécie até então inadmitida no sistema constitucional brasileiro em função do principio da reserva legal. Tem função inovadora na ordem jurídica em matérias não regidas por lei. Passou a ter cabimento no Brasil em função da Emenda Constitucional nº 32, que criou duas hipóteses de regulamento autônomo. Assim, o Presidente da República poderá dispor diretamente sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos (art. 84, VI, da CF). [07]
Assim, percebe-se que a doutrina é praticamente uniforme em relação às tradicionais limitações ao poder regulamentar do Executivo.
Referindo-se, agora, ao sentido do termo regulação, Maria Sylvia Zanella Di Pietro [08] afirma que:
Regulação é vocábulo equívoco, porque tem diferentes significados. Nasceu nas ciências físicas e biológicas, com duplo aspecto: a idéia de regularidade e a idéia de mudança. Ao mesmo tempo que, pela regulação, se procura assegurar um certo grau de estabilidade no objeto da regulação, também se deixam as portas abertas para mudanças que sejam necessárias em benefício da própria estabilidade. O objeto da regulação pode ser a sociedade, algumas de suas dimensões, como a econômica, ou uma área de atividades sociais.
Prossegue a autora dizendo que Regulação é "gênero de que a regulamentação é espécie, ou seja, regulação abrange, inclusive, a regulamentação, como ato normativo de competência do Chefe do Executivo". Continua ela explicando que a regulação significa o simples estabelecimento de regras, independentemente do poder ou da autoridade que as edite. [09]
O seu conceito de regulação se adapta melhor à realidade nacional. Afirma ela que a função regulatória não se restringe ao âmbito econômico, mas também a outras áreas, dentre as quais a prestação de serviços públicos exclusivos e não-exclusivos do Estado:
Para essas áreas, o conceito de regulação econômica não se adapta inteiramente, porque a finalidade não e de ordem econômica. Daí ser preferível conceito mais amplo, em que estejam presentes os dois primeiros elementos já assinalados (fixação de regras de conduta e controle), mas se amplie o terceiro elemento, referente à finalidade da regulação jurídica, que é a de organizar os vários aspectos da vida econômica e social, para proteger o interesse público.
Por essa razão, pode-se definir a regulação, no âmbito jurídico, de modo a abranger a regulação da atividade econômica (pública e privada) e a regulação social. Nesse sentido, a regulação constitui-se como o conjunto de regras de conduta e de controle da atividade econômica pública e privada e das atividades sociais não exclusivas do Estado, com a finalidade de proteger o interesse público. [10]
Ressalte-se que a função reguladora do Estado está prevista expressamente na Constituição, em seu artigo 174, que assim dispõe:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
O sentido que se pretende dar neste estudo para a regulação, entretanto, é mais amplo. Decorre, grandemente, do contexto da desestatização da economia, ocasião em que foram introduzidas as agências reguladoras, com o fito de controlar, de forma descentralizada e sem a participação direta do legislativo, as diversas atividades econômicas.
Leopoldo Fontenele Teixeira [11] conceitua função regulatória como sendo:
O dever-poder de a Administração Pública intervir, indiretamente, na ordem econômico-social, seja por meio de ente criado especialmente para essa função, seja de forma centralizada, com o objetivo de atingir o equilíbrio do sistema objeto de regulação, combatendo, por meio de exercício de ponderação de interesses dos diversos envolvidos e com uso de critérios prioritariamente técnicos, suas imperfeições.
Valendo-se de alguns dos elementos acima transcritos, entendemos que a função regulatória consiste em uma forma de intervenção estatal no processo econômico com o escopo de se atingir o equilíbrio do sistema e de estimular práticas saudáveis de competição, através da elaboração de regras de direito e da instituição de uma estrutura de fiscalização e repressão de ilícitos, a ser desempenhada pelas agências reguladoras, em substituição à intervenção estatal tradicional. Não se exclui a hipótese de atuação da administração central, entretanto, parte-se do pressuposto que as agências foram criadas com mecanismos de autonomia destinados justamente a garantir uma atuação regulatória predominantemente técnica, com reduzida interferência de grupos de interesse.
Não se nega que a regulação da economia já vinha sendo desempenhada pelo Executivo desde longas datas, sendo certo que a mudança qualitativa observada na atualidade pode ser resumida em dois pontos principais: o primeiro consistente na atribuição desta competência para os entes autárquicos regulatórios recém-criados, os quais gozam de atributos de autonomia; e o segundo, a ampliação deste poder regulatório, a ponto de se permitir certo grau de inovação no ordenamento jurídico, respeitados os critérios e limites estabelecidos em lei.
Essa possibilidade de inovação, admitida pacificamente nos Estados Unidos, em função de peculiaridades do seu regime constitucional, merece uma profunda análise à luz do ordenamento jurídico brasileiro, a fim de se verificar a sua compatibilidade com a Constituição e a legitimidade dos atos emanados pelas agências.
3. Descentralização administrativa.
O modelo regulatório adotado no Brasil após o ingresso na fase de Estado Social, implicou em um aumento progressivo da demanda legiferante decorrente, em parte, do aumento do intervencionismo estatal e da implementação crescente de prestações sociais das mais diversas.
Essa inflação normativa exacerbou-se com a fase do Estado regulador, em que, além da demanda normativa já existente, acresceu-se uma nova cobrança: a necessidade de regulação de uma série de novas atividades econômicas decorrentes da desestatização de vários setores da economia. A maioria destas atividades, inclusive, é de extrema importância estratégica para o país, o que justifica um rigoroso controle estatal, que se deu justamente por meio da regulação.
Como a Constituição veda a transferência das competências próprias do poder executivo central (poder regulamentar) e do poder legislativo (poder normativo), é necessário definir com clareza o fundamento de validade do poder normativo das agências, a fim de se afastar a hipótese de inconstitucionalidade.
Primeiramente, no que diz respeito à delegação do poder regulamentar, o Texto Maior estabelece em seu art. 84, VI, que o seu desempenho é exclusivo do Chefe do Executivo. Assim, a primeira polêmica consiste na inquirição acerca da possibilidade deste poder regulamentar ser atribuído a outras entidades da administração, por meio das figuras da desconcentração e da descentralização.
A interpretação literal e isolada do art. 84, VI, da Constituição Federal certamente não é a melhor, pois é impossível (além de politicamente desinteressante) que uma única autoridade possa concentrar a atribuição de regulamentar com todo o necessário detalhamento as matérias abrangidas pelas inúmeras leis editadas no país. E mesmo se possível fosse, essa não seria a melhor solução, pois haveria grande risco de os regulamentos serem editados de modo insuficiente, com uma abordagem superficial de diversas matérias.
José dos Santos Carvalho Filho explica que existe uma variedade de atos, além dos decretos e regulamentos, que integram a concepção de poder regulamentar: [12]
Por esse motivo é que considerando nossa sistemática de hierarquia normativa, podemos dizer que existem graus diversos de regulamentação conforme o patamar em que se aloje o regulamentador. Os decretos e regulamentos podem ser considerados como atos de regulamentação de primeiro grau; outros atos que a eles se subordinem e que, por sua vez, os regulamentem, evidentemente com maior detalhamento, podem ser qualificados como atos de regulamentação de segundo grau, e assim por diante. Como exemplo de regulamentação de segundo grau, podemos citar as instruções expedidas pelos Ministérios de Estado, que têm por objetivo regulamentar as leis, decretos e regulamentos, possibilitando sua execução
Na verdade, o próprio poder regulamentar exercido pelo Chefe do Executivo se dá de forma desconcentrada, pois as minutas de decretos e regulamentos são elaboradas no âmbito dos ministérios e analisadas por uma série de órgãos consultivos e de assessoria, sendo certo que a participação do presidente se dá apenas a nível gerencial e decisório.
Ademais, adota-se largamente no país a solução de descentralização do poder regulamentar do executivo, de modo a se atribuir, mediante lei, parcelas desta competência para órgãos da administração direta ou indireta, a fim de que estes expeçam atos regulamentadores específicos (atos terciários).
No mesmo sentido, Leila Cuéllar: [13]
Reconhece-se atualmente que o poder regulamentar poder ser exercido não somente pelo Presidente da República, mas também pelos Ministros de Estado e por outros órgãos e entidades da Administração Pública, como as autarquias. Portanto, as agências examinadas, autarquias integrantes da Administração indireta, podem deter competência regulamentar
Assim, chega-se à conclusão de que a competência normativa do chefe do executivo tem caráter não exclusivo. Alexandre Santos de Aragão, ao comentar a Constituição italiana, defende este entendimento: [14]
O poder de baixar regulamentos, isto é, de estatuir normas jurídicas inferiores e subordinadas à lei, mas que nem por isso deixam de reger coercitivamente as relações sociais, é uma atribuição constitucional do Presidente da Republica, mas a própria lei pode conferi-la, em assuntos determinados, a um órgão da Administração Pública ou a uma dessas entidades autônomas que são as autarquias.
[...]
Tal como o art. 84, IV, da nossa Constituição, este é o único dispositivo da Constituição Italiana a respeito da competência para expedir regulamentos. Ambos os dispositivos devem ser entendidos como fixadores da competência do Chefe do Executivo para editar regulamentos, e, de fato, tal competência sempre existirá se a lei não dispuser em contrário. Noutras palavras, tal competência é, em princípio, do Chefe do Poder Executivo, mas não é exclusiva, podendo o Legislador conferi-las a outras autoridades públicas ou a entes descentralizados.
Em relação à suposta delegação de poder legiferante, importa esclarecer o seguinte. No Brasil, não há delegação da competência do Poder Legislativo para as agências. Essa hipótese de delegação é absolutamente refugada pelo nosso sistema constitucional, por mais que decorra de iniciativa de lei ou mesmo de Emenda Constitucional. [15]
No direito administrativo americano, esta delegação é amplamente aceita em função de três teorias, a saber: a) conhecimento técnico, em que a delegação se fundamenta no fato da agência ter melhores condições para decidir sobre a matéria posta de forma técnica e imparcial, bem como pela inabilidade do Congresso normatizar matérias de cunho técnico; b) transmissão democrática, poiso sistema constitucional americano permite a delegação de competência legislativa para as agencies; e c) teoria do procedimento, em que a normatização emitida pelas agências se legitimaria em função da possibilidade de participação da coletividade no processo decisório. [16]
Nesse país, a legislação se limita a fixar princípios, standards (binômio diretriz-limite à atuação das agências) [17] e conceitos indeterminados (intelligible principle), cabendo às agências a função de elaborar normas para regular as atividades econômicas, observando para tal as limitações legais. Assim, no sistema americano, a regulação decorre de delegação de poder legiferante (bem como de parcela de poder jurisdicional, conforme já analisado antes) e se distingue qualitativamente da mera regulamentação.
No sistema brasileiro, entretanto, a delegação de poder legiferante é inaceitável, de modo que a solução americana é aplicável apenas parcialmente. Assim, em função do nosso direito administrativo ter sofrido ampla influência do sistema administrativo francês, onde predomina a idéia de rígida composição hierárquica, a atribuição da competência normativa às agências se pauta na descentralização administrativa e não na delegação de competência legislativa.
Desse modo, cabe ao Poder Legislativo determinar, no momento da criação da agência reguladora, normas gerais e abstratas (diretrizes e limites, conhecidas como standards) que serão, na prática, operacionalizadas pela referida entidade. Ressalte-se que o executivo influi grandemente neste processo, pois detém a prerrogativa de iniciativa de lei em matéria de organização administrativa e de criação de órgãos públicos (art. 61, §1°, "b" e "e", da Constituição).
Em função da sua relevância, convém citar a seguinte passagem da obra de Alexandre de Moraes: [18]
Dessa forma, a moderna Separação dos Poderes mantém a centralização governamental nos poderes políticos – Executivo e Legislativo -, que deverão fixar os preceitos básicos, as metas e as finalidades da Administração Pública, porém, exige maior descentralização administrativa, para a consecução desses objetivos [...] O congresso Nacional permanecerá com a centralização governamental, pois decidirá politicamente sobre a delegação e seus limites às Agências Reguladoras, porém efetivará a descentralização administrativa, permitindo o exercício do poder normativo para a consecução das metas traçadas na lei.
Neste mesmo sentido, o desenvolvimento de Lucas de Souza Lehfeld: [19]
O poder normativo das agências reguladoras advém de dois processos decorrentes de uma releitura do princípio da separação dos poderes, quais sejam, centralização governamental e descentralização administrativa. O primeiro refere-se à conditio sine qua non dos Poderes Políticos – Executivo e Legislativo – em fixar preceitos básicos, metas e finalidades da Administração Pública, que para cumpri-los exige maior flexibilidade na sua estrutura organizacional, com a atribuição de autonomia e de poderes normativos a entidades reguladoras (agências).
Explica o autor que se trata de uma releitura do princípio da separação dos poderes. A centralização governamental ocorre no âmbito dos Poderes Políticos (Executivo e Legislativo), aos quais cabem as atribuições de estabelecer políticas, metas e finalidades para a Administração Pública por meio de conceitos genéricos (standards normativos). A consecução destes objetivos se dá por meio da transferência das atividades decisórias, regulatórias e fiscalizatórias às agências, por meio da descentralização administrativa.
Assim, conclui-se que, no Brasil, não há propriamente uma delegação legiferante, tal como ocorre nos Estados Unidos, mas sim uma descentralização de uma parcela das atividades administrativas do executivo. Observe-se que essas competências do Poder Executivo foram infladas ao longo do tempo em função de um processo historio de mutação constitucional do princípio da separação de poderes.
No que se refere à importação do modelo agencial, Marçal Justen Filho [20] aponta que:
A tradição norte-americana conduziu a uma ampliação muito significativa da competência normativa das agências. Adotou-se entendimento que permite ao Legislativo estabelecer um núcleo normativo extremamente reduzido, com ampla autonomia normativa para as agências. Quando se reconhece a existência de competência normativa para as agências reguladoras, não se pretende adotar as concepções norte-americanas. O princípio da legalidade, entre nós, significa a necessidade do ato legislativo disciplinar extensamente a matéria. Os dados fundamentais da hipótese de incidência e do mandamento normativo apenas podem ser veiculados por meio de lei. Não se admite que a lei estabeleça um padrão abstrato, preenchível pelos mais variados conteúdos, e remeta à agência seu desenvolvimento autônomo.
Assim sendo, observa-se que a delegação de poderes regulatórios no sistema brasileiro é de uma amplitude reduzida, não havendo, dentre outras, a delegação de poderes legiferantes e jurisdicionais, ao passo em que as balizas estabelecidas em lei são bem mais rígidas do que no modelo de origem.