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Direito Penal do risco e conceito material de crime

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Resumo: O presente artigo visa a tratar de um fenômeno comum nos dias atuais: o chamamento do sistema punitivo estatal para a tutela de novos interesses coletivos, mazelas do desenvolvimento tecnológico. Nesta linha, perpassados todos os problemas dogmáticos e político-criminais que confrontam o chamado direito penal do risco com os padrões de legitimidade do Direito Penal moderno (garantista e minimalista), o texto se concentra na discussão à volta do conceito de bem jurídico-penal. O propósito é, pela via da doutrina político-criminal do conceito material de crime, lograr um conceito de bem jurídico que legitime e restrinja a intervenção do direito penal, tanto no plano do direito constituído quanto de lege ferenda, em conta o movimento expansionista por que passa o sistema penal atual de que é exemplo o Direito Penal ambiental.

Palavras-chave: Direito Penal Secundário – Crimes Ambientais - Sociedade do Risco – Política-criminal - Modelos de controle – Bem Jurídico - Descriminalização.

Sumário: 1. Considerações iniciais – 2. Sociedade do risco, meio ambiente e direito penal: Direito Penal clássico versus "direito penal do risco"; 2.1. Sociedade do medo e da insegurança; 2.2. Direito penal clássico versus "direito penal do risco" – 3. Detalhamento de algumas propostas; 3.1. Introdução; 3.2. Teses antropocêntricas - 4. Apontamentos inconclusivos; 4.1. A conciliação entre a razão pragmática e a Wertrationalität; 4.2. Bens jurídicos coletivos, meio ambiente e antropocentrismo moderado.


1.Considerações iniciais

Vivemos um momento de transformações sociais. Transformações que, a um só tempo, interferem em diferentes horizontes discursivos como a sociologia, a política, o direito.

Mais especificamente, a sociedade pós-capitalista tornou-se reflexiva [01], a partir do momento em que passa a questionar a viabilidade dos seus meios de produção e transformação de riquezas. De forma impressiva, no que ao meio ambiente concerne, poucos são os que, hodiernamente, não tem consciência dos problemas correlatos à degradação ambiental e dos riscos de esses mesmos problemas se acentuarem num futuro não muito distante. De fato, cada vez mais, em virtude de múltiplos fatores- entre os quais podemos citar a pressão da opinião pública, a efetiva ocorrência de desastres ambientais, as exigências do mercado por produtos mais "verdes" -, tem-se clamado por um ambiente mais sadio e auto-sustentável, que não venha a prejudicar as venturas gerações, mesmo que para tanto não se dispense a intervenção estatal. Em uma palavra, vivemos um momento histórico em que a crise ecológica ganha uma dimensão alargada, de crescente relevância, passando a fazer parte da discursividade jurídica.

E esta maior preocupação com o equilíbrio ecológico e a preservação ambiental deve-se, de certo modo, ao fato de que – recorrendo a uma expressão de Ulrich Beck – "o aumento do bem-estar e da ameaça se condicionam reciprocamente" [02].Quer isto significar que, conforme a sociedade se desenvolve tecnologicamente, ao passo que a modernidade (ou pós-modernidade) industrial propicia avanços antes inimagináveis, surgem – ao lado ou em conseqüência desse desenvolvimento – novos riscos que ameaçam, também de uma forma antes inimaginável, toda a civilização e o meio em que está circunscrita.

Vivemos em uma sociedade "exasperadamente tecnológica" [03] , com níveis de avanço e crescimento científico incomparavelmente crescentes. Todavia, de par com o aparecimento de "avanços tecnológicos sem paralelos em toda a história da humanidade", somos obrigados a conviver com algumas "conseqüências negativas" [04], de inaudito potencial catastrófico, aptas a causas danos de desmedidas dimensões e extraordinário poder lesivo.

Assim, o avanço industrial e científico traz consigo, ao mesmo tempo em que repercute positivamente para o bem-estar social, o aparecimento de novos riscos de "mega-dimensões", "suscetíveis de serem produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles contribuiu e de poderem ter como conseqüência, pura e simplesmente, a extinção da vida" [05].

É nesse sentido que se tem falado, na esteira do mesmo Beck, de uma sociedade de riscos (Risikogesellschaft). Uma sociedade que, diante da efervescência dos riscos modernos, globais, imprevisíveis, torna-se reflexiva, passando a pensar sobre si mesma e os valores sob os quais se orienta. Esta nova modernidade, diante do "lado obscuro" do progresso técnico e econômico, questionando a virtualidade e a infalibilidade do "moderno", sente a imperiosa necessidade de refletir – agora de maneira menos inocente e cautelosa – sobre seu próprio modo de atuar.Uma sociedade de sujeitos passivos e em que a maioria social passa a se identificar com a figura da vítima [06]

E o que de mais espantoso nos parece estar relacionado ao topos da "sociedade do risco" é o fato de, segundo a concepção de Beck, os novos riscos emergentes a partir dessa nova realidade possuírem natureza, em tudo e por tudo, diversa dos riscos comuns do passado. Efetivamente, diz-se, os riscos atuais são indetectáveis, imprevisíveis, ocultos em complexas relações causais, ilimitados espacial e temporalmente.


2.Sociedade do risco, meio ambiente e direito penal: Direito Penal clássico versus "direito penal do risco"

2.1. Como decorrência direta do quadro descrito, a sociedade torna-se insegura e atemorizada diante destes novos riscos emergentes do desenvolvimento técnico-científico, podendo-se dizer que, paralelamente, vivemos em uma sociedade que se pode designar como "sociedade do medo" ou da "insegurança" [07].Num certo sentido, a existência objetiva de riscos repercute subjetivamente numa sensação coletiva de insegurança, que, por outro lado, é consequência da enorme complexidade que marca a contemporaneidade e, ademais, vê--se potencializada pela influência dos meios de comunicação, gerando uma insegurança subjetiva que extravasa, muitas vezes, os níveis de risco objectivo (real) [08].

Ora, na medida em que cresce, de forma incontinente, o sentimento social de insegurança, cresce também, um pouco por todo lado, o clamor social por medidas que resultem em alguma sorte de efeito preventivo. É o momento de adiantarmos que o direito penal, assim como outras áreas do sistema social [09] e do sistema jurídico em particular, é chamado a compor o rol dos instrumentos de política social idôneos a responder àquele clamor.

Em oposição aos clássicos movimentos de restrição da intervenção penal, que fizeram furor nas décadas de 60 e 70 [10], surgem cada vez mais demandas no sentido do alargamento (expansão) dodireito penal, de modo a tutelar os novos interesses comunitários, típicos da sociedade contemporânea (pós-industrial e globalizada). Referi-mo-nos aos discursos que pregam a criminalização de condutas lesivas em matéria ambiental, econômica, de consumo, etc.

Noutros termos — e já especificando ao que a nós mais proximamente interessa —, a crise ecológica que aquela idéia de "sociedade do risco" traduz, repercute também no campo jurídico-penal. O que éfácil compreender, desde logo, pelo fato de ser sempre o direito penal convocado pela comunidade como instrumento de reação eficaz (ou pretensamente eficaz) a quaisquer formas de ameaça à segurança (individual ou coletiva).

A questão ambiental passa então a fazer parte das preocupações jurídico-penais e, a partir da Lei 9605, surgem algumas incriminações legadas à tutela do ambiente.

2.2. Direito penal clássico versus "direito penal do risco"

Tenha-se presente, entretanto, que a relação entre o direito penal e os riscos oriundos da era pós-industrial — e a necessária expansão daquele que esta relação implica — é polêmica e controvertida, na medida em que "importa consideráveis problemas de eficiência e legitimação" [11]. Dizendo de outro modo, na expressão de Figueiredo Dias, "a idéia da sociedade do risco suscita ao direito penal problemas novos e incontornáveis" [12]. Isto porque, ao que parece, não está o direito penal de hoje, de vertente garantiste e auto-restritiva, suficientemente preparado para a prevenção destes novos perigos, de procedência humana, que ameaçam a sociedade e as futuras gerações. Falamos de um paradigma, deliberadamente minimalista, que admite que o direito penal intervenha somente "para assegurar a proteção necessária e eficaz dos bens jurídicos fundamentais, indispensáveis ao livre desenvolvimento ético da pessoa e à subsistência e funcionamento da sociedade democraticamente organizada" 18.

Se fôssemos, mesmo que perfunctoriamente, descrever o paradigma penal próprio dos tempos atuais, diríamos, em primeiro lugar, que este paradigma se assenta na idéia de que o direito penal só pode intervir em caso de "proteção subsidiária de bens jurídicos" [13]; ou seja, só deve intervir para a "tutela subsidiária (ou de ‘ultima ratio’) de bens jurídicos dotados de dignidade penal [14](de ‘bens jurídico-penais’)" [15]. Em segundo lugar, é digno afirmar, tem-se defendido que a aplicação das penas e das medidas de segurança, cominadas abstratamente na norma incriminadora, deve visar exclusivamente fins preventivos, sejam de prevenção geral positiva ou de integração, sejam de prevenção especial positiva. Falamos de um paradigma, deliberadamente minimalista, que admite que o direito penal intervenha somente para "assegurar a proteção necessária e eficaz dos bens jurídicos fundamentais, indispensáveis ao livre desenvolvimento ético da pessoa e à subsistência funcionamento da sociedade democraticamente organizada" [16].

E não se deve pensar que esta matriz, minimalista e garantista, serve somente como padrão crítico (trans-sistemático) para o legislador quanto à seleção dos valores dignos de tutela penal. Ela repercute também no modo de dispensar essa tutela, vale dizer, quanto aos princípios e categorias a partir dos quais se orienta, quanto ao traçado dos tipos incriminadores e à escolha da técnica que deve presidir à incriminação. Quer isto significar que o legislador, ao optar pela tipificação de determinadas condutas, por considerá-las dignas da tutela penal, deve orientar-se por critérios técnico-jurídicos que sejam restritos ao indispensável para assegurar a persecução das finalidades que tem em vista.

Estamos perante um direito penal que tem por objeto a tutela de bens jurídicos estritamente individuais (entendimento monista-pessoal, antropocêntrico, do bem jurídico); que se funda na responsabilidade estritamente individual; que se mantém fiel às exigências de aferição da causalidade, da imputação objetiva, da culpabilidade, etc. Finalmente, convém frisar, a vinculação do direito penal a esse modelo impõe ao legislador que nunca lance mão de modalidades supérfluas de antecipação da tutela penal de bens jurídicos (e referimo-nos à técnica dos crimes de perigo, mormente os de perigo abstrato). Ora, assim como não é legítimo que o legislador decida pela salvaguarda de valores que não sejam indispensáveis, não é também legítimo que se antecipe nesta mesma tutela.

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Em contrapartida, — precisamente porque a característica principal da sociedade de riscos, ao menos a que mais repercute no campo jurídico-penal, deriva do fato de no seu seio se produzirem "riscos com grande dificuldade de imputação" [17] — frente às novas e crescentes necessidades de intervenção penal em novos e complexos âmbitos da vida comunitária, o Direito penal vê-se numa posição singular. Conclamado à tipificação de novas condutas, à criação de novos bens jurídico-penais, ao recurso a técnicas dogmáticas que implicam numa certa "flexibilização" das regras de imputação, corre o risco de perder a coerência com seus princípios e postulados fundamentais.

De fato, não mais estamos diante de bens jurídicos individuais — facilmente determináveis e cuja conexão com o Direito penal é, inclusivamente sob o ponto de vista dogmático, facilmente aceitável —, mas sim perante bens coletivos (supra-indivivais), verdadeiros "interessi diffussi", de novo cunho e frutos do desenvolvimento técnico e econômico. Estes interesses — e este é quiçá o ponto que mais inconveniências traz, mormente no âmbito ambiental — caracterizam-se por não serem "operativos ou projetáveis sobre si as técnicas de tutela tradicionais" [18]. Assim, por um lado, sobre os mesmos não é possível uma configuração autônoma dos tipos penais, sendo indispensável o recurso a integrações normativas de tipo extrapenal, que se cristalizam, as mais das vezes, no recurso à normação penal em branco e a elementos normativos no tipo. Por outro lado, por múltiplas razões, muitas vezes não é possível radicar o núcleo do desvalor do resultado recorrendo à redação típica de crimes de dano ou mesmo crimes de perigo concreto, antes sendo indispensável, para uma efetiva salvaguarda dos interesses em causa, as estruturas típicas de perigo abstrato.

Além do mais, uma tal demanda leva à flexibilização de certas exigências, cunhadas com nítido empenho garantista, tais como as de responsabilidade estritamente individual, de causalidade, imputação objetiva, erro e consciência do ilícito, dolo e negligência, autoria [19].

Pelo que se acaba de expor torna-se manifesto porque, conforme antecipamos logo acima, se tem argumentado que o direito penal tradicional se não encontra preparado para a contenção dos novos riscos de que falávamos. Um direito penal ancorado numa função minimalista e subsidiária de tutela de bens jurídicos (individuais), diz-se, não possui o instrumental bastante para, eficazmente, responder à demanda de medidas para a persecução dos objetivos de controle dos novos riscos.

Queremos, nestes termos, sublinhar que tudo o que se acaba de descrever evidencia, claramente, que a idéia de uma "sociedade do risco" e a necessária intervenção do Direito Penal em âmbitos que lhe eram alheios, reclamam uma revisão, tanto no plano político-criminal quanto no dogmático, de seus princípios e categorias fundamentais e do modo de concebê-los.

Urge, por lado, que a política criminal moderna abandone aquela perspectiva liberal, que defendia a intervenção penal somente para a tutela de bens jurídicos clássicos (como a vida ou o patrimônio), e tome como tarefa sua a tutela de interesses vagos, difusos, verdadeiros bens jurídicos universais, "supra-individuais" (entre os quais, vale ressaltar, está o "meio ambiente"). Por outra banda, torna-se do mesmo modo indispensável que o legislador recorra a "técnicas de incriminação versáteis", tanto quanto possível, a fim de iludir os obstáculos ao discurso da responsabilização. Dogmaticamente, estas técnicas se traduzem, v. g., no recurso aos crimes de perigo abstrato, às normas penais em branco, à responsabilização penal das pessoas coletivas, etc.

Contudo, nota-se o perigo, quando se faz uso de técnicas que antecipam a tutela a estágios anteriores à lesão do bem jurídico que se quer proteger, de se assumir uma forma de raciocinar própria do direito administrativo. O Direito Penal deixa de ter como padrão crítico de sua intervenção o bem jurídico [20]e converte-se em um sistema de "gestão ordinária de problemas sociais" [21]. Ou, o que é o mesmo, em nome de uma "função promocional" ou de governo da sociedade, o direito penal ameaça se administrativizar.

Nesta perspectiva das coisas, resta saber se este paradigma penal que nos acompanha – e tem por fundamento princípios político-criminais até agora indispensáveis, como a função exclusivamente protetora de bens jurídicos, o da intervenção mínima, o de ultima ratio – destinado a ser substituído, em resposta aos "problemas novos e incontornáveis" que a sociedade de risco apresenta, por uma "nova política criminal" e, por decorrência, uma "nova dogmática jurídico-penal". E, se a resposta for afirmativa, cabe aqui um outro questionamento: qual então devem ser os contornos de um novo paradigma aptos a responder suficientemente àqueles problemas sumariamente enunciados?


3.Detalhamento de algumas propostas

Conforme temos sustentado, o direito penal moderno só é idôneo para a tutela subsidiária de bens jurídico-penais. Todavia, sendo isso tido por certo, não menos certo é que, por traz dessa afirmação essencial, existe um grande número de questões que têm despertado enorme controvérsia (ou até mesmo antagonismo). Daí toda a polemica suscitada à volta do papel a desempenhar pela política criminal na contenção dos novos riscos oriundos do desenvolvimento tecnológico em confronto com a função de exclusiva proteção de bens jurídicos: urge, segundo uns, que o direito criminal abandone aquela perspectiva liberal, que defendia a intervenção penal somente para a tutela de bens jurídicos clássicos (como a vida ou o patrimônio), e tome como tarefa sua a tutela de interesses vagos, difusos, verdadeiros bens jurídicos universais, supra-individuais (entre os quais, vale mencionar, está o "ambiente") [22]; noutro sentido, posicionam-se aqueles autores que, apegados aos valores do direito penal clássico e à concepção liberal de Estado à qual aquele se remete, defendem a necessidade de qualquer programa político-criminal continuar ainda restrito ao seu âmbito clássico de tutela quando se quer que o bem jurídico continue a cumprir com sua função de padrão crítico e legitimador da intervenção punitiva [23].

Se as coisas se postulam nos termos atrás desenhados, resta-nos procurar devassar as razões de uma postura rigidamente acorde com o "pensamento europeu dos princípios tradicionais", idêntica à que tem sido propugnada no ambiente da Escola de Frankfurt, segundo a qual o direito penal deve quedar-se "nuclear", ou seja, restrito ao seu âmbito clássico de tutela de interesses individuais, remetendo para outros ramos extra-penais a tarefa de salvaguardar os novos valores coletivos. Por outra banda, e opostamente, cumprir-nos-á uma maior aproximação daquele setor da doutrina que, com base em uma racionalidade funcional a permitir uma dogmática político-criminalmente orientada, atribui ao direito penal a tarefa de lutar contra novos riscos sociais, tidos por mais danosos para vida social do que a criminalidade considerada "clássica".

3.1. No intuito de discorrer sobre os problemas essenciais que se fazem notar, quando da proteção jurídico-penal de interesses coletivos se trata, o primeiro deles que de pronto nos salta aos olhos quando se intenta uma abordagem mais pormenorizada é o de lograr saber se, neste campo, estamos diante de autênticos bens jurídicos. Ou, dizendo de outro modo, importa saber se estes bens constituem interesses autônomos e dignos de proteção por si mesmos, ou seja, pelo relevo que possuem para a vida comunitária, ou se não passam de formas de antecipação da tutela penal de bens jurídicos individuais preexistentes [24].

Justo é salientar que toda a discussão aqui suscitada deve-se ponderar, ao menos num primeiro momento, tendo por interlocutor privilegiado a própria concepção de Estado que serve de suporte ao sistema penal e ao programa político-criminal correspondente. De resto, não seria desarrazoado pensar que a negação de qualquer fundamento teórico aos interesses supra-individuais ou coletivos entra em desacordo com a vertente social do Estado de Direito contemporâneo. Foi, pois, no seio dessa última noção de Estado [25] que se desenvolveram as teses favoráveis ao alargamento da intervenção penal de modo a abarcar aqueles interesses sociais, frutos dessa nova forma de se entender o Estado em suas relações com o indivíduo [26].

Modernamente, o autor germânico que mais atenção dispensou ao tema da autonomização do direito penal secundário foi Klaus Tiedemann. Com as preocupações centradas no direito penal econômico, Tiedemann identifica esse último ramo com autênticos bens jurídicos supra-individuais, merecedores de punição autônoma, independentes e desconectados dos interesses jurídicos individuais [27]. Entende assim, que a tutela jurídico-penal de interesses supra-individuais como a ordem econômica ou determinados valores sociais constituem fins em si mesmos e, portanto, desvinculados de quaisquer referentes individuais [28]. Para além disso, partindo de um conceito dualista de pessoa, que distingue entre Selbstein e o Alssein, postula uma construção dualista do bem jurídico apta a alicerçar - tendo por base a autonomia material entre as duas dimensões relativamente autônomas do agir pessoal - a dualidade entre direito penal clássico (ou de justiça) e direito penal secundário [29]. Dessa forma, a proteção autonomamente dispensada à integridade de instituições ou sistemas econômicos em nada colidiria com a referência de todo o direito à pessoa humana [30].

Em Portugal, é esse o caminho trilhado por Figueiredo Dias. Defensor de um conceito de bem jurídico constitucionalmente ancorado, esse Autor postula que a forma em que se relacionam o ordenamento jurídico-constitucional e a "ordem legal dos bens jurídicos dignos de tutela penal" possibilita uma "distinção material – com importantíssimos reflexos dogmáticos e sistemáticos - entre o direito penal clássico ou de justiça, e o direito penal administrativo, extravagante, secundário, ou econômico social" [31]. De forma que, se os crimes constantes do direito penal de justiça correspondem aos direitos, liberdades e garantias das pessoas (previstos pela Constituição), "já os do direito penal secundário (…) se relacionam primariamente com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos sociais e à ordenação econômica. Diferença que radica, por sua vez, na existência de duas zonas relativamente autônomas na atividade tutelar do Estado: uma que visa proteger a esfera de atuação especificamente pessoal (embora não necessariamente ‘individual’) do homem: do homem ‘como este homem’; a outra que visa proteger a sua esfera de atuação social: do homem ‘como membro da comunidade" [32].

3.2. No entanto, não se deve pensar que essa postura comprometida com a consagração de novos interesses merecedores de tutela penal é aceita sem ressalvas. Com efeito, e de certo modo reflexamente ao aparecimento progressivo de incriminações que têm por fulcro novos bens de feição supra-individual, atualmente têm surgido variados estudos críticos a questionar a validade e o fundamento teórico das mais recentes elaborações doutrinais favoráveis a uma mais empenhada e ativa participação do direito penal contemporâneo nos problemas que afligem a sociedade moderna.

Nesse sentido aponta o pensamento de Michael Marx e de todos aqueles autores orientados a uma noção de bem jurídico de vocação estritamente liberal (concepção monista-individualista ou personalista). Segundo esse entendimento, só podem ser bens do direito penal "os objetos que o ser humano precisa para sua livre auto-realização", de forma que os mesmos objetos só "se convertem em bens jurídicos à medida que estão dotados de um conteúdo de valor para o desenvolvimento pessoal do homem em sociedade" [33]. Em conformidade, se de acordo com o entendimento de alguns existe uma autônoma salvaguarda dos interesses cristalizados pela vertente social do Estado de Direito, já na perspectiva aqui defendida tais interesses só merecem acolhimento na justa medida em que forem indispensáveis à livre realização do indivíduo singular. O direito penal só se justifica para a proteção do indivíduo frente ao Estado, sendo ele (indivíduo) o eixo ou núcleo axiológico ao redor do qual a ordem jurídico-penal deve entremostrar-se.

É no indivíduo que reside o apoio normativo a todo o desenvolvimento jurídico [34]. Daí que a concepção monista personalista propugne a fundamentação de todo o direito penal com base no ser humano, valendo este como um parâmetro irrenunciável - apoiado, segundo alguns, no ordenamento jurídico-constitucional - para a avaliação do merecimento de pena. Conseqüentemente, isso repercute como um "freio" às atuais reelaborações teóricas de categorias dogmáticas e princípios político-criminais e também às tendências de "socialização" dos mesmos em resposta ao desenvolvimento e transformação das estruturas sociais.

Por outro lado, escreve Marx, a auto-realização pessoal não existe nem se perspectiva em razão unicamente do indivíduo isolado, mas sim da "socialidade da pessoa". Não se desconhece, ainda mais, que a pessoa, para além de "indivíduo" singular, é sempre e conjuntamente "uma individualidade social" [35]. Daí que "esta concepção só possa resultar num conceito unitário de bem jurídico, isto é, ao mesmo tempo individual e social" [36]. De resto, a passagem do Estado de direito formal ao Estado social de Direito não compromete o reforço dos interesses pessoais no momento na configuração do tipo: os bens jurídicos supra-individuais podem ser construídos como autônomos objetos de tutela desde que estes estejam sempre referidos às condições de auto-realização da pessoa [37]. Dizendo de outro modo, os objetos só se convertem em bens jurídicos quando "dotados de um conteúdo de valor para o desenvolvimento pessoal do homem em sociedade" [38]. Assim, por exemplo, quando se trate de conferir proteção ao meio ambiente, não se dispensa a comprovação, no momento da aplicação do tipo, de um resultado que contrarie os interesses do indivíduo [39].

Ora, essa maneira de ver as coisas pretende dar resposta ao perigo de se instrumentalizar a pessoa e os interesses particulares em função do Estado [40] (entendido como uma entidade que se justifica por si mesma), o que é próprio do modo funcionalista de inteligir. Em contrapartida, o que se pretende é exatamente o contrário: "funcionalizar os interesses gerais e do Estado a partir do indivíduo" [41]. O pensamento funcionalista não serve, segundo crêem esses autores, como um ponto de apoio apto a oferecer limites à intervenção punitiva estadual porque corporiza uma racionalidade meramente pragmática, voltada para o output, e, portanto, desatenta a uma outra racionalidade axiológica (a Wertrationalität) que deve sempre interceder. A recorrência à noção de "danosidade social", peculiar às teses funcionalistas mais radicais, não presta à função de um padrão crítico político-criminal pronto a servir de limite material ao ius puniendi. No seio dessas correntes, dado o seu caráter essencialmente normativoe o conseqüente apagamento do mundo da vida e da pessoa, o que resulta socialmente danoso ou disfuncional pode ser contrário à eficácia limitadora e garantista de uma política criminal alicerçada nos valores do Estado de Direito. Uma perspectiva exclusivamente funcionalista arrisca-se a proteger meras imoralidades, ou a legitimar o recurso ao direito penal pelo poder estatal para cumprir funções de estratégia política [42].

E isto, num certo sentido, deve valer também para aquele setor da doutrina em que o pensar tecnológico é levado a menores conseqüências. Fácil é chegar a essa conclusão quando se tem presente, como já afirmou o próprio funcionalista Roxin, que "a acentuação das orientações preventivo-gerais conduz a uma extensão da penalidade a todos os âmbitos socialmente relevantes" [43]. É, pois, de uma oposição ao pensamento funcionalista, considerado em muitas das suas manifestações, de onde partem as mencionadas críticas, mormente as provindas da doutrina minimalista radicada em Frankfurt. Em uma abordagem dicotômica, pode-se dizer que toda a polêmica agora levantada traduz-se na temática, mais ampla – e à qual teremos ocasião de voltar logo em breve -, do "direito penal entre o funcionalismo e pensamento europeu dos princípios tradicionais" [44]. Por agora basta reiterar que ao funcionalismo - seja ele na sua vertente moderada seja na sua vertente radical [45] - referem-se, portanto, os autores de Frankfurt, como um instrumento de incorporação, aos princípios normativos do merecimento de pena, de interesses políticos e ideológicos da mais variada ordem. É dizer: como uma "idéia pela qual se funcionalizam os princípios do direito penal a partir das exigências de uma política criminal efetiva" [46] e que tem por conseqüência primordial a expansão do número de necessidades coletivas alçadas à categoria de interesses dignos de tutela penal.

Uma outra questão que tem sido posta em evidência pela doutrina antropocêntrica do bem jurídico é a de se saber até que ponto o direito penal, quando protege interesses que transcendem a esfera do indivíduo (em sentido estrito), não adota uma função propulsora ou promocional. Se, com fundamento nas observações anteriores, atribui-se ao pensamento funcionalista o demérito de subtrair da noção de bem jurídico todo o conteúdo material, num momento posterior, têm-se predicado àquela mundividência também o abandono do princípio da subsidiariedade [47]. Com efeito, para além de sua clássica função de tutela subsidiária de bens jurídicos, o direito penal passaria a incorporar uma "função promocional" da vida social, a implicar em uma clara transformação de sua função [48]. Crê-se, assim, que a ordem jurídico-constitucional deixaria então de servir como limite negativo à criminalização, passando a servir como "pressuposto de uma concepção promocional ou propulsora do direito, acrescentando à função tradicionalmente protetora e repressiva do direito penal o papel de instrumento que concorre na realização do modelo e dos escopos prefigurados na Constituição" [49]. Ademais, e como maior objeção a uma acentuação da função promocional do direito penal, estaria o enorme perigo de "transformar o direito penal de instrumento jurídico de tutela em ‘instrumento de governo’, enquanto tal não imune a uma instrumentalização política em sentido estrito" [50].

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Sobre o autor
Guilherme Gouvêa de Figueiredo

Mestre em Ciências Penais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa. Direito Penal do risco e conceito material de crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2794, 24 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18566. Acesso em: 25 abr. 2024.

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