Resumo.
Este artigo visa realizar uma análise temporal a respeito da realização de concursos públicos. Será discutida, no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, a iniciativa da Administração Pública em promover processos seletivos simultâneos para o mesmo cargo público. Além disso, será estudada a situação gerada pela realização de concursos públicos sucessivos, quando um novo certame é realizado antes do vencimento do prazo de vigência de seu antecessor.1. Introdução
A qualidade dos serviços públicos depende consideravelmente da qualificação dos recursos humanos neles empenhados. Buscando a transparência na seleção de novos servidores públicos plenamente capazes de colaborar com a Administração Pública, a Constituição Federal de 1988 instituiu o concurso público como requisito obrigatório para a investidura em cargos públicos. Assim, uma vez homologado o certame, é legítima a nomeação daqueles que obtiveram pontuação suficiente para figurarem como classificados.
A controvérsia, entretanto, se inicia com a decisão da Administração Pública de realizar concursos públicos sucessivos, divulgando edital de novo concurso público antes do natural escoamento do prazo de validade daquele anteriormente realizado. Há ainda a conflituosa situação na qual o novo concurso tem início antes mesmo da homologação de seu antecessor.
O objetivo deste artigo é colaborar com a estabilização do entendimento doutrinário a respeito dos institutos da execução de concursos públicos sucessivos e simultâneos. É realizada uma análise temporal da realização do processo seletivo, contribuindo para a construção de uma maior segurança jurídica na sua realização.
O documento foi dividido em quatro seções. A seção 2 é uma descrição a respeito da forma como o concurso público está positivado no Direito Nacional. A seção 3 apresenta uma análise temporal da realização de concursos públicos, tratando dos casos de concursos públicos sucessivos e simultâneos. A seção 4 traz as conclusões finais.
2. O Concurso Público no Direito Positivo Nacional
A exigência de concurso público para a investidura em todo e qualquer cargo público é fruto da Constituição Federal de 1988. As Constituições pretéritas tornavam obrigatório o concurso, como regra geral, somente na primeira investidura para cargo de carreira. Uma vez nomeado, o então funcionário público poderia cambiar cargos públicos sem nenhum tipo de processo seletivo formal. Na Carta hora vigente, o concurso público está regulado no art. 37, transcrito a seguir:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
.......................
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
III - o prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período;
IV - durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira;
......................................
O constituinte objetivou com o referido artigo orientar a realização do concurso público com os princípios básicos que regem a Administração Pública, quais sejam, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Além disso, o ilustre administrativista José dos Santos Carvalho Filho destaca que o concurso público baseia-se em três postulados fundamentais:
- Princípio da igualdade: estatui que os concorrentes a cargo público disputem as vagas em condições idênticas. Para a realização de concurso público de acordo com o princípio da igualdade, a Administração Pública deve promover ampla divulgação do certame e impedir qualquer tipo de favorecimento pessoal. Além disso, os requisitos a serem cumpridos pelos candidatos para a realização das provas devem ser razoáveis, sob pena de comprometer a isonomia da seleção. Segundo Adilson Abreu Dallari:
"Não é concurso público o certame que se desenvolve sem observância do princípio da isonomia. É essencial que todo e qualquer interessado seja tratado com igualdade, para que vençam os melhores." (DALLARI, 2006)
- Princípio da moralidade administrativa: estatui que o certame deve ocorrer obedecendo os preceitos éticos e os ideais de justiça e honestidade. Nesse sentido é lição de Hely Lopes Meirelles, citando Hauriou, pioneiro a tratar do tema:
"A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta externa; a moral administrativa é imposta ao agente público para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum." (MEIRELLES, 1992)
- Princípio da competição: estatui que os candidatos devem ser selecionados e classificados de acordo com seu desempenho no certame. Assim, a Administração Pública deve valer-se de um concurso público, aplicado a todos os interessados, para obter uma ordem de preferência a ser utilizada na nomeação.
Diante da falta de transparência do processo de nomeação de cargos públicos regidos pela Constituição anterior, prevê a Carta Magna de 1988 a elaboração de lei destinada a reger o processo de seleção (art. 37, II, CF/88). A análise do texto constitucional revela que a intenção do legislador é condicionar a investidura em cargo ou emprego público à estrita obediência à lei que regularia o certame. Assim, o inciso II do artigo 37 seria dotado de eficácia limitada, tornando urgente a elaboração de legislação adequada sob pena de tornar a Administração Pública incapaz de convocar novos servidores.
Na esfera federal, foi promulgada a Lei 8.112/90, o chamado Estatuto dos Servidores Públicos Federais, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Apesar de ter dedicado a Seção III à regulamentação do Concurso Público, foi extremamente sucinto. De fato, valeu-se de somente de dois artigos, os arts. 11 e 12, pouco acrescentando ao tema.
Lamentavelmente, a ordem da Constituição não foi suficiente para a elaboração da tão aguardada lei dos concursos públicos, caracterizando-se uma flagrante omissão legislativa ao dever constitucional. Diante da inexistência de legislação infraconstitucional adequada a respeito do processo seletivo, os concursos públicos continuaram a ser promovidos baseando-se unicamente nas minimamente detalhadas normas constitucionais e nos breves artigos do Estatuto dos Servidores. Dessa forma, são freqüentes as inadequações durante a execução de concursos públicos, visto o desequilíbrio resultante da hipossuficiência do candidato, carente de direitos, diante da entidade responsável pela elaboração e aplicação das provas.
A validade do concurso público é tratada no inciso III do art. 37. Segundo este, o prazo no qual o concurso é considerado válido obedece a um limite máximo de dois anos, sendo facultada à Administração Pública a prorrogação pelo mesmo período inicial. Entende-se que a contagem do período de validade do concurso inicia-se com a homologação do mesmo.
Finalmente, o inciso IV do artigo 37 estabelece uma ordem de prioridade da convocação de um candidato aprovado sobre novos concursados, enquanto o concurso do primeiro permanecer válido. Na esfera federal, há ainda o art. 12, § 2o, que determina que não se abrirá novo concurso enquanto houver candidato aprovado em concurso anterior com prazo de validade não expirado. Dessa forma, o legislador pretendeu eliminar a possibilidade de realização de concursos sucessivos enquanto no primeiro ainda houver candidato aprovados. Assim, a União fica restrita à realização de concurso nas circunstâncias do art.12, § 2º.
A seguir, serão apresentados maiores detalhes a respeito da ordem de realização de concursos e da insegurança jurídica gerada pela ausência de uma lei mais específica no trato do tema.
3. A Realização de Concursos Públicos: Uma Análise Temporal
O dinamismo da modernidade tem gerado colisões entre os princípios que orientam o instituto do concurso público. Por um lado, é desejável a promoção de um processo de recrutamento eficiente, capaz de oferecer celeridade na nomeação de novos servidores públicos. Entretanto também se espera que tal seleção seja coerente com os demais princípios que regem o certame, em especial a moralidade administrativa e a igualdade entre os concorrentes.
Diante da necessidade de recursos humanos, a Administração Pública tem criado situações atípicas com relação ao gerenciamento de uma pluralidade concursos públicos válidos, para o mesmo cargo. A seguir, serão tratados os casos de realização de concursos públicos sucessivos e simultâneos.
3.1. Concursos Públicos Sucessivos
Freqüentemente a Administração Pública decide dar início a novo concurso público para o mesmo cargo ainda durante o prazo de vigência de certame anterior. Em que pese a proibição, na esfera federal, da ocorrência de concursos sucessivos enquanto houver aprovados no primeiro deles (art.12, § 2º), tal prática é comum nas esferas estadual e municipal. É precisamente o caso tratado no art. 37, IV, da Constituição Federal, que prevê prioridade de nomeação do aprovado sobre novos concursados.
De início, destaca-se o caso de aprovação de candidato dentro do número de vagas ofertado na publicação do edital. Entende o Supremo Tribunal de Justiça, com ampla jurisprudência, que o candidato aprovado nessas circunstâncias tem o direito líquido e certo de ser nomeado no cargo. Tome-se, a exemplo, o Recurso em Mandado de Segurança 20718 do STJ. Segundo o acórdão:
"A partir da veiculação, pelo instrumento convocatório, da necessidade de a Administração prover determinado número de vagas, a nomeação e posse, que seriam, a princípio, atos discricionários, de acordo com a necessidade do serviço público, tornam-se vinculados, gerando, em contrapartida, direito subjetivo para o candidato aprovado dentro do número de vagas previstas em edital."
Quanto aos candidatos aprovados fora do número de vagas, não possuirão direito subjetivo à nomeação para a posse, mas somente preferência em relação a candidatos aprovados dentro das vagas de concurso posterior (art.37, IV).
3.2. Concursos Públicos Simultâneos
Situação diferenciada é a resultante da publicação de edital de concurso público antes que o certame anterior, para mesmo cargo, tenha alcançado a homologação, estando ainda em andamento. Tem-se, nesse caso, a ocorrência de inusitada simultaneidade de concursos públicos.
Tome-se, a título de exemplo, um concurso composto de duas fases, quais sejam realização de provas e participação em curso de formação. Por vezes a Administração Pública peca pela falta de celeridade na realização desta última fase, surgindo tão logo a necessidade de um segundo concurso para ocupar novas vagas para o mesmo cargo.
Verificando que tal situação não é tratada explicitamente no art. 37 da Carta Magna, resta analisar a solução mais compatível com os princípios administrativos e com o entendimento jurisprudencial.
Ao realizar concursos públicos simultâneos, a Administração Pública transgride dois dos postulados fundamentais do instituto. Primeiro, não obedece ao princípio da igualdade, uma vez que os candidatos não irão obedecer ao mesmo edital, realizando as etapas em momentos diferentes e possivelmente sendo exigidos de conteúdos diferentes em suas respectivas provas. Segundo, não observa o princípio da competição, pois os candidatos não irão concorrer entre si em um concurso público comum. Não há como a Administração Pública respeitar a competição dos candidatos dividindo-os em dois grupos, ofertando para cada um deles vagas reservadas sem qualquer justa motivação. Dessa forma, trata-se de flagrante caso de inconstitucionalidade.
A título de exemplo, citam-se como concursos simultâneos os realizados pelo Ministério da Fazenda, para o cargo de Auditor Fiscal do Tesouro Nacional (1991), e mais recentemente pela Secretaria Especial de Controladoria Geral de Pernambuco (2009 e 2010), para os cargos de Analista de Controle Interno – Finanças Públicas, Tecnologia da Informação e Obras Públicas.
A esse respeito, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
"A CF assegura, durante o prazo previsto no edital do concurso, prioridade na convocação dos aprovados, isso em relação a novos concursados. Insubsistência de ato da administração pública que, relegando a plano secundário a situação jurídica de concursados aprovados na primeira etapa de certo concurso, deixa de convocá-los à segunda e, em vigor o prazo inserido no edital, imprime procedimento visando à realização de novo certame." (AI 188.196-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 26-11-1996, Segunda Turma, DJ de 14-2-1997.)
4. Conclusão
A Constituição Federal de 1988 tornou-se um marco histórico ao tratar como requisito obrigatório para a investidura em cargo público a aprovação em concurso. Entretanto, as antigas problemáticas quanto ao desrespeito aos princípios administrativos durante o processo seletivo ainda urgem em ser definitivamente sanadas, especialmente através da tão aguardada lei dos concursos públicos. Diante da ausência desta, gerou-se uma gama de situações inusitadas sem tratamento legal, a exemplo da realização de uma pluralidade de concursos públicos sucessivos ou simultâneos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem adotado a postura de que trata-se de direito subjetivo do candidato a sua nomeação quando aprovado dentro do número de vagas especificado no edital. A Constituição de 1988 garante ainda prioridade aos candidatos aprovados sobre novos concursados, no caso de concursos sucessivos.
Quanto à realização de concursos simultâneos, apesar de ser prática recorrente na Administração Pública, a jurisprudência ainda é bastante escassa. Em decisão de agravo de instrumento, o STF se posicionou contrário à possibilidade de sua realização. De fato, ao dar início a novo concurso antes da homologação do anterior, a Administração Pública desrespeita os princípios básicos que regem o instituto, em especial o princípio da igualdade e o da competição.
Referências
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990.