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Direito Penal do risco e conceito material de crime

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Agenda 24/02/2011 às 15:39

4. Apontamentos inconclusivos: a conciliação entre a razão pragmática e a Wertrationalität.

4.1. Buscando clarificar e tomar partido em tudo o que ficou considerado, temos para nós que a solução não está, com Jakobs ou Stratenwerth, no abandono da noção de bem jurídico enquanto conteúdo material (e limite) ao jus piniendi. Cremos, ainda mais, que uma tal postura merece muitas das críticas formuladas pela Escola de Frankfurt. Com efeito, é acertado pensar, com estes últimos, que uma excessiva funcionalização do sistema jurídico-penal com vistas a combater eficazmente os novos riscos da sociedade moderna implicaria em um desencontro pernicioso com os postulados fundamentais de uma política criminal que se queira no compasso dos valores do Estado de Direito. Desencontro, em primeiro lugar, com a indispensável restrição da intervenção penal a determinados "bens ou valores que, em determinada comunidade e em um também determinado momento histórico, constituem o mínimo ético que não pode ser, nem mais, nem menos, do que o núcleo duro dos valores que a comunidade assume como seus e cuja proteção permite que ela e todos os seus membros, de forma individual, encontrem pleno desenvolvimento em paz e tensão de equilíbrio instável" [51]. Em segundo lugar, desencontro com a idéia –também ela irrenunciável – de que essa mesma tutela só é legítima quando impossível de se efetuar por meios menos atentatórios à liberdade humana. Nessa linha, pensamos convictamente que um abandono ou alargamento do "objeto" em razão do qual o direito penal tem definidos os seus limites implica, por decorrência lógica, num abandono ou alargamento da sua função. Em termos mais impressivos: a recusa à limitação material do âmbito do penalmente legítimo significaria, assim, a recusa à limitação de sua função e a conseqüente abertura a considerações meramente funcionais e de estratégia política [52].

Coisa diversa é acreditar que, para que o bem jurídico esteja em compasso com sua função de critério legitimador e crítico da intervenção penal, seja indispensável manter-se fiel ao seu caráter antropocêntrico extremado. Diferentemente – e tomando por base os pilares de sustentação da noção de Estado social de Direito –, não se vê razão alguma naqueles contestam a existência de bens sociais e coletivos e, enquanto tais, dignos de punição. E isso, segundo cremos, não contradiz a afirmação de um direito penal em que a pessoa humana seja o cerne das preocupações. A consagração de verdadeiros bens jurídicos coletivos, supra-individuais, não interfere em nada naquela tese, que arranca da idéia da descriminalização, segundo a qual o direito penal só pode intervir com legitimidade para a salvaguarda das condições essenciais ao livre desenvolvimento da pessoa humana. Pelo contrário, quando se foge daquela concepção extremamente antropocêntrica, dando particular importância à "noção de bem jurídico como entidade sócio-jurídica eminentemente histórica e mutável" [53], nada se opõe a uma construção dualista do conceito que continue em compasso com a função político-criminal que lhe subjaz. Daí que essa posição se mostra perfeitamente coesa com as finalidades prosseguidas pelo Estado contemporâneo: garantir a cada pessoa singular as condições indispensáveis para conduzir sua vida com liberdade e responsabilidade, sem olvidar que o indivíduo de que se fala não se considera apenas como um ser isolado, mas que se desenvolve e frutifica no seio de uma comunidade [54].

Por outro lado, é também nossa convicção que a elevação de determinados bens ou valores sociais à categoria de autônomos bens jurídicos não é (não deve ser!) produto de uma razão meramente pragmática e indiferente à Wertrationalitat [55]. Como já tivemos ocasião de demonstrar, da contraposição entrea Wertrationalitat e aZweckrationalitat deve necessariamente resultar um programa político-criminal que - dando a devida importância à tese de que "um moderno sistema jurídico-penal deve estar estruturado teleologicamente, ou seja, construído atendendo a finalidades valorativas" [56] - não se descortine como um puro "consequencialismo" [57]. Devendo o pensamento teleológico participar das considerações político-criminais a dar sentido e conteúdo ao sistema dogmático e às categorias que o integram, isso não inviabiliza a incidência de limites a um tal pensamento. Desse modo, adotamos uma racionalidade que não persegue somente fins instrumentais de controle, mas também e precipuamente a realização de valores [58].

Todavia, a esses valores que servem de limite ao modelo teleológico podemos nos aproximar de várias formas que, por sua vez, hão de influenciar de maneira decisiva o telos do sistema e, no ponto que aqui mais interessa, a compreensão da categoria dos bens jurídicos. Se a eles nos aproximamos de uma perspectiva assente no "pensamento europeu dos princípios tradicionais" [59] - que se concretiza como afirmação do pensamento jurídico-penal desenvolvido a partir do Iluminismo e sobre a afirmação da idéia de contrato social – estaríamos diante de uma postura próxima àquela da chamada Escola de Frankfurt e que se pode resumir numa concepção minimalista que busca resolver o conflito entre "principialismo" e "consequencialismo" conferindo, num certo sentido, primazia ao primeiro e restringindo a legislação penal a um "direito penal básico" vocacionado de forma prioritária à proteção do indivíduo [60]. Se, opostamente, partimos de uma perspectiva funcionalista extremada, os valores só serão acolhidos quando parte menor de uma lógica de auto-conservação do sistema social, de forma que terão o conteúdo delimitado e aceite em função dessa mesma lógica. Conforme esse entendimento, na síntese de Jakobs, "a pena não repara bens, mas confirma a identidade normativa da sociedade. Por isso, o direito penal não pode reagir frente a um fato enquanto lesão de um bem jurídico, mas somente frente a um fato enquanto transgressão à norma" [61]. Daí não se poder dizer que essa última compreensão, ao advogar uma funcionalização dos valores, consiga abandonar o consequencialismo; "pois a Wertrationalitat aparece como função da Zweckrationalitat consistente na manutenção do sistema social de que se trate" [62]. Além do mais, importa lembrar que é exatamente dessa idéia, tão forte em autores como Jakobs – assente numa política-criminal contraposta ao indivíduo e tendente à sua instrumentalização e subjetivação em função do sistema social -, que derivam muitas das críticas dirigidas ao funcionalismo radical. Críticas que, partidas tanto da perspectiva da criminologia crítica [63] ou das teses de Frankfurt, como daqueles defensores de um funcionalismo moderado [64], têm alertado para o perigo que implica, v. g., o abandono do conceito de bem jurídico como conteúdo material a conferir legitimidade à intervenção penal e sua substituição pela "vigência das normas".

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O que defendemos como postura metodológica correta não estaria, pois, em sintonia com um funcionalismo levado às últimas conseqüências, e, nessa medida, concordamos com Frankfurt. Do mesmo modo, não vemos razão para, baseados no louvável empenho de defender os princípios limitadores da pena próprios do Estado de Direito, não dotar de dignidade penal determinados interesses de feição coletiva. Tudo a permitir concluir, na esteira de Schünemann, que "o individualismo de Frankfurt está fadadoa exprimir em demasia um único princípio, convertendo-o assim, em vez de em um elemento positivo, em um obstáculo; o normativismo de Jakobs, por sua parte, necessariamente conduz a uma capitulação incondicional ante a prática política imperante em cada momento na atividade do legislador ou na jurisprudência" [65]. Assim - e deixando de lado a discussão sobre se tais limites são oriundos do próprio "pensamento europeu dos princípios tradicionais" ou se, inversamente, consistem em limites ontológicos e exteriores ao método teleológico em causa -, partimos nós da eleição de um programa político-criminal em que os "contrapontos valorativos" não se concebem de forma exclusivamente funcional, mas que também, e em sentido oposto, não podem reconduzir-se ao monismo individualista de Frankfurt. De forma que o modelo por nós propugnado não pode ser taxado nem de normativista (ou funcionalista extremado), nem de minimalista.

O certo é que, em termos assumidamente simples, a conciliação entre uma racionalidade funcional e uma outra axiológica faz-se indispensável, quanto a nós, em homenagem à própria concepção de Estado de Direito (social e democrático). Em respeito aos valores e ao étimo jurídico-político que se cristalizam na concepção de Estado, não pode o sistema jurídico-penal, em nome da luta desmesurada contra o crime (e o criminoso), passar por cima de valores irrenunciáveis como a liberdade e dignidade da pessoa humana. Sendo assim, a eleição e concreção de bens jurídicos supra-individuais deve fazer-se não só por conta de considerações pragmáticas fundamentadas na eficácia para a prevenção do crime [66], devendo antes estar atenta aos valores limitadores da punição próprios do Estado de Direito. Parece ser convergente o pensamento de Figueiredo Dias ao asseverar que "na sua refração jurídico-constitucional o direito penal administrativo corporiza – como positivação jurídica da política social do Estado -, não uma racionalidade meramente pragmática, finalista e indiferente a valores, mas uma ordenação com relevância axiológica direta. Também no direito penal administrativo, pois, como no de justiça, se trata do livre desenvolvimento da personalidade do homem e, assim, de autênticos bens jurídicos. Só que, no âmbito do direito penal administrativo, a atuação da personalidade do homem apenas é possível como fenômeno social, em comunidade e em dependência recíproca dela" [67].

Uma maneira de compreender os bens dignos de punição penal tributária das idéias antropocêntricas de Frankfurt peca, segundo entendemos, por propugnar uma política criminal restritiva e garantista, mas inadequada às transformações por que passa o mundo moderno e que têm por conseqüência, no que aqui nos interessa, a aparição de novas formas criminalidade. Noutros termos, falha a concepção pessoal de bem jurídico porque "não tem em conta as dimensões das distintas potencialidades de lesão de uma determinada sociedade em função de seu estágio de desenvolvimento tecnológico" [68].

E, contudo, não se deve pensar que aceitar a legitimidade da tutela penal direta desses interesses queira significar um abandono do paradigma "moralizante" que percorre a doutrina jurídico penal desde o Iluminismo: a idéia de contrato social, como princípio de restrição, não impõe, de nenhuma forma, a sujeição da proteção penal ao indivíduo considerado de forma singular [69]. É, portanto, absolutamente coerente com o paradigma penal que nos acompanha – que, como é sabido, deita raízes no pensamento filosófico moderno surgido a partir do século XVII e o ideário liberal clássico do século XVIII e que tem por um de seus mais impressivos valores o antropocentrismo e a conseqüente defesa do indivíduo em face ao rigor punitivo do Estado - a salvaguarda pelo direito penal de novos interesses da coletividade. A essa constatação se chega – digamo-lo mais uma vez – quando se tem por notório que, de par com a esfera eminentemente pessoal do agir humano, existe uma outra, em sintonia com o mesmo "axioma onto-ontropológico" em que se funda o direito penal moderno, que releva da dimensão coletiva do homem como ser-com e ser-para os outros [70]. Aqui também, como no direito penal "clássico", estamos diante de bens que existem em função do Homem e como condição para a sua existência livre e responsável. O mesmo é dizer que, também quanto aos bens jurídicos supra-pessoais, a pessoa humana é o referente axiológico que permite uma limitação da intervenção punitiva, só que agora considerada como pessoa inserta e dependente da comunidade. Portanto, não é necessária, neste último caso, uma afetação direta do indivíduo, podendo a mesma ser indireta [71].

4.2. Questão distinta é a de saber qual é o ponto ótimo dessa afetação indireta. Já que, aqui, "surge o problema de onde fixar o limite: em que ponto da repercussão indireta sobre o indivíduo cabe entender que não se dão as condições para a proteção penal; pois, evidentemente, o termo ‘indireto’ é suficientemente ambíguo para que dificilmente se possa obter uma conclusão a partir unicamente do mesmo" [72]. De fato, podemos subscrever a tese daqueles que só aceitam a validade e força legitimadora dos bens coletivos quando dotados de um "referente pessoal", ou seja, quando a "moralidade da intervenção penal" esteja condicionada à existência de uma "dimensão pessoal", mesmo que esta seja "alargada a uma concepção intersubjetiva e ‘comunizada’ dos interesses a tutelar, expressão de um comunicativo ser-com-os-outros que é característica do nosso mundo da vida (concepção pessoal-dualista de bem jurídico)" [73]. Rumo diverso seria o tomado se atendêssemos aos que defendem uma absoluta autonomização dos interesses em questão. Assim a concepção dualista (em sentido estrito) do bem jurídico, segundo a qual os bens jurídicos supra-individuais, para além de autônomos, independem de qualquer referência aos interesses do indivíduo para a sua consagração legislativa como objetos de tutela [74].

Uma tomada de partido num destes sentidos em relação à tutela jurídico-penal do meio ambiente - enquanto bem jurídico-penal supra-individual e autonomamente protegido - significará a defesa, no primeiro caso, de uma concepção antropocêntrica dependente, em que seria indispensável, no momento de aplicar o tipo, a comprovação de uma afetação, por mínima que seja, de interesses do indivíduo; no segundo, de uma perspectiva antropocêntrica independente(ou ecocêntrica moderada) [75], em que, mesmo estando o bem jurídico concebido como condição indispensável à existência humana e à satisfação de interesses pessoais, seria essa referência à pessoa uma mera ratio legis não sujeita a comprovação no caso concreto [76].

Note-se, chegados a esse ponto, que a questão não fica ainda resolvida somente com a acolhida, por princípio, dos bens jurídicos coletivos ou supra-individuais. Ainda mais quando se tem presente que os novos interesses de que vimos falando, por apresentarem uma natureza distinta da dos clássicos bens individuais, são dificilmente delimitáveis de forma a servir de critério à construção e aplicação dos tipos penais. Por conseqüência, resulta problemática não só a tarefa de concepção e concreção desses bens como a sua compatibilidade com os princípios de garantia, mormente com o princípio da proteção subsidiária de bens jurídico-penais.

O propósito de delimitação do bem jurídico protegido pelo direito penal ambiental, nos contornos de uma conceituação antropocêntrica moderada, tal como a por nós defendida [77], foge do objeto preciso do presente estudo. Fica, contudo, manifesta a advertência: em relação ao meio ambiente, como também a outros objetos de tutela do direito penal secundário, a intervenção penal deve ser coerente com o bem jurídico protegido. Daí que, segundo este modo de vez as coisas, deve haver um profundo labor de concreção do objeto de tutela para que este cumpra com sua missão de padrão crítico e legitimador da intervenção penal. O mesmo é dizer que a definição do bem jurídico protegido serve, quando minimamente precisa, de duas formas, ambas de inegável relevo político-criminal e dogmático: (a) de lege lata, a noção do valor protegido opera como parâmetro ao juízo de imputação de uma conduta concreta à descrição abstrata contida no tipo; (b) de lege ferenda, como é sabido, o bem jurídico é o limite que deve o legislador obedecer para a legítima tipificação de crimes vocacionados para uma proteção penal apegada a padrões restritivos. Noutros termos, o conceito de "meio ambiente" é um dos grandes suportes aos mandamentos de descriminalização porque, sendo certo o valor que legitima a intervenção punitiva do Estado, todos aqueles tipos legais de crime não construídos para a tutela deste mesmo valor – o "meio ambiente" – devem ser descriminalizados. Nesta linha, surge o bem jurídico também como grande referencial para as técnicas de redação típica. Assim, sendo certo o valor que se tem como meta proteger, mais fácil será o labor de descrição da conduta típica: só serão criados tipos legais cujo preenchimento de fato importe numa ofensa ou perigo de ofensa ao bem jurídico que confere legitimidade ao tipo, afastando-se, assim, o recurso indiscriminado a ilícitos de "mera desobediência" e de perigo abstrato (na forma de perigo presumido) [78].

Sobre o autor
Guilherme Gouvêa de Figueiredo

Mestre em Ciências Penais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa. Direito Penal do risco e conceito material de crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2794, 24 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18566. Acesso em: 23 dez. 2024.

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