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Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça

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Agenda 01/02/2001 às 00:00

6. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos e o Poder Judiciário.

O Judiciário representa um dos três poderes da clássica divisão de Estado. A característica formal da atividade judiciária e seu poder coercitivo ampliam sua responsabilidade social, principalmente porque a produção de texto no interior do procedimento judicial confunde-se como o próprio direito, além de inspirar e legitimar práticas que se estendem a toda a sociedade. As decisões são a materialização de um processo argumentativo no qual são consideradas várias perspectivas, ocorre que estas decisões tem peso de lei para o caso específico e passa a ser condicionante das práticas sociais em geral. A peculiaridade do direito é uma certa circularidade funcional, ou tautologia, decorrente, em parte, da busca de segurança para encaminhar às soluções. Se as decisões são o resultado de um processo de argumentação, este não ocorre de forma livre. É condicionado pela estrutura lógica do funcionamento do campo do direito; e esta estrutura jurídica também é passível de moral, porém, é uma moral positivada. No entanto, há uma carência de significado deste dispositivo face o fato ao qual se relacionada. A relevância de uma decisão no judiciário é o seu duplo grau de legitimação, seja em relação ao dispositivo que irá utilizar, seja em relação a lei que cria junto ao fato em análise. O judiciário constrói, constantemente, as relações sociais. Compreendendo, segundo Débora Diniz, o papel de difusão oficial de categorias morais usadas em prol da decisão, ou seja, o suporte jurídico-moral à decisão.

Para a realização desta parte do estudo foi analisado acórdãos selecionados através dos termos de busca utilizados (ver metodologia). Foram obtidos 348 Ementas(40): 113 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; 106 do STJ; 99 do STF e 30 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

As ações do STF e STJ relacionam-se principalmente a pedido de pensão e investigação de paternidade ("época da concepção"). Sendo três decisões relacionadas a mortalidade materna decorrente de aborto, 16 decisões relacionadas a parto, prioritariamente à questões trabalhistas como direito a férias, auxílio maternidade, licença maternidade. As demais ementas dos Tribunais Superiores centram-se em questões de ordem processual ou constitucional (inquérito, cominação pena, regime inicial, prisão preventiva etc.), nas quais não há avaliação do mérito.

Sobre aborto foram encontradas 106 ementas, sete dos Tribunais de Segunda Instância: autorização aborto, dano moral por interrupção da gravidez decorrente de acidente de trânsito, malformação congênita etc.. E 65 relacionadas aos direitos da mulher, das quais a natureza da ação está vinculada a direitos contratuais, casamento e questões de ordem pública (concursos), separação de bens etc.. As decisões relacionadas a aborto, esterilização, mortalidade materna não são compreendidas como direito ou violação aos direitos da mulher, quando surgem na pesquisa estão inseridas de forma autônoma "esterilização", "aborto etc., sem vinculação à mulher, tampouco a direitos fundamentais (liberdade, igualdade, autonomia, não discriminação) ou direitos humanos, isso é relevante porque demonstra como estas questões estão pensadas e dispostas nos sistemas existentes de localização dos acórdãos.

A partir deste levantamento selecionamos as ementas que: a)eram da década de 80 e 90; b)discutiam o direito material e não formal(41) e c)tinham como objeto direto o aborto, esterilização feminina; mortalidade materna e união homossexual; obtendo-se, assim 47 Jurisprudências (5 TRF 4ª região; 37 TJRGS; 5 Tribunais Superiores), além dos acórdãos uma sentença da Justiça Federal sobre união de pessoas do mesmo sexo. Dos 47 acórdãos, 25 foram fotocopiadas para análise dos relatórios e votos, tendo com critério a maior ou menor relação com o tema proposto.

6.1. Mortalidade materna

Nas últimas décadas, especialmente a partir dos anos 50, ocorreram intensas modificações no padrão da morbi-mortalidade no Brasil. Podendo destacar o descenso dos níveis de mortalidade infantil (redução de 64%, de 1940 até a década de 90), a diminuição de quase 30% das taxas de mortalidade materna entre 1981 e 1988 e a redução da participação da mortalidade proporcional das doenças infecciosas e parasitárias que, em 1930, eram responsáveis por mais de 45% do total das mortes e, na década de 90, representavam aproximadamente 5%(42).

A mortalidade materna é um importante indicador de saúde por refletir as condições de assistência ao pré-natal, parto e puerpério, os aspectos biológicos da reprodução humana e as doenças agravadas ou provocadas pelo ciclo gravídico-puerperal. Como mortalidade materna se compreende a morte durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o seu término, independentemente da duração ou da localização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada com ou agravada pelo estado gravídico ou por medidas tomadas em relação a ela, porém não devida a causas acidentais ou incidentais(43).

As taxas de mortalidade materna, em geral, são calculadas tendo como numerador o número de mortes maternas nesse conceito e como denominador o número de crianças nascidas vivas, ou seja, o coeficiente de mortalidade materna no Brasil é o cruzamento de dados sobre os registros de mortes maternas (DataSUS) e nascidos vivos (IBGE).

A mortalidade materna está associada a diversos fatores, entre os quais se destacam: a) as taxas de fecundidade vigente, e b) o acesso e a qualidade dos serviços de controle pré-natal e parto assistido, correspondem, hoje, por cerca de 6% dos óbitos de mulheres de 10 a 49 anos no Brasil, sendo que destes 90% são evitáveis.

Ressalta-se, também, os problemas recorrentes da certificação médica desta causa específica de morte e, consequentemente, da fidedignidade das estimativas obtidas, a morte materna é a mais subinformada, quer dizer, é a morte onde se omite com maior frequencia que é decorrente de complicações na gestação, parto ou puerpério, estima-se que para cada morte declarada como materna existe uma que não foi declarada com tal(44). Desta forma, se os dados atuais indicam que no Brasil, em 1997, a taxa de mortalidade materna foi de 55,1 por 100 mil nascidos vivos, na realidade deve estar, no ano referido, muito próxima de 110 por 100 mil nascidos vivos. Este valor aproxima o Brasil dos países mais pobres da América Latina.

As quatro principais causas de morte materna no Brasil são: síndromes hipertensivas, hemorragias, complicações do aborto e as infecções puerperais, que são causas obstétricas diretas, responsáveis por 89% das mortes maternas no Brasil(45). As causas obstétricas diretas são mais evitáveis que as indiretas, pois dependem da qualidade da assistência durante o ciclo gravídico-puerperal. Estudo realizado na França mostrou que 66% dos óbitos ocorridos no período estudado eram evitáveis, sendo que 54,1% foram devidos à inadequação da assistência, 10,8% à negligência da paciente e 2,7% à má prática. Os problemas assistências ocorrem principalmente nas causas hipertensivas e nas hemorrágicas, seja pela inexperiência do médico em cuidar da doença seja pela demora em admitir a gravidade do caso(46). No Brasil, em 1995, as mortes devidas às síndromes hipertensivas apareceram em 29% das declarações de óbito; as síndromes hemorrágicas, em 17%; o aborto, em 9%; e as infecções puerperais, em 6% dos casos(47).

Dentre as causas de morte materna não se pode esquecer que, além das complicações anestésicas, as infecções e hemorragias estão relacionadas à via de parto, principalmente à cesariana. Pesquisa realizada por Tanaka e Mitsuiki, em 1999, mostrou que, para os 15 municípios estudados, a taxa de morte materna por cesariana foi 3,7 vezes maior do que no parto normal, cujos coeficientes foram de 46,20 e 12,57 por 100 mil nascido vivos.

O aborto é a terceira causa de óbito no país, o que demonstra a completa falência da assistência à população, visto a garantia constitucional do planejamento familiar. A morte de mulheres por aborto indica que as ações de planejamento familiar não estão funcionando adequadamente. Associado a isso, existe a questão da sua criminalização, que contribui como agravante do problema, em decorrência da clandestinidade e da maior vulnerabilidade das mulheres pobres.

A mortalidade materna levou o Estado a incrementar seu rol de estratégias para a redução do problema e implementação de um sistema de vigilância do óbito materno. A Portaria nº 773/94 do Ministério da Saúde, institui o Comitê Nacional de Mortalidade Materna e o óbito materno passou a ser evento de notificação compulsória face a Resolução nº 256/97 do Ministério da Saúde.

Considerando que a mortalidade materna refere-se, em sua maioria, a precariedade da assistência, é importante destacar que a relação usuário X serviço de saúde (médico/hospital), é uma relação que possuiu guarda no Código de Defesa do Consumidor - Lei 8.078/90. O Código de Defesa do Consumidor veio para proteger a vida quotidiana dos sujeitos, enquanto parte de relações de prestação de serviço, oferecendo-lhes mecanismos próprios e adequados para a sua defesa, em caso de patologia na relação de consumo, mas antes de tudo fornecer meios hábeis à prevenção da mesma(48).

Entre as ementas pesquisadas, afim de obter ações pertinentes a mortalidade materna, 63 relacionavam-se a questões contratuais (pagamento do parto, plano de saúde etc.). Em comparação com o número de mortes de mulheres as ações judiciais (impetradas pelos filhos ou maridos/companheiro) são poucas. Talvez em decorrência da não compreensão da violação à direito, de quem pleteia judicialmente a responsabilidade, civil ou penal, pela morte, ou dificuldade de acesso à justiça.

A necessidade de verificação de culpa inexiste nos casos de morte materna e as poucas ações encontradas referem-se a dano moral e material, utilizando-se principalmente do Código de Defesa do Consumidor e apenas uma de responsabilidade penal, que pressupõe a culpa e o dolo. Um exemplo desta relação, em que provar a culpa é secundário face a responsabilidade objetiva, ou seja, responsabilidade pelo resultado, é o caso Schering do Brasil, uma empresa farmacêutica que manteve no mercado pílulas anticoncpecionais inertes. A relevância deste caso é a utilização do princípio da responsabilidade objetiva para garantia reparação da violação ao direito da consumidora:

Responsabilidade civil do fabricante. Anticoncepcional inerte. Defeito do produto reconhecido. Ingestão pela autora não provada. Imposição do pagamento de despesas do parto em antecipação de tutela.

A prova inequívoca, parte o efeito de antecipação de tutela, quando se trata de relação de consumo, é de ser interpretada sem rigorismo, pois nessa matéria, mesmo em sede de cognição plena dispensa-se juízo de certeza, bastando a probabilidade extraída de provas artificiais da razão. (AI 599 172 343/RS)

A empresa Schering do Brasil Química e Farmacêutica Ltda, interpôs recurso da decisão que determinou o "pagamento das despesas necessárias a todos os procedimentos laboratoriais e hospitalares para o parto, até a alta da autora", na ação de reparação de danos decorrentes de gravidez indesejada, provocada por ingestão de medicamento inerte (Microvilar-teste). A decisão de responsabilização da empresa teve por base o artigo 12 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor):

"O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador, respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bom como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos."

Esta decisão acolhe os postulados da responsabilização objetiva, ao desconsiderar, no plano probatório, quaisquer investigações relacionadas com a conduta do fornecedor. Na linha da responsabilidade objetiva encontram-se as ações decorrentes de problemas no parto, esterilização involuntária e mortalidade materna.

Outro exemplo é a Apelação Cível nº 595060146/RS:

Responsabilidade Civil.. Morte por infecção contraída em hospital. Entidade hospitalar, pessoa jurídica. Aplicação dos preceitos contidos no código do consumidor.

É o hospital, pessoa jurídica, civilmente responsável pela reparação por danos materiais e moral sofridos por familiares de pessoa que, por infecção hospitalar contraída durante internamento, vier a morrer. Hospital que não presta apenas serviço de hotelaria, mas fornecedor do equipamento e instrumental cirúrgico, empregador do corpo de funcionários, mesmo graduados, além de credenciador do corpo médico, sendo, consequentemente, responsável por tudo o que ocorrer no período de internamento do paciente, inclusive e especialmente no campo da responsabilidade por dano que decorrer à saúde ou vida do paciente. Responsabilidade só afastada se o dano decorrer do imponderável, do fortuito ou da força maior, causas externas ou excludentes de responsabilidade. Ademais, entidade prestadora de serviços, está, o hospital, sujeito ao Código do Consumidor, inclusive no que diz com a inversão do ônus de provar e ao princípio da responsabilidade objetiva.

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A responsabilidade objetiva se difere da responsabilidade subjetiva, por não pressupor a necessidade de comprovar a culpa ou dolo, valendo-se da presunção a partir do resultado. A verificação da responsabilidade do médico não deve atrapalhar a responsabilização do hospital, sendo, em alguns casos, ambos responsáveis:

Processual Civil. Agravo de Instrumento. Ação de Indenização Ajuizada contra o Hospital de Clínicas. Denunciação da Lide. Indeferimento.

Tendo em vista que a pretensão do autor está fundamentada na responsabilidade objetiva do hospital e o direito de regresso deste é baseado na responsabilidade subjetiva de preposto seu, não se defere a denunciação da lide, que poderia ensejar a produção de provas estranhas à matéria postulada na inicial, prejudicando o andamento da lide principal.

Os votos explicam melhor o significado desta ementa:

A denunciação da lide foi indeferida com base em precedente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça segundo o qual não se defere a denunciação que implique o exame de fundamento novo, não constante da lide originária. Com a pretensão do autor está fundamentada na responsabilidade objetiva e o direito de regresso do agravante é baseado na responsabilidade subjetiva de subordinado seu, o despacho agravado deve ser mantido, sob pena de violar o objetivo precípuo do instituto que é o de assegurar a celeridade da solução da lide instaurada entre denunciante e denunciado. Acrescenta-se a isto que o autor não pode ter o andamento de sua causa prejudicado pela discussão entre o agravante e o eventual denunciado sobre a existência ou não da obrigação de regresso, muito menos quando isso pode ocasionar a necessidade de provas acerca de matéria estranha àquela postulada. Em face o exposto, nego provimento ao agravo.

A possibilidade de utilizar a via civil, com base nos Princípios do Código de Defesa do Consumidor abre uma nova perspectiva para exigir do Estado serviços condizentes com sua própria previsão: O artigo 2º da Lei 9263/96 que regulamenta o x 7º do artigo 226 da CF/88 define planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal(49). O artigo 3º afirma, ainda, ser o planejamento familiar o conjunto de ações de atenção integral à saúde e de atenção à mulher, ao homem e ao casal, obrigando as instâncias gestoras do SUS a garantir tais ações e programas de atenção integral à saúde que incluam, entre outras atividades básicas, a assistência à concepcão e contracepção, o atendimento pré-natal, a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato, o controle das doenças sexualmente transmissíveis, o controle e prevenção do câncer cérvico-uterino, do câncer de mama e do câncer de pênis.

Além da possibilidade de ação individual (de caráter reparador) face a violação, morte materna evitável, há a possibilidade de acionar o Estado enquanto responsável pela garantia do direito social à saúde (caráter preventivo), tendo como base a própria Lei de Planejamento Familiar (Lei 9263/96) e as responsabilidades, presentes nas Convenções assumidas e ratificadas internacionalmente pelo Brasil. Ademais, face o número de mortes maternas e a consciência de que 90% destas seriam evitáveis, os baixos processos reforçam a existência de uma lógica seletiva no direito, que mesmo com a existência do fato, o seu significado social não apresenta relevância ao ponto de acionar os mecanismos jurídicos formais do Estado.

6.2 Esterilização de Mulheres

A consagração no Brasil da prática da esterilização feminina como método de contracepção, proporcionando às mulheres brasileiras o controle definitivo de sua fecundidade, trouxe à tona contradições do debate sobre direitos reprodutivos num país marcado por profundas desigualdades sociais e alvo de políticas demográficas de controle populacional.

A taxa de esterilização feminina das mulheres brasileiras que possuem parceiro fixo e usam algum método contraceptivo, com idade entre 15-49 anos, passou de 26.9% em 1986 para 40.1% em 1996, aumentando 49.07%, o que situa o Brasil entre os países com uma das mais altas taxas de esterilizações femininas do mundo. Este dado também está relacionado ao abuso de partos cirúrgicos que passaram de 31.6% em 1991, para 36.4% em 1996. Cabe lembrar que 74% das esterilizações no Brasil são realizadas no momento do parto, das quais, 80% em um parto cesáreo(50). Segundo Daphne Rattner, do Instituto de Saúde da Secretaria de São Paulo, um dos fatores que possam ter contribuído com o acentuado número de partos cesáreos no Brasil, mesmo com os riscos conhecidos, é a adoção de um paradigma "medico", proveniente dos EUA, ao contrário do "social" dos países Europeus e Japão, cuja diferença básica centra-se na lógica controlista e risco zero do parto, tirando da mulher o principal gerenciamento do processo(51). Ainda nesta lógica Tânia Di Giácomo do Lago, coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, 2000, salienta o fato de que os médicos recebiam pela cesárea o equivalente ao parto, sendo aquela mais cômoda em termos de organização do serviço. Entre as medidas adotas pelo Ministério da Saúde para reverter este quadro, face os riscos de saúde à mulher e os custos do Estado, estão o aumento em 30% para os médicos que fizerem parto, a equiparação de enfermeiras obstétricas, limite de 40% de cesáreas por hospital e o prêmio Galba de Araújo que visa reconhecer o trabalho mais humanizado(52).

A vinculação entre escolaridade e esterilização ressaltam que a queda da fecundidade está associada à generalização do conhecimento e do uso de métodos contraceptivos na sociedade brasileira. Apesar dos anos mais recentes simbolizar para uma maior diversidade dos métodos contraceptivos a esterilização continua sendo o método mais freqüente(53). Por outro lado, a idade média das mulheres que se esterilizam diminuiu de 31.4 anos em 1986 para 28.9 anos em 1996, indicando aumento de precocidade na decisão de não mais procriar(54). Os argumentos a favor da esterilização baseiam-se em inúmeros fatores, entre os quais, destacam-se: 1. a falta de outras opções contraceptivas; 2. a sua eficácia contraceptiva; 3. a não verificação de efeitos imediatos sobre a saúde das mulheres e 4. a sua característica de atuar sem a necessidade de controle diário.

É inócuo desvincular a prática de esterilização das mulheres brasileiras das desigualdades sociais existentes no país. As regiões mais pobres do país, por exemplo, são as que têm as mais altas taxas de esterilização e estas aumentam conforme diminui os anos de escolarização, mostrando-nos o alcance desta prática entre as camadas mais pobres da sociedade(55). Ainda há o agravante relacionado às dificuldades que ainda enfrentam as redes públicas de saúde em oferecerem um serviço integral de anticoncepção, acabando por colocar as mulheres diante uma perigosa encruzilhada: esterilização, aborto clandestino ou gravidez não planejada(56).

A partir da lógica dos direitos reprodutivos, o debate sobre a esterilização feminina no Brasil levantou vários problemas, num primeiro momento com o caráter de denúncia contra o crescimento inexorável do fenômeno, resultado das práticas políticas controlistas de natalidade, ressaltando: a) sua aplicação como política de controle do crescimento das populações mais pobres no país e/ou da raça negra; b) sua associação com partos cesáreos; c)o desconhecimento de suas conseqüências à saúde das mulheres; d) seu caráter definitivo e o arrependimento que pode provocar; e)o distanciamento das mulheres esterilizadas do funcionamento reprodutivo de seus corpos. Isso reforçou uma redefinição das práticas do Estado, facilitando a incorporação de uma políticas mais condizente com o princípio da dignidade da pessoa humana, que ocorreu, inicialmente com o programa de assistência à saúde da mulher: PAISM.

A permanência e o aumento da esterilização na sociedade brasileira modificou o teor do debate e, nesta década, passou-se a tratar de sua regulamentação, sem enfrentar diretamente questões como problema de pobreza, da desigualdade social, discriminação, qualidade dos serviços, qualificação técnica etc..

O estatuto jurídico da esterilização nunca foi muito claro no país, discutia-se a juridicidade desta prática, sendo que parte da doutrina considerava a esterilização cirúrgica como ilícito penal, a teor do art. 129 x 2º, III do Código Penal, já que dela resulta a inutilização de função orgânica, configurando-se, portanto, lesão corporal de natureza gravíssima. Nessa linha de raciocínio, a autorização do paciente, não afastaria a ilicitude do ato. Outros doutrinadores preferiam enquadrar a esterilização voluntário no campo dos direitos privados da personalidade(57).

Em agosto de 1997, os vetos aos artigos 10, 11, 14 e 15 da Lei 9.263/96 que regulamenta o x 7º do artigo 226 da CF/88 foram afastados, retornando à lei os dispositivos referentes à esterilização cirúrgica do homem e da mulher. Atualmente, conforme o artigo 10 da lei é permitida a esterilização voluntária, desde que cumprida uma série de formalidades previstas para desencorajar a opção por tal método de controle de fecundidade, em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos. A lei proíbe, ainda, a esterilização no período do parto e aborto, e através de histerectomia (remoção do útero, em extensão variável) e ooforectomia (extirpação de ovário em extensão variável). O artigo 12 da lei proíbe a indução ou instigamento individual ou coletivo à prática da esterilização cirúrgica. O art. 13, reafirma a proibição existente na Lei 9.029/95 de exigir-se atestado de esterilização ou teste de gravidez para quaisquer fins. No capítulo II, arts. 15 a 21, a lei cuida dos crimes e penalidades para o caso de descumprimento das previsões nela contidas. Passam a ser crimes: a) a omissão por parte do médico de notificação à autoridade sanitária das esterilizações cirúrgicas que realizar, art. 16; b) induzir ou instigar dolosamente a prática de esterilização cirúrgica, art. 17; ou c) exigir atestado de esterilização para qualquer fim, art. 18. O artigo 14, parágrafo único da Lei 9263/96, apresenta os critérios para autorização das instituições interessadas em fornecer os serviços de esterilização.

Ainda, acerca da legislação, é importante destacar as iniciativas dos municípios em disponibilizarem o serviço gratuito, por exemplo a Lei 45/98 da cidade de Novo Hamburgo/RS. Porém, foi considerada inconstitucional por ter sido iniciativa da Câmara dos Vereadores e não do Executiva (incremento de gastos para o executivo: vício de origem na propositura da lei).

Conforme decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pode-se perceber que parte do Judiciário tem como pressuposto para decidir as demandas sobre esterilização a capacidade civil do demandante. A exemplo a apelação civil AC 596 210 153/ RS, cuja ação visava obter determinação judicial quanto à ligadura tubária de uma mulher interditada, a fim de evitar nova e inconveniente gravidez, com riscos à interdita e ao filho:

2. Mérito. Ação Cautelar Inominada. Esterilização de Interdita. Inexiste amparo legal, moral ou científico para a pretensão da laqueadura das trompas da interdita. Apelo desprovido, por maioria (AC 596 210 153/ RS).

O voto do desembargador explica a decisão:

As pessoas capazes fazem isso todos os dias e a negativa em relação à curatelada a diferencia por ser incapaz, em infração aos arts. 5º e 6º da Constituição Federal. Nega, também, o disposto no x 7º, art. 226 da mesma Carta, pois ali se prevê que há possibilidade de planejamento familiar.

O recurso visa obter referendo judicial para a esterilização da interdita. Não há amparo legal, moral ou sequer científico para tal pretensão. Se as condições de internamento da interdita são insatisfatórias, permitindo que ocasionais escapadas venham a ensejar o contato sexual com homens, o que poderá propiciar nova gravidez, o problema é do apelante, que deverá tomar precauções para que maior vigilância seja exercida sobre a enferma. O que não se pode é transferir para o Judiciário a responsabilidade por uma solução simplista, mas que representa uma forma fascista de resolver um problema individual. A medida judicial, se deferida, irá remeter-se à nefanta Lei racista alemã de 14 de julho de 1933, que previa a esterilização de anormais, por motivos eugênicos.

Merece destaque neste voto o afastamento do Estado da prática sexual da interdita. Porém, afirma o juiz que a curatela a diferencia por ser incapaz. O voto não permite afirmar a relação direta entre a incapacidade e a prática sexual, porém, cabe o questionamento se a postura e a base moral da decisão do judiciário seria a mesma no caso de mulher plenamente capaz? A conduta feminina sempre esteve relacionada com o universo da sua capacidade, sendo compreendida como ausente ou limitada na prática de condutas não condizentes com a lendária idéia de "mulher honesta", presente no direito brasileiro.

O voto vencido, a favor da esterilização, argumenta tendo como base os direitos sexuais da interdita:

De primeiro, gostaria de referir que não vejo na pretensão - pedido de realização de cirurgia esterilizadora de um incapaz – indevida interferência do Estado na vida das pessoas. Aliás, essa é a finalidade da estruturação social: resolver os problemas que se abatem sobre o cidadão, soluções estas que devem ser dadas pelo Poder Judiciário. De outra parte, não enxergo no pedido violação a qualquer dos direitos individuais. Fácil e cômodo é deixarnos ao curador, ou ao estabelecimento onde se encontra internada a interdita, a tarefa de impedir que mantenha contatos sexuais. Não consigo deixar de ver nessa postura um certo ranço preconceituoso de limitar o exercício da liberdade sexual, como única forma impeditiva da gravidez. Impedir a gestação de alguém que só tem a capacidade reprodutora física e não tem condições de manter um filho sob sua guarda não configura a tentativa de purificação da raça referida pelo relator.

No voto divergente há, com base na lógica dos direitos sexuais e reprodutivos, uma incoerência argumentativa. De certa forma a desembargadora defende o exercício da sexualidade da interdita, sendo este um direito e estando desvinculado da capacidade reprodutiva. De outro lado busca a gerência do Estado como forma de garantir o seu direito, firmando uma dependência direta entre sexualidade e ação estatal. Cabe ressaltar que o objeto da ação é a incapacidade da interdita, porém, apesar da discussão versar sobre o universo da capacidade da mulher, em nenhum momento é enfrentada diretamente. Os argumentos que justificam a decisão são buscados na moral e na ética e não no pressuposto para efetivação de uma esterilização: a consciência da vontade individual, eis que esta pressupõe o pleno exercício da cidadania. A preocupação centra-se na não gravidez, no controle reprodutivo de forma a não comprometer o Estado com ações vinculadoras a uma lógica nazista, ao exercício arbitrário da sexualidade. Os argumentos associados a preservação da capacidade reprodutiva compõe o cerne argumentativo que não concede a validez do ato de esterilização. Limitar a capacidade reprodutiva desta mulher, que já apresenta diminuição da sua capacidade social relacional, implicaria em limitar o seu significado na sociedade.

Com base no voto divergente o réu interpôs embargos infrigentes, por entender que este avaliou a situação fática com bom senso e realismo, eis que a interdita é pessoa manifestamente promíscua, devendo, assim, prevalecer o voto minoritário por seus próprios fundamentos.

A decisão mantém o indeferimento da esterilização, ressaltando que a excessiva preocupação com a interdita, quanto a concepção, ignora perigos como a contaminação de HIV/AIDS e outras doenças. O relator tece um panorama da situação da mulher na sociedade e a vinculação direta a sua capacidade reprodutiva como sua "razão de ser":

Mulher portadora de doença mental, que a incapacita para os atos da vida civil, sem vontade de consentir, não cabe ser esterilizada, através de uma ligadura de trompas, para que deixe de engravidar. O pedido de seu curador, se autorizada a esterilização, está a abrir um precedente perigoso e terrível. O avanço da ciência poderá mais tarde até curar a psicose de que é portadora a interdita, que se submetida a uma esterilização, perderá a possibilidade de procriar, pois não há garantia de ser reversível o ato cirúrgico. O irmão, curador da interdita, quer liberá-la para o sexo, quando outros meios existem para controlar a concepção.

(EI 597185271/RS)

Apesar de haver um estranhamento social quanto a prática da esterilização esta é amplamente utilizada no Brasil. O direito, enquanto um sistema aberto (passível de valorações), tem uma capacidade "seletiva", a partir do que compreende como "relevante". O exercício do judiciário não se reduz a prestação judicial, mas envolve toda a dinâmica das delegacias de polícia, da confecção de provas e, principalmente, da compreensão de direitos da sociedade. O que talvez explique a ausência de julgamentos tendo como objeto a esterilização de mulheres, mesmo que socialmente esta tenha ocorrido indevidamente antes de 1996 (Decreto nº 20931/31(58)), ou sem os critérios estabelecidos na Lei 9263/96.

6.3.Aborto

Quando se pensa a questão do aborto é importante ter presente duas perspectivas: a) a saúde e b) as relações de poder que envolvem o tema: pensar o aborto enquanto metáfora para as questões democráticas que envolvem as relações de poder no Brasil, principalmente no que versa sobre a sexualidade. Eis que o direito ao aborto só é conquistado a partir do reconhecimento do direito à autonomia individual, e como forma de contestação do poder do Estado em legislar sobre questões de intimidade do indivíduo. Nesse sentido nos serve como metáfora para as questões que pressupõe o alargamento das dimensões da democracia e o reconhecimento da autonomia para a real incorporação da idéia de igualdade, muitas dessas questões estão na pauta dos movimentos sociais, principalmente o movimento de mulheres. Esse "alargamento" implica num Estado cuja prática, não deve estar calcada na moral religiosa ou de categorias de poder, mas sobre os direitos humanos, já universalmente reconhecidos e, no caso dos direitos reprodutivos sobre quatro princípios éticos: integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade(59).

Leila Linhares(60) chama a atenção que o que está em pauta não é o retórico discurso de proteção à vida, mas o exercício efetivo de autonomia e cidadania. A questão "ter direito de escolha a..." engloba tanto o aborto quanto o método anticoncepcional a ser usado, que pode ser condicionado pelo modelo de assistência, pelas leis do mercado ou pela ordem religiosa, porém, sempre relacionados. Evidenciando a complexidade desta relação. Pensar aborto sem ter presente esta dinâmica é enfrentar o problema de forma parcial.

Estima-se que, em 1998, no Brasil, tenham sido realizados 728 mil abortos ano, quase 350 mil abortos a menos em comparação com o ano de 1996(61). Esta queda talvez se explique pela dissiminação do Cytotec(62) e pela utilização da pílula anticoncepcional de emergência. O que é importante perceber nestas cifras é que, segundo dados da OMS/87, 80 mil mulheres morriam por ano decorrente de aborto, número responsável por 13% das 600 mil mortes maternas da época, uma cifra que denota o peso da criminalizarão e a ineficiência dos serviços de planejamento familiar.

No direito positivo brasileiro, o aborto é tratado no Código Penal em seus artigos 124 e 128, nos quais se encontram a descrição e as penas para cada tipo. Assim, a mulher que provoca aborto em si mesma ou consente que o provoquem incorre em pena detenção de um a três anos (art. 124), que é a mesma pena cominada em caso de homicídio culposo. Provocar aborto sem consentimento da gestantes sujeita o agente a uma pena de reclusão de três a dez anos (art. 125); se há o consentimento, tal pena é reduzida para reclusão de um a quatro anos (art. 126), sendo inválido tal consentimento se a gestante é maior de 14 anos ou é alienada ou interdita.

O aborto é crime, prevista na lei penal. Porém, para saber se uma conduta é ou não criminosa, não basta verificar se ela é ou não típica, por exemplo, o homicídio é típico, porque está descrito no artigo 121 do Código Penal: matar alguém, mas se uma pessoa mata alguém em legítima defesa, não pratica nenhum crime. Isso porque segundo o Direito Penal, a legitima defesa exclui a antijuridicidade da conduta típica. Assim, para que um fato típico (que está na lei) seja considerado crime, é preciso que, contrarie o direito. A lei penal, em certas hipóteses, afirma que, embora típica, a conduta não é criminosa, ou seja, não contraria o direito, como o caso da legítima defesa. Com relação ao aborto, este é penalizado por lei, salvo em casos de estupro e para salvar a vida da mulher, compreendido com aborto legal. O aborto legal(63) está previsto pelo Código Penal em seu artigo 128, relacionando-se aos casos em que não há punição pelo aborto praticado: aborto necessário ou terapêutico (resultado de estupro). A redação do inciso I do artigo 128:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Encontra-se consonante com os artigos 23 e 24 do Código, que prevêem a exclusão de ilicitude no caso de estado de necessidade. Assim, o médico pratica abortamento como a única forma de salvar a vida da gestante, pratica uma conduta típica, mas não comete crime. O artigo atribui ao médico a decisão sobre a necessidade de fazer ou não o aborto. O aborto necessário não depende do consentimento da gestante, como também não há necessidade de autorização judicial. No caso do aborto resultante de estupro, que exige para a sua configuração típica penetração vaginal, cabe salientar que a doutrina e os tribunais têm entendido por analogia que os atos libidinosos diversos da conjunção carnal devem ser equiparados à penetração vaginal, possibilitando, assim o aborto terapêutico.

Estes dois permissivos legais foram ameaçados de extinção por uma proposta de emenda constitucional em 1995, que visava proibir a prática do aborto provocado, mas não foi aprovada..

Segundo dados do Dossiê Aborto Inseguro(64) somente 11 Hospitais Públicos, em sete cidades brasileiras, realizam o aborto nos casos previstos por lei. A maioria dos Hospitais coloca tanta exigência que inviabiliza o procedimento. Desde 1991, o aborto aparece nas estatísticas como a terceira causa da mortalidade materna no país, assim como os demais países da América Latina.

Pelo projeto de reforma do Código Penal, em trâmite junto ao Congresso Nacional, o artigo 128 teria acrescentado um terceiro inciso prevendo a exclusão de ilicitude no caso de aborto motivado por anomalia fetal grave.

Neste sentido já existem decisões nos tribunais que permitem o abortamento nos casos de inviabilidade do feto:

Direito ao Abortamento Necessário

Decididamente, não há falar em reprovabilidade nem em censurabilidade de abortamento praticado em face das condições expostas na inicial, pois é inadmissível exigir da interessada que suporte a gravidez até o seu termo, com todas as conseqüências e riscos que até mesmo uma gravidez normal acarreta, para que, depois do nascimento, ocorra inevitavelmente a ocisão fetal.

É perfeitamente admissível e juridicamente cabível o procedimento judicial para a autorização da prática do abortamento nas hipóteses de caracterização de quaisquer excludentes de antijuridicidade ou culpabilidade. (Vara do Júri e Execuções Criminais da Comarca de Campinas – Juiz José Henrique Rodrigues Torres)

A aprovação de tal dispositivo viria aperfeiçoar a legislação brasileira aplicável ao tema, apesar de não contemplar plenamente as recomendações das Conferências do Cairo e Beijing, que propugnam o tratamento do aborto como uma questão de saúde pública e não como uma questão criminal, aconselhando que os países revisem suas legislações.

O levantamento dos casos de aborto nas bases de dados, tanto no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, bem como no Tribunal de Justiça do RGS, demonstram que a totalidade dos casos julgados, catalogados como referentes a aborto, chegaram a tal instância por questões de natureza processual, ou seja, que dizem respeito às formalidades intrínsecas ao procedimento adequado para o processo da causa, não atingindo diretamente o seu mérito.

O pequeno número de acórdãos versando sobre o crime de aborto, leva a refletir sobre a existência de uma seletividade de situações pelo poder judiciário, o que denota a menor ou maior importância do crime para a sociedade. No caso do aborto, essa seletividade, frente ao rigor com que é tratado na lei, pode ser explicada a partir da teoria da "reação social"(65) que parte do entendimento de que a criminalidade não é uma qualidade intrínseca da pessoa, mas resultado de um contexto social, ou seja, os tipos penais são previamente determinados, voltados a um publico específico, o que explica a grande concentração de analfabetos, pobres e negros no sistema prisional. Desse modo, a criminalidade surge através de um processo de criminalização que se dá duplamente: no momento da "definição" legal de crime, por meio do processo legislativo; e a "seleção" do autor do ato como um criminoso, através da polícia e do Judiciário(66). Essa teoria, adotada pela criminologia contemporânea (em especial pela denominada criminologia crítica) desloca o interesse do estudo do criminoso ou do próprio ato para a sociedade e sua reação frente a conduta desviada - para isso, utiliza o sistema penal como objeto demonstrativo de tal reação, sendo este a fonte do tipo penal perseguido: procura-se indicar no interesse de quem, contra quem e de que modo é exercido o controle social.

Esta teoria serve a compreensão do papel que o aborto ocupa nas relações sociais, eis que de um lado há o rigorismo de sua proibição, o que identifica a moralidade que permeia o processo de sua positivação, o excessivo interesse de regulação e o controle social que exerce sobre a mulher, mais especificamente sobre sua prática sexual, de outro, o pequeno número de julgamentos demostram pouco interesse na punição do crime de aborto.

Nessa linha de reflexão, observa-se que a questão do aborto, para a sociedade, parece estar vinculada à problemática da moral sexual. Assim, talvez não fosse tão surpreendente o fato do aborto ser pouco punido, ainda quando resulta na morte da gestante, posto que a atitude "imoral" que a levou à gravidez indesejada e, consequentemente, ao recurso extremo do aborto, seria vista como o elemento principal que motivou sua morte. Segunda Leila Linhares:

Não há, na realidade, uma pressão social contra a prática do aborto. Para a maioria das pessoas, esse é um assunto da vida privada e muito poucas pessoas sairiam de suas casas para denunciar quem o pratica à polícia. Esses diferentes significados e comportamentos em relação ao aborto demonstram, também, que não há uma unidade no Estado em relação a assunto. O Poder Legislativo o condenou através do Código Penal, mas o Judiciário mostra-se pouco à vontade para puní-lo e o Executivo, através da polícia, ou "fecha os olhos" à existência de clínicas que o realizam ou se torna cúmplice da chamada "indústria clandestina do aborto."(67)

O aborto é o último recurso para a não efetivação de uma gravidez indesejada, recurso este que, no contexto da ilegalidade, coloca em risco a vida das mulheres. É importante pensar que a sua criminalização pode configurar discriminação contra a mulher.

6.4.União entre pessoas do mesmo sexo

O movimento da década de 60 trouxe visibilidade para as práticas homossexuais, entretanto, as pessoas que possuem uma prática sexual fora dos padrões moralmente vigentes são vítimas de grande discriminação e violência.

O processo de reconhecimento de união entre pessoas do mesmo sexo teve como facilitador decisões do Poder Judiciário(68), que, em certa medida legitimaram as reivindicações dos movimentos sociais e adotaram as recomendações internacionais, principalmente da Coferência do Cairo, 1994 e do Plano de Ação de Beijing, 1995.

No sentido de minimizar o preconceito frente a orientação sexual, destaca-se a decisão do STF, Ministro Vicente Cernicchiaro, acerca de impossibilitar de que esta cerceie a credibilidade e igualdade da pessoa:

Direito à Igualdade e Não-Discriminação em virtude de Orientação Sexual

Testemunha homossexual. A história das provas orais evidencia evolução, no sentido de superar preconceito com algumas pessoas. Durante muito tempo, recusou-se credibilidade ao escravo, estrangeiro, preso, prostituta. Projeção, sem dúvida, de distinção social. Os romanos distinguiam – patrícios e plebeus. A economia rural, entre o senhor do engenho e o cortador da cana, o proprietário da fazenda de café e quem se encarregasse da colheita.

Os direitos humanos buscam afastar distinção. O Poder Judiciário precisa ficar atento para não transformar essas distinções em coisa julgada. O requisito moderno para uma pessoa ser testemunha é não evidenciar interesse no desfecho do processo. Isenção, pois. O homossexual nesta linha, não pode receber restrições. Tem o direito-dever de ser testemunha. Assim, se concretiza o princípio da igualdade, registrado na Constituição da República e no Pacto de San José de Costa Rica (STF – Resp. nº 154.857 – 6ª T, DJU, de 26.10.98 p.169)

No sentido das relações de união estável destaca-se a Apelação Cível 598362655/RS que embasa sua decisão no artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, que versa sobre os objetivos da República Federativa do Brasil, entre eles a não discriminação:

Apelação Cível. Declaratória de Sociedade de Fato. Relação Homessexual. Competência.

Processo envolvendo matéria de direito de família, relativo a sua existência frente ao ordenamento jurídico. Competência do 4º Grupo Cível, por interpretação do inciso III, do artigo 11, da Resolução nº 01/98. Declinaram competência.

No voto a juíza afirma que:

O pedido principal vai ao encontro de um fator social evidente, que anseia por uma análise consciente e ausente de preconceitos, pois assim pede o tema, sob pena de, negando-se a discussão, fechar-se os olhos à realidade social. Realidade esta que apresenta pessoas do mesmo sexo convivendo em uma relação amorosa, impregnada nos deveres inerentes a ambos os cônjuges trazidos pelo instituto do casamento, entre eles a fidelidade recíproca, vida em comum no domicílio conjugal e mútua assistência. Não se deseja enquadrar ou intitular tais relações como uma hipótese de casamento, este acompanhado de todas as suas formalidades legais, mas, sim, e apenas isso, dar o devido reconhecimento a uma situação de fato, eis que não pode o mesmo Estado que estabelece como princípio constitucional a não discriminação, persistir na marginalização dos seus. A negação do pretenso reconhecimento fundamenta-se na alegada eleição, pela Carta Magna de ser qualquer união constituída entre heterossexuais. Contudo – salvo melhor juízo – tal norma deve ser interpretada dentro do ordenamento jurídico, e deste extrair-se a correta decisão ( inciso IV, artigo 3º da CF/88).

Outro exemplo é o decisão da Oitava Câmara Cível, de 17 de junho de 1999, que definiu a competência das Varas de Família para situações que envolvem relações de afeto homossexual.

Relações Homossexuais. Competência para julgamento de separação de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo.

Em se tratando de situação que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, à semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais.

Porém, não há passividade, no Poder Judiciário, em relação a prática sexual homossexual. Neste sentido, cita-se o acórdão proferido na 4ª Câmara Extraordinária do Tribunal de Justiça de São Paulo(69), que trata de julgamento referente a atentado violento ao pudor: a ré, mulher maior, teria constrangido, agindo por violência presumida, a menor ECMS, com idade de treze anos à época dos fatos, a praticar atos libidinosos. Tendo sido absolvida em sentença de primeiro grau, com fundamento no art. 386, III, do Código de Processo Penal, o Ministério Público recorreu, sendo negado provimento ao recurso. Do texto do acórdão destacam-se algumas passagens onde o preconceito ante a prática homossexual é flagrante.

Assim, ao referir-se ao depoimento da apelante na delegacia, diz:

A apelada, na Delegacia de Polícia, confessa ser homossexual e manter relacionamenteo amoroso com a vítima, inclusive praticando atos libidinosos.

Conforme observa Flávia Piovesan e Wilson Pirotta, o termo confessa abrange tanto os atos que poderiam caracterizar o ilícito, quanto a própria condição homossexual da inquirida. Na medida em que a confissão judicial denota a prática de ato ilícito, a orientação sexual da ré recebe um tratamento como se caracterizada uma ilicitude no âmbito penal, o que se coloca de forma claramente contrária aos direitos sexuais que lhe são garantidos não só pelos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, como pela Constituição Federal.

Mais adiante, citando trechos da peça apelatória do MP, prossegue o acordão:

Não resta dúvida tratar-se de fato grave. Neste sentido, o recurso acusatório: tamanha é a seriedade da situação que, justamente pela pouca idade da menor e sua inexperiência, poderia ter uma noção totalmente distorcida sobre a questão, de forma a propiciar que também tivesse, no futuro, o mesmo destino da apelada: a homossexualidade. Entretanto tal não aconteceu. A vítima diz ter voltado à normalidade de sua vida amorosa e sexual, tendo inclusive um namorado.

A argumentação do Ministério Público demostra-se clara quanto a sua posição frente a homossexualidade, classificando-a como algo anormal e distorcida.

Todo o sistema de proteção internacional aos direitos humanos, bem como a ordem jurídica interna atualmente vigente no Brasil, notadamente a Constituição Federal, propugnam a eliminação de todas as formas de preconceito, o que inclui os preconceitos de ordem sexual, um dos principais objetos dos direitos sexuais, sendo certo que os operadores do direito atuantes na estrutura judiciária brasileira estarão cumprindo de forma mais satisfatória suas funções ao tomar consciência de seu papel na consolidação dos direitos e garantias individuais e na eliminação de todas as formas de preconceito, como o exemplo das decisões de união estável.

Ainda tramita no Congresso Nacional o projeto de lei para União Homossexual, afim de dar segurança e reconhecimento social desta forma de relação afetiva e imputando ao estado a obrigação que lhe confere quanto aos direitos sexuais, que é não ingerência e a garantia da igualdade de tratamento.

Mais uma vez é importante ressaltar que os dispositivos que versam sobre as relações sociais, principalmente familiares, devem possuir o caráter explicativo, com interpretação calcada nos Princípios Constitucionais e não caráter taxativo, desvinculando a Justiça da realidade social e fazendo-a um instrumento de reiteração dos preconceitos.

Sobre a autora
Samantha Buglione

assessora da Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, mestranda em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1855. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Pesquisa realizada na Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero junto ao Projeto: Novos Mecanismos de Acesso à Justiça, apoio Ford Foundation.

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