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Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça

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Agenda 01/02/2001 às 00:00

4. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos como Direitos Humanos: a construção de um conceito

Pode-se afirmar que os direitos reprodutivos correspondem ao conjunto dos direitos básicos relacionados ao livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, circulando no universo dos direitos civis e políticos, quando se referem a liberdade, autonomia, integridade etc. e aos direitos econômicos, sociais e culturais quando se referem às políticas do Estado. Esse conceito, compreende o acesso a um serviço de saúde que assegure informação, educação e meios, tanto para o controle da natalidade, quanto para a procriação sem riscos para a saúde(19). A partir desta percepção incorpora-se o princípio de que, na vida reprodutiva, existem direitos a serem respeitados, mantidos ou ampliados. Isso implica em obrigações positivas para promover o acesso à informação e aos meio necessários para viabilizar as escolhas. O conceito de direitos reprodutivos não é meramente explicativo, eis que imputa responsabilidades, ações direta ao Estado. Já no caso dos direitos sexuais pode-se falar, ainda, em obrigações negativas, significa que o Estado, além de ter que coibir práticas discriminatórias que restrinjam o exercício do direito à livre orientação sexual (tanto no âmbito estatal quanto das relações sociais), não deve regular a sexualidade, bem como as práticas sexuais.

Nesse sentido merece destaque o princípio 4 da Conferência do Cairo:

Promover a equidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação da mulher, em igualdade de condições na vida civil, cultural e econômica, política e social em nível nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação por razões do sexo são objetivos prioritários da comunidade internacioanal."

Como explica Leila Linhares: "No Cairo, em 1994, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento introduziu um novo paradigma à temática do desenvolvimento populacional, deslocando a questão demográfica para o âmbito das questões relativas aos direitos reprodutivos e ao desenvolvimento. Nessa Conferência, ficou firmado o princípio que as políticas relacionadas à população devem ser orientadas pelo respeito aos direitos humanos universais. A ativa participação do movimento internacional de mulheres nas fases preparatórias e durante a própria Conferência permitiram a legitimação da noção de direitos reprodutivos, apontando a necessidade de amplos programas de saúde reprodutiva e reconhecendo o aborto como um grave problema de saúde pública"(20). Em 1995, a Cúpula Mundial de Desenvolvimento Social, realizada em Copenhague, deu ênfase à necessidade de erradicação da pobreza, incluindo iniciativas destinadas a medir e a reduzir os impactos sociais do ajuste econômico, especialmente sobre as mulheres e crianças. Ainda em 1995, em Beijing, foi realizada a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz, que incorporou as agendas das Conferências de Direitos Humanos, 1993, de População e Desenvolvimento, 1994, e da Cúpula de Desenvolvimento Social, 1995, avançando e firmando, de modo definitivo, a noção de que os direitos das mulheres são direitos humanos; a noção de saúde e direitos reprodutivos, bem como o reconhecimento de direitos sexuais, com a recomendação de que sejam revistas as legislações punitivas em relação ao aborto, considerado, tal como na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, 1994: um problema de saúde pública.

Os documentos básicos dessas Conferências, mesmo não sendo textos legais, como os tratados internacionais, configuram-se, a partir de seus princípios básicos, aprovados por consenso pelos Estados-membros das Nações Unidas, como fonte do direito que devem ser incorporadas na sua interpretação e aplicação.

Os direitos reprodutivos como direitos sociais centram-se mais na percepção da sua efetivação e garantia. As respostas para perguntas como: Onde as pessoas estão conseguindo exercer a anticoncepção? Através do serviço de saúde? Através da esterilização? No mercado, em farmácias, com a compra de pílulas?, passam, invariavelmente pela forma como o Estado desenvolve suas políticas.

Ao mesmo tempo em que o centro da questão é o respeito aos direitos individuais de integridade, não discriminação, dignidade, autonomia etc. há necessidade de existir políticas realmente efetivas que viabilizem a garantia destes direitos, ou seja, o modelo de política econômica adotada pode contribuir ou não para a exclusão e empobrecimento da população. Exemplo disso é o uso da pílula e da esterilização como principais métodos contraceptivos (a pílula, no Brasil, é em 80% fornecida pelo setor privado(21)). O fornecimento dos métodos anticoncepcionais pelo setor privado pode parecer secundário, mas quando falamos de um país cujo os índices de concentração de renda rendem o título de primeiro lugar no rol mundial, o enfrentamento da questão econômica é base das relações de desigualdade e violação a direitos, principalmente no universo dos direitos sexuais e reprodutivos. Se as políticas de planejamento não incorporam questões sócio culturais, constituem-se de forma frágil e pouco eficiente, pois reiteram as desigualdades ao invés de contribuir para sua erradicação.

A compreensão da saúde reprodutiva como direito reprodutivo é uma ponte ainda não construída, isso porque os dispositivos legais não são auto-explicativos, possibilitando que

os direitos reprodutivos possam assumir significados diversos para diferentes pessoas, dependendo da posição de poder que ocupam, da orientação sexual, do gênero, da nacionalidade, e assim por diante(22).

Além da difícil necessidade de conciliar o plano da saúde: direitos sociais e o plano da autonomia: direitos individuais, que conjuntamente abarcam o universo dos direitos reprodutivos, cujo ideal, segundo Sonia Correa, é a complementação, também pode gerar problemas reais de viabilização de direitos, como por exemplo o tratamento dado ao aborto. Se compreendido como um problema de saúde pública, como ficou elencado no Cairo, e não como uma violação à autonomia e uma discriminação, dá margem para a intervenção do Estado no gerenciamento deste problema, confrontando o direito individual e o direito social.

Jonatham Mann(23) afirma que a promoção e proteção da saúde estão intrinsecamente ligadas à promoção e proteção dos direitos humanos, e que, ao não compreender isto, os formuladores e gestores de políticas na área da saúde, bem como os operadores de direito podem cometer o grave erro de elaborar estratégias ineficientes e discriminatórias.

Conceber os direitos reprodutivos como direitos humanos significa compreender o exercício da sexualidade e da reprodução como inerentes à condição humana. A ausência dessa consciência explica, Rebecca Cook(24)

é o motivo pelo qual as normas internacionais sobre direitos humanos ainda não têm sido aplicadas de forma efetiva para reparar as desvantagens e injustiças que vivem as mulheres unicamente pelo fato de serem mulheres.

A importância de abordar os direitos reprodutivos como direitos humanos justifica-se, segundo Rebbecca Cook(25), não apenas pela carência de interpretação dos documentos internacionais pelos sistemas nacionais, mas porque os direitos humanos representam a garantia da dignidade humana contra ações do Estado e de indivíduos.

Todos os principais documentos sobre direitos humanos, desde a Declaração Universal de 1948, têm muito a dizer sobre direitos humanos das pessoas em suas vidas particulares e pessoais: casar e formar família, expressar suas crenças e religiões, educar os filhos, respeito a privacidade e a propriedade etc., mas nada consta no sentido de expressar e ter liberdade em sua sexualidade(26). Nenhum instrumento internacional relevante, anterior a 1993, faz qualquer referência ao mundo da sexualidade. Antes de 1993, a sexualidade de qualquer espécie e suas manifestações estão ausentes do discurso internacional sobre direitos humanos.

Somente com a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, de 1993, em Viena, houve, a partir dos esforços dos movimentos sociais, a inclusão da questão da sexualidade. A Declaração de Viena foi importante, não só pelo fato de reconhecer a violência sexual como uma violação dos direitos humanos, mas também porque finalmente introduziu-se o sexual na linguagem dos direitos humanos. Entretanto, foi apenas na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, que a sexualidade começou a aparecer nos documentos internacionais como algo positivo, em lugar de algo sempre violento, insultante, ou santificado e escondido pelo casamento heterossexual e pela gravidez. Pela primeira vez em um documento internacional de direitos humanos é incluído de modo explícito a saúde sexual na lista dos direitos que devem ser protegidos pela população e pelos programas de desenvolvimento. Contudo a liberdade de expressão sexual e a orientação sexual jamais receberam reconhecimento como um direito humano, nem na Conferência do Cairo, nem em qualquer outra.

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A Plataforma de Ação elaborada em Beijing, 1995, avançou alguns passos no sentido de formular um conceito referente aos direitos sexuais como parte dos princípios dos direitos humanos:

Os direitos humanos das mulheres incluem seu direito a ter controle e decidir livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexualidade, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, livre de coação, discriminação e violência(27).

A autodeterminação e os direitos sexuais implicam tanto a liberdade negativa de impedir intrusões indesejadas, violações e abusos, quanto a capacidade positiva de buscar e experimentar prazeres em uma variada gama de modos e situações.

Tendo como referência os preceitos enunciados nos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, pode-se destacar que os direitos sexuais e reprodutivos incluem: a) o direito de adotar decisões relativas à reprodução sem sofrer discriminação, coerção ou violência; b) o direito de decidir livre e responsavelmente o número de filhos e o intervalo entre seus nascimentos; c) o direito de ter acesso a informações de métodos anticoncepcionais e meios seguros (serviços), disponíveis, acessíveis e d) o direito de acesso ao mais elevado padrão de saúde reprodutiva. Por sua vez, os direitos sexuais compreendem: a) direito a decidir livre e responsavelmente sobre sua sexualidade; b) o direito a ter controle sobre seu próprio corpo; c) o direito a viver livremente sua orientação sexual, sem sofrer discriminação, coação ou violência; d) o direito a receber educação sexual; e) o direito à privacidade; f) o direito a fruir do progresso científico e a consentir livremente à experimentação, com os devidos cuidados éticos recomendados pelos instrumentos internacionais; g) o direito de Ter a prática sexual desvinculada da gerência do Estado.(28)


5. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos e o ordenamento jurídico Brasileiro

O Estado Democrático de Direito caracteriza-se por estar orientado por princípios e normas, legitimadas pela vontade popular, que o auto limita e delega responsabilidades, ou seja, direciona as suas práticas políticas. Esses princípios e normas estão sistematizados fundamentalmente na Constituição Federal de 1988(29).

O Brasil tem ratificado vários instrumentos internacionais que referem-se direta ou indiretamente as questões da reprodução e sexualidade, e que vêm a influenciar, uma vez introduzidos no sistema interno, as ações do Estado.

A implementação(30) das normas internacionais e plataformas de ação é um dos grandes desafios para o aprimoramento dos sistema interno de direito. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte passam, consoante os artigos 5º, x 2º e 5º, x 1º, da Constituição Federal de 1988, a integrar e podem ser imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno(31):

x 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

x 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

O disposto no artigo 5º, x 2º se insere na tendência (recente) de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionais consagrados. Porém, o Supremo Tribunal Federal compreende as normas internacionais de direitos humanos com o status de lei federal, o que resulta em implicações diretas na funcionalidade do direito, tanto pela questão da hierarquia das normas, mas, principalmente, porque são os princípios constitucionais que orientam a interpretação das dispositivos jurídicos, interpretação que influencia diretamente as decisões dos tribunais e, indiretamente, na forma de organização das políticas do Estado(32).

Ao mesmo tempo que o direito representa um sistema fechado, por deliberar sobre sua própria ação e prática do estado, impondo limites e obrigações através da positivação, é aberto porque esta deliberação ocorre com a leitura dos dispositivos. Se impera a lógica dedutiva, de mera vinculação de fatos e normas, a interpretação é condicionada pela cultura e moral da sociedade em que estamos inseridos. Por outro lado, se a base de justificação e validade da norma é a constituição e os princípios de direitos humanos a chance das operadores reproduzirem preconceitos sociais e de reiterarem as desigualdades diminuem, principalmente porque há a possibilidade de incorporação da perspectiva de gênero(33), raça e classe.

A incorporação pelo sistema jurídico brasileiro dos postulados internacionais reflete-se em uma nova forma de compreensão do fenômeno da reprodução e da sexualidade. Um exemplo disso é o que ocorre com os direitos sexuais e reprodutivos a partir da sua positivação na Conferência sobre População e Desenvolvimento(34), realizada pela ONU em 1994, na cidade do Cairo/Egito. Esta Conferência foi palco de uma discussão muito importante sobre os temas da reprodução e da sexualidade, tendo como referência o impacto das políticas públicas no tamanho das populações e no desenvolvimento da sexualidade e reprodução.

Em 1968, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em Teerã, surge os primeiros alinhavos sobre o que viria a se constituir, internacionalmente como direitos reprodutivos:

Capítulo 16.

Os pais têm o Direito Humano fundamental de determinar livremente o número de seus filhos e os intervalos entre seus nascimentos.

Porém, é somente com a Conferência do Cairo, que pode ser citada como uma marco desta discussão, que foi introduzido, de forma global e politicamente articulada, a previsão de gênero, reordenando o lugar da reprodução e da sexualidade no universo social.

O Capítulo 7 da convenção adota a definição da Organização Mundial de Saúde para a "saúde sexual" como parte integrante da saúde reprodutiva, afirmando que a

saúde reprodutiva é um estado geral de bem-estar físico, mental e social, e não de mera ausência de enfermidades ou doenças, em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo, suas funções e processos.

Consequentemente, a saúde reprodutiva implica na capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória, podendo decidir se, quando e com que freqüência desejam se reproduzir. Esse capítulo define o propósito da vida sexual como a intensificação da vida e das relações pessoais, não apenas o aconselhamento e os cuidados relacionados com a reprodução e com as doenças sexualmente transmissíveis. Além disso, define como direitos do homem e da mulher obter informação e de planejar a família de sua escolha, bem como de fazer uso de métodos para a regulação da fecundidade que não estejam legalmente proibidos, de ter acesso à métodos seguros, eficazes, exeqüíveis e aceitáveis, o direito de receber serviços apropriados de atenção à saúde que permitam gravidez e parto sem riscos e ofereçam aos casais as melhores possibilidades de terem filhos sadios(35).

Outra questão é o gerenciamento da reprodução, dos direitos reprodutivos, que possui objeto distinto dos direitos sexuais e não os pressupõem para o seu desenvolvimento, ainda mais com as atuais tecnologias reprodutivas. O item 7.3 afirma que:

os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos nas leis nacionais, nos documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos pertinentes das Nações Unidas aprovados por consenso. Esses direitos baseiam-se no reconhecimento do direito básico de todos os casais e indivíduos a decidir livre e responsavelmente o número de filhos e o intervalo entre eles, a dispor da informação e dos meios para tal e o direito de alcançar o nível mais elevado de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também o direito a tomar decisões referentes à reprodução sem sofrer discriminação, coações nem violência, conforme estabelecido nos documentos dos direitos humanos. No exercício deste direito, os casais e os indivíduos devem levar em consideração as necessidades de seus filhos já nascidos e futuros e suas obrigações com a comunidade. A promoção do exercício responsável desses direitos de todos deve ser a base primordial das políticas e programas estatais e comunitários no âmbito da saúde reprodutiva incluindo o planejamento familiar.

Os postulados das Plataformas de Ação, como Viena, Cairo e Beijing, proporcionam base interpretativa para as normas internacionais, como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, quando, no seu artigo 4º, direito à vida, afirma:

Artigo 4º Direito à vida

1.Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (grifo nosso).

E no artigo 5º, direito à integridade pessoal:

Artigo 5º Direito à integridade física

1.Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

Ao relacionarmos com os direitos sexuais e reprodutivos a proteção a vida e a integridade pessoal devem ser pensadas conjuntamente. Além da idéia de autonomia e integridade física os direitos sexuais e reprodutivos centram-se no pressuposto da não discriminação, ou seja, quando o artigo 4º fala em geral ao se referir a proteção a vida desde a concepção a interpretação deve ser feita de acordo com o conjunto de fatores que envolvem os fatos: condições econômicas e sociais, civis e políticas e históricas, sob o risco de que elementos morais, presentes no sistema jurídico, promovam práticas discriminatórias. É importante ressaltar, ainda, que o Pacto de San José foi ratificado em 1969, quando a América Latina estava sob a lógica dos Estados Totalitários e da promoção da natalidade. Mais recentemente, em 1979, a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher(36) (CEDAW), orienta para novas práticas referente ao assunto da sexualidade e reprodução:

Artigo 1º

Para fins da presente Convenção, a expressão discriminação contra a mulher significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de sue estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, do direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos políticos, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

As leis que determinam a situação jurídica das mulheres, incluídos seus direitos reprodutivos, derivam de diversas fontes. No sistema jurídico brasileiro, as fontes formais do Direito estão hierarquizadas em vários níveis, de acordo com o princípio de supraordenação que estabelece a superioridade da Constituição Federal sobre as demais normas.

A Constituição Federal de 1988 simboliza o marco jurídico da transição democrática no país, sendo resultado de um amplo movimento pela redemocratização brasileira, estabelecendo, por fim, o Estado Democrático de Direito, cuja legitimação provem da vontade social. Já os tratados ratificados pelo Brasil comprometem legalmente o governo ao fazer parte do ordenamento jurídico existente, influenciando-o de duas formas: a) através das resoluções proferidas em sentenças e b) com orientação para as políticas públicas do Estado. Assim, o direito exerce um duplo grau de ação no Estado, daí a sua importância nas questões pertinentes a construção e efetivação dos direitos humanos.

O status dos tratados internacionais de direitos humanos no Brasil não é pacífico. A doutrina orienta-se no sentido de dar status constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos a partir da interpretação do x 2º do artigo 5º em harmonia com o próprio x 1º desse mesmo artigo, combinado com o inciso III do artigo 1º e inciso II do artigo 4º da CF/88:

Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem com fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana

Artigo 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

II – prevalência dos direitos humanos.

Porém, até hoje, o STF não decidiu segundo este pensamento, delegando status de norma federal. Os instrumentos internacionais apresentam um duplo impacto: seja perante as instâncias nacionais, seja perante as instâncias internacionais. Todavia a sua plena utilização carece de operadores sensíveis e capacitados para tanto, o que é perfeitamente compreensível num modelo jurídico pouco criativos e demasiadamente dogmático.

Na medida em que os direitos reprodutivos se expressam, muitas vezes sob a forma de princípios, sua relação com o sistema jurídico é extremamente ampla, podendo tais direitos ser relacionados com diversas áreas, como a economia, o sistema educacional etc(37).

Para estudos das normas constitucionais, conforme ensina Flávia Piovesan(38)., deve-se ter em mente que, ao abordar uma determinada norma constitucional, não se pode ignorar que o texto constitucional representa um todo coeso, sendo que aqual norma específica deve ser entendida no conjunto das normas constitucionais, com especial destaque para os princípios informadores da própria Constituição. Esse processo é designado, na área do direito, por interpretação sistemática.

Dentro da Constituição, pela sua própria disposição, há uma hierarquia axiológica das normas, ou seja, algumas normas têm mais preponderância que outras. Os princípios constitucionais estão no topo desta relação, devendo ser fonte inspiradora e de referência para a leitura das normas constitucionais e do ordenamento jurídico em geral. Dos princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, destacam-se relevantes dispositivos na discussão sobre os direitos reprodutivos. Assim, o artigo 1º arrola entre os fundamentos da República Federativa do Brasil: a cidadania e a dignidade da pessoa humana, enquanto que o artigo 3º coloca como um de seus objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor e idade e quaisquer outras formas de discriminação. Tais princípios reiteram a lógica dos direitos, que se apresentam através do exercício da cidadania e da dignidade da pessoa humana, opondo-se a todos os tipo de preconceitos ou discriminações. Do Título II: Dos direitos e garantias fundamentais, destacam-se os dispositivos do capítulo referente aos direitos e deveres individuais e coletivos:

Artigo 5º

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;

O artigo 5º traz os pressupostos do ordenamento jurídico brasileiro, o inciso primeiro é de grande importância para derrogar toda e qualquer tipo de discriminação quanto à mulher existente na ordem infraconstitucional.

Do capítulo consagrado aos direitos sociais, destacam-se:

Artigo 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Artigo 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;

XIX – licença-paternidade, nos termos fixados em lei;

XXV – proibição de diferença de salário, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;

Na mesma linha, prevês o artigo10, II, "b" do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Artigo 10

II – fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa:

b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto.

§ 1º Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º, XIX da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de cinco dias.

Os direitos sociais representam o instrumento de efetivação do direito individual, são de fundamental importância para a garantia do pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.

No Título VIII, "Da Ordem Social", encontra-se a maior parte das normas constitucionais relativas aos direitos reprodutivos, com destaque para aquelas concernentes aos direitos à saúde e ao planejamento familiar:

Artigo 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 199.

§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo o tipo de comercialização.

Artigo 201. Os planos de previdência social, mediante contribuição atenderão, nos termos da lei, a:

II – ajuda à manutenção dos dependentes dos segurados de baixa renda;

III – proteção à maternidade, especialmente à gestante;

Artigo 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

Artigo 226

§ 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Neste parágrafo a noção de família e casamento ainda está considerada a partir da relação entre pessoas de sexos diferentes, profundamente relacionada a moral vigente. O parágrafo 4º do artigo 226 reconhece adequadamente a extensão do conceito de família para outras formas de comunidade que não apenas aquelas em que estejam presentes o casal com seus filhos:

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

No entanto, conforme explica Wilson Ricardo Pirotta e Flávia Piovesan, os modelos de família citados pela Constituição devem, para atender-se aos princípios dos direitos reprodutivos, ser entendidos como rol exemplificativo e não taxativo, não excluindo outras formas de organização familiar. Um exemplo disso é a decisão do Tribunal de Justiça do RGS (AI 599075496/RS), ao determinar que um conflito entre pessoas do mesmo sexo, dissolução de união, seja julgado na vara de família, reexplicando esta relação, e indo ao encontro do proposto pelo artigo 5º da Constituição.

O parágrafo 7º positiva e eleva à categoria de norma constitucional muitos dos princípios correlacionados aos direitos reprodutivos:

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

É importante destacar que o processo de constituição dos direitos sexuais e reprodutivos no ordenamento jurídico brasileiro é resultado da mobilização dos movimentos sociais, que num primeiro momento resultaram no PAISM que inspirou diretamente o artigo 226 da Constituição, quanto a Lei Federal nº 9.263(39) de 12 de janeiro de 1996, que regula o seu x 7º do art. 226. Esta lei é de fundamental importância para o campo dos direitos sexuais e reprodutivos porque ao longo dos seus 25 artigos dimensiona e instrumentaliza a prática para efetivação desses direitos.

Sobre a autora
Samantha Buglione

assessora da Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, mestranda em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1855. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Pesquisa realizada na Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero junto ao Projeto: Novos Mecanismos de Acesso à Justiça, apoio Ford Foundation.

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