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Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça

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01/02/2001 às 00:00
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Sumário: 1.Introdução; 2.Metodologia; 3.Genealogia dos Direitos Sexuais e Reprodutivos; 4.Direitos Sexuais e Reprodutivos como direitos humanos; 5. Direitos Sexuais e Reprodutivos e o Ordenamentos Jurídico brasileiros; 6.Direitos Sexuais e Reprodutivos e o Poder Judiciário, 6.1. Mortalidade Materna, 6.2.Esterilização, 6.3.Aborto, 6.4.União entre Pessoas do mesmo sexo; 7.Considerações Finais; 8.Bibliografia; 9.Anexos, 9.1. Legislação, 9.1. Jurisprudência.


1.Introdução

Desenvolver um estudo que tem como objetivo diagnosticar a prática jurídica nos casos de regulação da reprodução e sexualidade humana significa partir do pressuposto de que há uma prática para estas questões, restando, entretanto, identificá-la.

A realização de uma pesquisa, como a que aqui se propõe, conclui um período de iniciativas referentes ao tema assumidos pela THEMIS(1) junto à Fundação Ford. Mas, para além disto, responde a uma necessidade crescente de que se descortine a forma como o Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, vem tratando as questões da reprodução e da sexualidade. Isso porque as normas, tanto sociais, quanto jurídicas determinam, com maior ou menor liberdade, o exercício da sexualidade e da reprodução humana. A mudança dessas leis contribui numa alteração da "categoria de classificação"(2) do fenômeno da reprodução e sexualidade nas relações sociais, alterando a relação sujeito X estado, sujeito X indivíduo. Uma vez que incorpora novas obrigações de fazer e não fazer por parte do estado e dos sujeitos.

A pesquisa sobre direitos reprodutivos e direitos sexuais está inserida no projeto institucional da THEMIS, apoiado pela Fundação Ford, referente ao período 1997/2000. Esta pesquisa é, portanto, um sub-produto do projeto mencionado, especialmente no que refere-se ao aprofundamento da discussão sobre direitos, reprodução e sexualidade. Desde 1997, início da execução do projeto, já foram realizadas algumas atividades, como o curso de extensão Direitos Humanos, Ética e Direitos Reprodutivos, seguido de sua publicação (1998), os módulos de direitos reprodutivos nos cursos de PLPs (1997 a 1999) e a mesa redonda sobre os aspectos jurídicos destes direitos, organizada no Rio de Janeiro, em junho de 1999.

A THEMIS, sendo uma organização não governamental de promoção e defesa de direitos das mulheres, tem entre seus objetivos a ampliação do campo de conhecimentos sobre as questões de gênero, em especial, no que se refere à forma como as políticas de administração de justiça, os julgados nos tribunais, a lei e a doutrina jurídica impactam sobre a vida das mulheres. É neste sentido que a realização de uma investigação como esta reveste-se de muita importância para a THEMIS, eis que pode contribuir para a qualificação de suas atividades e para o aprofundamento dos estudos feministas sobre o tema.

Surge, desta forma a necessidade de aprofundar como o mundo do direito deve e pode instrumentalizar as ações pertinentes aos direitos sexuais e reprodutivos; seja a partir da utilização, ou não, da legislação internacional de direitos humanos, que são marcos legais; das plataformas de ação(3), que constituem-se como fonte de interpretação das normas e fatos (além de imputarem responsabilidades aos Estados membros) e, principalmente, a Constituição Brasileira de 1988.

Assim, para a realização deste trabalho buscou-se visualizar as normas pertinentes aos direitos sexuais e reprodutivos, sua dimensão no ordenamento jurídico e as decisões dos tribunais referentes ao tema (ver metodologia). O presente relatório está dividido em três partes principais. A primeira explica a metodologia utilizada. No segundo momento abordamos o processo de constituição da problemática e conceito dos direitos sexuais e reprodutivos. A terceira parte é a apresentação dos resultados: contextualização do fenômeno, legislação, jurisprudência e análise. Por fim as conclusões, bibliografia utilizada e anexos.


2.Metodologia

Para identificar a forma como as questões da reprodução e sexualidade estão sendo contempladas na legislação nacional e vêm sendo tratadas pelos tribunais brasileiros o trabalho foi desenvolvido em três etapas: a primeira foi a análise de doutrina e legislação constitucional e infraconstitucional; a segunda foi a análise de jurisprudência selecionada junto aos repositórios de jurisprudência oficialmente reconhecidos, publicados no período posterior ao advento da Constituição Federal de 1988 até final da década de 90; e a terceira foi a realização do relatório.

Como fonte para obtenção das decisões utilizou-se o sistema de informática dos Tribunais, banco de dados sobre jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal acessíveis pela Internet, sistemas operacionais do Ministério Público, Tribunal de Justiça e Revista do Tribunal de Justiça do RGS. Atualmente, na internet(4), há a possibilidade de acionar diretamente os sites do STF e STJ, nos quais é possível ter acesso à decisões, doutrinas, súmulas, corpo de ministros etc. Os Tribunais de Justiça, Ministério Público e Procuradoria, em regra, possuem sistemas próprios de organização de dados.

Apesar de existirem publicações especializadas em jurisprudência, tais publicações referem-se apenas às decisões proferidas pelos tribunais, deixando de lado todos os julgados em primeira instância. Além disso, nem todos os acórdãos(5) são publicados, eis que passam por uma seleção; esta é feita, em geral, pelos próprios juizes relatores, que entendem que o conteúdo do acórdão possui relevância merecedora de divulgação. Face este procedimento não há como afirmar que os acórdãos refletem com exatidão a quantidade de julgados e o pensamento do Poder Judiciário. Porém, destaca-se que os julgados publicados são utilizados como referência para futuras decisões e refletem, ainda, a menor ou maior importância atribuída aos problemas ligados aos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito do Poder Judiciário. Com a Internet o acesso aos acórdão foi facilitado, face o maior número de publicações.

Dentre os vários temas que envolvem o universo dos direitos sexuais e reprodutivos, quatro pontos merecem análise nesta investigação, pelo impacto que vêm causando na vida das mulheres e homens brasileiros: aborto, esterilização de mulheres; morte materna e união entre pessoas do mesmo sexo. Acrescenta-se, ainda, que a abrangência do tema dos direitos sexuais e reprodutivos, dificulta a pesquisa em decorrência da forma de classificação utilizada pelo índice dos bancos de jurisprudência e das ferramentas dos sites na Internet, por isso, para realizar o estudo elegemos termos básicos que viabilizariam o acesso aos acórdãos.

Termos utilizados:

1.Aborto;

2.Esterilização,

3.Morte Materna;

4.Mortalidade Materna;

5.Planejamento Familiar;

6.Contracepção;

7.Erro Médico;

8.Curetagem;

9.Concepção;

10.Contracepção;

11.Erro Médico;

12.Responsabilidade Civil do Médico;

13.Mutilação;

14.Reprodução;

15.Direitos Reprodutivos;

16.Direitos Sexuais;

17.Direitos da Mulher;

18.Controle de natalidade;

19.Saúde Materna;

20.Ligadura tubária;

21.Vasectomia;

22.Parto;

23.Cesárea;

24.Métodos Contraceptivos;

25.Pílula Anticoncepcional;

26.Dispositivo Intra-Uterino;

27.Diafragma;

28.Uniões Homossexuais;

29.Homossexualismo;

30.Barriga de Aluguel;

31.Fertilização in vitro;

32.Bebê de proveta;

33.Planejamento Familiar

Desta primeira parte da pesquisa foram obtidos 348 Ementas(6): 113 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; 106 do STJ; 99 do STF e 30 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

A partir deste levantamento selecionamos as ementas que:

a) eram da década do final da década de 80 (após promulgação da nova Constituição Federal) e 90;

b) discutiam o direito material e não formal(7); e

c) tinham como objeto direto o aborto, esterilização feminina; mortalidade materna e união homossexual.

Obtendo-se, assim, 47 jurisprudências (5 TRF 4ª região; 37 TJRGS; 5 Tribunais Superiores), além dos acórdãos uma sentença da Justiça Federal sobre união de pessoas do mesmo sexo. Dos 47 acórdãos, 15 foram fotocopiadas para análise dos relatórios e votos, tendo com critério o objeto da discussão, ou seja, que a decisão enfrentasse o significado dos temas propostos neste estudo e não questões transversais.

Para a análise das ementas e acórdãos, utilizamos os conceitosde Sonia Correa e Rosalind Pechastky (8) quando afirmam que as bases para os direitos sexuais e reprodutivos consistem de quatro princípios éticos: integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade. Apesar de existirem uma diversidade de conceitos e fundamentos, a escolha pelos conceitos de integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade, ocorre por serem, num estudo introdutório, de fácil circulação entre os aportes do direito brasileiro, por estarem presentes, principalmente na Constituição Federal de 1988.


3. Genealogia dos Direitos Sexuais e Reprodutivos

A noção dos direitos sexuais e direitos reprodutivos têm uma história vinculada aos movimentos sociais, principalmente ao movimento de mulheres e movimento homossexual. Inicialmente como uma articulação crítica às políticas controlistas e ao gerenciamento da sexualidade.

A construção da cidadania das mulheres data do final do século XVIII, na Revolução Francesa, quando do processo de reivindicações das necessidades começa-se a perceber os lugares de desigualdade, suas ocupações e conseqüências (pelos atores sociais: homens, mulheres, nobres, plebeus etc.). A princípio as mulheres buscavam participação igualitária na sociedade, tendo como marco referencial os homens, ou seja, reivindicavam o direito de votar e de se educarem. Assim, passou-se a construir uma crítica à desigualdade. Porém, para a efetiva constituição da cidadania era preciso o reconhecimento do sujeito como tal, não bastava buscar o espaço da cidadania centrada ou explicada por duas referências definidas: voto/educação, como as demandas iniciais da Revolução Francesa, era necessário abordar as idéias e saberes justificantes e legitimadores das desigualdades, o que começou a ter força com o movimento de mulheres nos séculos XIX e XX, principalmente na década de 70.

O movimento feminista representou o rompimento do processo social de construção da opressão do feminino(9). As idéias marxistas foram determinantes para a percepção das formas de dominação entre os indivíduos. Anteriormente, as idéias liberais, que contribuíram com o processo de constituição dos direitos civis e políticos, centravam a dominação em relações de poder basicamente vinculadas as relações entre Estado/Igreja e pessoas. Tanto, que neste primeiro momento, foi necessário construir a própria idéia de indivíduo, de pessoa sujeita de direito. Porém, tanto as idéias liberais, quanto marxistas, abarcavam instâncias parciais das relações de poder. O movimento de mulheres destaca que além da opressão apresentada, principalmente pelo marxismo, era necessário visualizar outras formas de dominação e opressão, que iam além das relações de classe e produção. As estruturas de poder se constituem de forma mais complexa, através de um conjunto de elementos, que podem ser morais, jurídicos etc., criadores e legitimadores de relações de dominação.

O tema populacional sempre foi vinculado às questões do Estado, da ordem pública, e muitas políticas foram estruturadas envolvendo a capacidade reprodutiva da mulher, por exemplo as leis de liberação do aborto, editadas na Rússia, logo após a revolução bolchevique. Anos depois, os dirigentes soviéticos mudaram estas leis, e desenvolveram campanhas de elogio à maternidade, para aumentar o número de nascimentos. Hitler, durante a II Guerra Mundial, também estabeleceu esta política de elogio à maternidade, inclusive premiando mulheres que tivessem mais filhos(10). Explicita ou implicitamente os países e as agências internacionais vão adotando medidas que causam impacto demográficos pautados pela pergunta: podem as populações crescer e/ou diminuir sem limites postos pelo Estado? Quem define: o indivíduo, a família ou a sociedade?

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No Brasil, embora difuso, o discurso do planejamento familiar já se expressava nos primórdios do Brasil colonial, perpassando do Império ao início da República. No período colonial, a Igreja Católica foi a instituição que sustentou, quase que exclusivamente o ideário social que se pretendia: o aperfeiçoamento e a melhora da raça brasileira, através da construção de uma sociedade portuguesa cristã. O sucesso deste projeto envolveu estratégias no plano do discurso cotidiano normativo como jurídico estatal. Desta forma a Igreja promoveu a mentalidade andocêntrica de subordinação, obediência e servidão da mulher em relação ao homem, incluindo a procriação de tantos filhos quanto "Deus" e a "natureza" determinarem(11). Esta situação esteve presente do Brasil colônia ao início da República. Na década de 30, com o desenvolvimento pós-guerra e, por parte do governo de Getúlio Vargas uma tendência pró-natalista. Enquanto que no cenário internacional são retomadas as teses do Reverendo Thomas Robert Malthus (1766-1834), que alertava sobre os perigos da superpopulação em decorrência do não correspondente crescimento da produção de alimentos. A pobreza, assim, começa a ser associada ao número de pessoas e não as práticas políticas de concentração e estratificação da miséria, e, por conseqüência, de culpabilização individual (liberalismo), que recaía prioritariamente sobre as mulheres que possuíam a capacidade reprodutiva. A lógica malthusiana é tomada como referência para a discussão do planejamento familiar; devendo, assim, ser gerenciado pelo Estado. Em 1952 Margaret Sanger criou, com sede em Londres, o International Planned Parenthood Federation (IPPF) que contava com apoio financeiro de diversas instituições interessadas no controle demográfico, principalmente dos países pobres e, portanto, restringindo à liberdade reprodutiva da mulher ou dos casais. Nos anos 60 o IPPF financiou entidades e outras instituições no Brasil para realizarem controle de natalidade. Essas políticas de controle de natalidade provoca(ra)m impactos indiscutíveis na estrutura e organização da família, no perfil populacional da sociedade brasileira e na saúde das mulheres.

Na década de 70 a campanha do movimento feminista americano Nosso corpo nos pertence simboliza uma nova compreensão das práticas sociais. Primeiro há o surgimento do valor autonomia expresso no campo da sexualidade e reprodução, significa a incompatibilidade entre a regulação estatal sobre o corpo das mulheres e o efetivo exercício da cidadania. A afirmação "nosso corpo nos pertence" demonstra uma transcendência da questão material do corpo, começa-se a visualizar as estruturas de opressão e exclusão social existente na sociedade. O principal efeito desta idéia é a ruptura de padrões sociais e a construção de novos modelos de pensamento(12).

O regime militar brasileiro, da década de 70, instigava o discurso de que a segurança nacional estaria ameaçada pelo grande contingente de pobres e numerosas famílias, reforçando pelas idéias eugênias sobre a condição de sub-raça brasileira.

A participação das mulheres na luta contra a ditadura dava-se igualmente na busca dos direitos civis e políticos, porém, alguns grupos de mulheres, dentro da lógica de expansão desses direitos, foram, paralelamente as lutas anti-ditadura, inserindo a discussão da sexualidade e reprodução, ou seja, o direito de ter ou não ter filhos e a relação com os serviços de saúde. Essas reivindicações faziam com que as mulheres brasileiras, a partir dos anos 60, processassem uma ruptura com o clássico e exclusivo "papel social" que lhes era atribuído, contribuindo para uma redefinição das relações sociais como um todo.

Em meados dos anos 80, depois do Congresso Internacional de Saúde e Direitos Reprodutivos, ocorrido em Amsterdã, no ano de 1984, houve significativa expansão deste tema junto às práticas dos movimento sociais. A pauta de então privilegiava denúncias às políticas demográficas em curso nos países do sul, ao mesmo tempo que assinalava questões emergentes, tais quais o incremento das técnicas conceptivas nos países do norte. Essa conjuntura permitiu o surgimento de um novo discurso, baseado nos princípios do direito à saúde e na autonomia das mulheres e dos casais na definição do tamanho de sua prole, esta nova perspectiva teve como respaldo o processo avançado da reforma sanitária brasileira, que definiu a saúde como direito do cidadão e o dever do Estado em provê-la, culminando com o surgimento, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM).

A década de 80 destaca-se, ainda, pela luta democrática pelas eleições diretas presidenciais e as eleições dos governos estaduais. O governo democrático de São Paulo, através do governador Franco Montouro, cria o primeiro Conselho da Condição Feminina que tem como uma das pautas a discussão sobre o planejamento familiar. Neste momento temos em paralelo as políticas de controle de natalidade (BEMFAM, CPAIMC, IPPF etc.) e o incentivo à natalidade como forma de garantir soberania estatal, os partidos de esquerda e os movimentos de mulheres apontando críticas às políticas controlistas com a inserção da idéia de planejamento e de associação à saúde(13). A substituição dos termos "controle" por "planejamento" implica numa nova percepção da reprodução e sexualidade como questões desvinculadas da biologia, pois insere a idéia de autonomia, o "natural", o "biológico", não são mais os justificadores das políticas, bem como do direito, mas sim o indivíduo enquanto integrante de uma sociedade moral. Além disso, a forma como a sociedade lida com a fecundidade, é um sintoma de uma nova organização familiar, como também da idéia de família, e da comunidade em geral.

Entre 1983 e 1984 surge junto ao governo federal o PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher fruto da articulação e organização do movimento de mulheres frente a forma como se dava a assistência à saúde da mulher: uma política que reiterava uma pré-disposição da mulher à reprodução alienando outras questões de sua saúde. A percepção de integralidade nada mais é do que o resultado de que a reprodução não é uma dádiva ou um dom natural, mas parte do exercício da cidadania. Há uma inversão da relação reprodutiva, esta deixa de ser o principal adjetivo da mulher para ser parte da sua humanidade. A reprodução começa a ser percebida como algo de foro individual, devendo habitar no universo dos direitos civis. Além disso esta linguagem representa um rompimento nas relações entre o Estado "controlista" de natalidade para o de "planejamento", o que implica numa ação substancialmente provedora de informações e acesso, ou seja, incrementando o princípio da cidadania que só se viabiliza através da autonomia. O direito de decisão não era possível sem o oferecimento, pelo Estado, de condições de escolha, eis a vinculação com os direitos sociais.

O PAISM é o embrião da linguagem que foi posteriormente legitimada pela Constituição Federal de 1988 e pela Convenção do Cairo em 1994. O destaque à Conferência do Cairo é porque ali se constrói a linguagem dos direitos sexuais e reprodutivos, rompendo, assim, a linguagem das políticas demográficas.

No Cairo emerge o conceito de cidadão como sujeito de direitos e deveres, sem condicionamentos religiosos, com a ampliação dos sujeitos de direito incluídos nas relações da vida reprodutiva e sexual: os adolescentes, as mulheres solteiras, os homens e as pessoas da 3ª idade, há uma ampliação da própria idéia de humanidade – pauta das discussões.

É importante destacar que tanto a Constituição Federal de 1988, no que se refere a planejamento familiar, quanto o Cairo e Beijing, refletem a mobilização e as demandas dos movimentos de mulheres, gerando conseqüências concretas principalmente no perfil dos serviços oferecidos ou gerenciados pelo Estado. Pelo fato das conquistas, em termos de constituição de direito, serem resultado das demandas do movimento de mulheres é importante destacar que muitas vezes, não era incluído o masculino como ator determinante do processo de reprodução e paternidade. Que, de certa forma, poderia ter como conseqüência uma imagem social de homem ausente, irresponsável e pouco colaborar. Podendo contribuir para a cristalização dos papéis sociais, dificultando a compreensão de gênero e a redefinição das relações de poder.

Outro fator determinante para a redefinição das relações sociais é a sexualidade. A sexualidade teve seu início de desmistificação no século XX quando Freud escreveu três ensaios sobre a sexualidade infantil, quebrando a hegemonia do pensamento da idade média que tratava a sexualidade apenas na perspectiva moral e religiosa, tornando-a objeto de produção científica(14). Depois, com Foucault, com a relação entre corpo e poder. Há uma desnaturalização da sexualidade, passando a ser compreendida como dimensão cultural da vida dos sujeitos(15).

Nos anos 80 e 90, houve um significativo crescimento da pesquisa e reflexão sobre a sexualidade e a experiência sexual. As razões deste crescimento são complexas, estando, sem dúvida, associadas ao conjunto de mudanças que vêm ocorrendo nas relações sociais, principalmente através dos vários movimentos sociais que se desenvolveram ao longo da década de 60(16). A década de 60 destaca-se pela publicização das condutas e de cultura gay e lésbica, pela perda do valor da virgindade e liberação dos costumes no corpo feminino.

Outro fator que influenciou o aumento da pesquisa e reflexão sobre sexualidade foi o crescente interesse internacional em torno de temas como população, saúde reprodutiva de mulheres e homens. A conquista pelo gerenciamento da reprodução (pílula anticoncepcional) contribuiu diretamente para separar a relação sexual da reprodução, alterando significativamente, ou refletindo significativamente, nas relações sociais. Outro destaque é a pandemia do HIV/AIDS que interagiu, em grande parte, com a construção de agendas em torno dos interesses feministas, gays e lésbicos(17). Estes movimentos indicam uma mudança nas práticas sexuais e a sua desvinculação da identidade sexual, seguindo a lógica das categorizações sociais e pensando a sexualidade por uma perspectiva de construção social: daí o direito à livre orientação sexual.

A mudança das condições de vida da população(18) contribui para a transformação dos significados atribuídos à concepção e contracepção. Isso ressalta que as práticas reprodutivas, assim como a sexualidade, além de serem episódios biológicos, estão condicionadas por determinantes sócio-culturais, além de remeterem constantemente ao campo da ética.

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Sobre a autora
Samantha Buglione

assessora da Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, mestranda em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1855. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Pesquisa realizada na Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero junto ao Projeto: Novos Mecanismos de Acesso à Justiça, apoio Ford Foundation.

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