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Erro médico: semiologia e implicações legais

Os autores analisam os fatores que predispõem ao Erro Médico, assim como sua possível profilaxia. Os aspectos psicológicos da relação com o tema, também são abordados. As implicações legais decorrentes das possíveis falhas médicas merecem destaque especial no estudo, haja vista o crescente número de processos judiciais a que os profissionais da saúde estão sendo submetidos.



Introdução

Não existe atualmente no mundo profissão mais regulamentada que a Medicina. Seu exercício é um dos mais perigosos sob o ponto de vista legal.

A sociedade, como um todo, aceita sem análise prévia as mais variadas notícias e os comentários, sempre críticos -- na maioria das vezes incompetentes devido ao precário conhecimento técnico do assunto --, fazendo do médico, objeto de escândalo, atacando uma das mais nobres profissões existentes.

No campo médico, onde os mais variados fatores influem direta ou indiretamente, é lógico esperar a ocorrência de erros, não só da parte do médico, mas também de todo o sistema de saúde. Isso abrange desde a falta de materiais básicos para tratamento de urgência até o modo de planejamento sanitário. Não desejamos aqui defender o médico que erra por imprudência, negligência ou omissão de socorro; ao contrário, tentamos esclarecer fatos e analisar as implicações legais decorrentes deles, já que em nossos dias torna-se gritante a ação do marketing contra a imagem do médico, organizada em bases cada vez mais sólidas, para a implantação, no Brasil, dos chamados "seguros pela má prática", à semelhança do que já existe nos Estados Unidos.

A medicina previdenciária e das companhias de seguros tornaram os pacientes profundamente perturbados quanto aos seus interesses legais, muito mais que em relação à própria saúde. Estão longe da relação médico-paciente descrita por Porthes como um "diálogo entre a ciência e a consciência".



O Médico e a Medicina

A competência profissional do médico caracteriza-se pela aptidão em realizar os atos com conhecimento, segurança e êxito. A cada dia o médico e eterno estudante defronta-se com situações novas, as quais deve superar, valendo-se da experiências adquiridas desde então.

Quanto mais cravadas de êxito tenham sido estas, maiores as probabilidades de acerto futuro, justificada assim, a eterna necessidade de árduo e constante estudo e aprimoramento.

No curso de sua formação, o jovem aprendiz de Medicina -- primeiro interno e depois residente -- vai percorrendo degraus sucessivos do conhecimento, galgando diferentes níveis, com autonomia e interdependência com seus circunstantes, monitores e colegas, até atingir uma qualificação que o torna apto ao exercício da profissão, ingressando assim no mercado de trabalho.

Dentre as inúmeras especialidades médicas, o cirurgião é o que mais freqüentemente se vê abrasado no litígios sobre erro médico. Esse fato é de conhecimento secular, a partir da instituição da prática cirúrgica pelos cirurgiões pioneiros -- barbeiros --, desde as descobertas e lições de Ambroïse Paré até a oficialização do ensino da cirurgia por Alfred Hunter, na Inglaterra, no século XVIII.

O conjunto de condutas agrupadas no Juramento de Hipócrates tem preservado no médico a aura e a necessidade de uma quase infalibilidade no exercício de seu trabalho, e o que passou a ser conhecido como "sacerdócio médico" ornou seu papel na sociedade com uma aura de impenetrável dedicação quase religiosa, carismática e de abnegação pelo próprio trabalho realizado, cedendo cuidados médicos, independente da possibilidade de remuneração por parte de quem os recebe. Este é um privilégio de atuação do médico e do sacerdote, que tem conferido àquele um escudo de proteção profissional que, através dos séculos, abriga-o das implicações relacionadas à qualidade do serviço prestado e à sua eventual falibilidade no exercício da sagrada missão de curar, que raramente eram expostas à execração pública ou levadas ao enquadramento nos estatutos penal e civil.

No caso do erro médico, cria-se, muitas vezes, a falsa impressão de que os órgãos de classe ou não julgam adequadamente os erro ou os escondem, em atitude corporativista. É bom lembrar que o médico, diferentemente do cidadão leigo, quando comete erro, é passível de julgamento em dois tribunais: o da classe médica (Conselho de Medicina) e o da Justiça Comum. A pena, aliás, é mais grave para o profissional do que para o cidadão leigo. O médico não é, pois, acobertado nem julgado apenas pelos médicos, em suposta atitude da "máfia de branco"; está sujeito à normatização, tanto do Código Penal quanto do Código Civil.

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Análise Psicológica da Relação Médico-Paciente

O paciente, diante do médico, o tem como uma figura mágica, que lhe sanará todos os males, sendo a possibilidade divina de expurgar o "mal", trazer nova vida ou matar, através da intervenção cirúrgica. Este médico, detém a força sobre a vida e a morte. Analogamente, tem o poder de salvar e reparar o mal.

Chegamos a um nível instrumental muito alto em tudo; podemos ver micróbios e medir a distância entre estrelas. Mas conhecemos também o azar: não estamos livres de que um câncer recaia sobre nós ou sobre a pessoa amada, não estamos livres da dor, da pobreza, nem do acidente de automóvel. E quem controla o incontrolável? É na religião (ou nos médicos, em caso de doença) que as pessoas vão buscar ou fortalecer um certo sentimento de proteção diante do incontrolável, mostrando, mais uma vez os fortes laços que acercam o médico do doente.

Freud, em seu artigo intitulado "O Futuro de Uma Ilusão", enfoca a busca incessante do Homem aos mitos, crenças, religiões e deuses, quando se vê diante da escassez de seus próprios recursos.

O médico é endeusado e querido quando tudo corre bem e acusado em casos de complicação e morte. Assim, se o investimento na figura do médico envolve temor e angústia, é também em contrapartida, a figura amada e tranquilizadora. Suas palavras e atitudes podem Ter efeito psicológico tão imediato tão eficaz quanto sua intervenção técnica. O médico consciente utiliza esses meios para garantir um bom prognóstico.

Que os médicos se reconfortem, o exercício de sua arte não está em perigo, a glória e a reputação de quem a exerce com tantas vantagens para a humanidade não serão comprometidas pela falha de um homem com o título de doutor. Dificilmente chega-se a conclusões partindo do particular para o geral e de um defeito isolado para casos que não oferecem nada de semelhante. Cada profissão encerra, em seu seio, homens dos quais ela se orgulha e outros que ela renega.



Natureza Jurídica do Vínculo Médico-Paciente

Muito se tem escrito sobre a natureza jurídica do vínculo que gera a relação médico paciente. O interesse do tema tem conseqüências práticas, tais como a fixação do tempo de prescrição da ação do paciente para demandar ao profissional pelas conseqüências de seus atos.

A corrente clássica sustenta que o dito vínculo e a responsabilidade derivada dele são contratuais, em princípio; por exceção, seria extracontratual quando os serviços fossem requeridos por outra pessoa, distinta do paciente, ou prestados espontaneamente, sem consentimento do enfermo, a exemplo dos casos de pacientes em estado grave e inconscientes. Desta feita, tendo a relação médico-paciente como uma locação de serviços, o objetivo do contrato médico não é de cura, obrigação de resultado, mas sim de prestação de cuidados conscienciosos, atentos, e, salvo circunstâncias excepcionais, de acordo com as aquisições da ciência, atuando conforme a Lex Artis determina, com o propósito de alcançar um objetivo -- o restabelecimento do enfermo --, que pode ou não cumprir-se.

É triste, porém realidade, que em lugar do velho estilo "de cabeceira", o médico atual parece depender mais de um formidável aparato instrumental, que salva vidas perdidas por seus predecessores. A imagem do pai foi substituída pela do técnico especializado, e o paciente insatisfeito estará mais disposto a pleitear com um técnico frio e impessoal do que com um velho amigo paternal da família.



Dimensões Legais na Falha Médica

Alexander Lacassagne definiu responsabilidade médica como as obrigações que possam sofrer os médicos em certas faltas por ele cometidas no exercício de sua profissão, faltas essas que podem comportar uma dupla ação, civil e penal. Sob o aspecto penal, o médico está diante de um delito e sujeito a uma pena. Sob o ponto de vista civil, o dano físico, levando a um prejuízo econômico, impõe um pagamento em dinheiro como indenização.

Existe uma corrente contrária a qualquer responsabilidade médica, por ser a Medicina "um mandato ilimitado junto à cabeceira do doente, ao qual só pode aproveitar essa condição"; no entanto, pela simples razão de o médico Ter um diploma, não é eximido do seu estado de falibilidade e os tribunais não são leigos nem incompetentes para julgar as falhas médicas, pois, quando os juizes as avaliam, manifestam-se depois de ouvirem os próprios médicos, os peritos, que são na verdade, os olhos da lei.

Entre as formas de responsabilidade primária, é importante, em nosso meio, a participação. Para que haja participação em um delito deve haver cooperação na produção; assim, o diretor de uma clínica ou o médico plantonista de um serviço de emergência que contrata um estudante para cobrir seus plantões é cúmplice em primeiro grau daquele no exercício ilegal da medicina. Outro fenômeno inquietante está ocorrendo: muitos paciente, quando se julgam lesados pelo ato profissional, ingressam no Conselho Regional de Medicina com uma ação contra o assistente, visando obter neste foro a sua condenação e posterior embasamento na justiça comum para reparações pecuniárias.

Em geral, os hospitais universitários são os mais patogênicos. Verificou-se que dos pacientes admitidos em um hospital universitário padrão que contraem doença iatrogênica -- algumas vezes benigna --, na maioria dos casos esta exige tratamento especial, sendo que um em trinta paciente contraem doença iatrogênica mortal.

Existe em São Paulo (criada recentemente por uma vítima de erro médico) uma sociedade denominada S.O.S. Erro Médico, com personalidade jurídica, que se encarrega de impetrar mandados judiciais sempre que eventuais prejudicados de baixa renda necessitem de seus serviços, mesmo gratuitamente. Eis mais uma prova da opressão leiga sobre os médicos, já que desconheço afora o Ministério Público, uma associação semelhante que proteja os indivíduos contra a prática comum de violência no trânsito urbano, erros de construção civil, entre outros.

As possíveis falhas médicas puníveis podem ser divididas em duas grandes classes:

1 - Falhas relativas aos deveres de humanidade -- Socorrer um doente em perigo, não abandonar o doente, instruir o paciente sobre o seu estado e obter seu consentimento no tratamento e salvaguardar a violação do segredo profissional.

2 - Falhas de natureza técnica -- Erros de diagnóstico, faltas relativas ao tratamento, faltas ligadas a uma operação ou intervenção, erro de prognóstico, falta de higiene, erros cometidos por especialista.

No estudo do ato médico falho, desempenha papel importante a doença que surge em conseqüência da intervenção médica ou medicamentosa, e o delito não somente dá nascimento à ação penal senão que, também quando causa um dano que possa ser apreciado pecuniariamente, dá origem à obrigação de repará-lo. Para isso existe, além da ação penal, a civil.

O Código Civil preceitua, no Art.159: "Aquela que, por ação ou omissão voluntária, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano". E ainda em seu Art. 1545: "Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiros e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimentos". Segundo Clóvis Beviláqua, a responsabilidade dos profissionais citados "funda-se na culpa, e a disposição tem por fim afastar a escusa, que poderiam pretender invocar, de ser o dano um acidente no exercício da sua profissão; o direito exige que esses profissionais exerçam sua arte segundo os preceitos que ela estabelece, e com as cautelas e precauções necessárias ao resguardo da vida e da saúde dos clientes e dos fregueses, bens inestimáveis, que se lhes confiam, no pressuposto de que os zelem; e esse dever de possuir sua arte e aplicá-la, honesta e cuidadosamente, é tão imperioso que a Lei, repressiva , lhe pune as infrações".

A responsabilidade civil do médico, na qualidade de profissional liberal, em face do disposto no Art. 14, parágrafo 4º, do Código de Defesa do Consumidor, será apurada mediante verificação de culpa, regra aliás aplicável a todos os demais profissionais liberais, cujo elenco está relacionado no anexo do Art. 577 da Consolidação das Leis Trabalhistas.

Na esfera penal, o Código Penal, no Art. 15, dispões: "Diz-se o crime: ...II -- culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia", e no Art. 135, pune a omissão de socorro.

A responsabilidade por atos e omissões pode, juridicamente, resultar em três modalidades de culpa:

Imprudência

É a descautela, descuido, prática de ação irrefletida ou precipitada, resultante de imprevisão do agente em relação ao ato que podia e devia pressupor. Como exemplo, o cirurgião que opera sem o diagnóstico correto e sem o preparo adequado do paciente.

Negligência

É a falta de diligência, desídia, implicando desleixo ou preguiça, falta de cuidado capaz de determinar responsabilidade por culpa. Os esquecimentos de pinças, gazes e compressas enquadram-se nesta falha.

Imperícia

É a ignorância, incompetência, desconhecimento, inexperiência, inabilidade, imaestria na arte ou profissão.

Controvérsias existem, e compartilhamos desta opinião, quanto ao fato de imputar-se imperito o médico, já que esse não pode fugir à responsabilidade, como qualquer pessoa capaz, pelo dano que possa causar a outrem devido à negligência ou imprudência, mas nunca à imperícia. Ora, se um homem tem em suas mão um diploma que lhe confere grau de doutor e uma habilitação profissional e legal, não é lógico atribuir-lhe imperícia numa situação isolada, já que é profissional habilitado, com provas de acertos em outras tantas situações.

Aníbal Bruno, analisando a matéria, afirma que "há erro escusável, e não imperícia, sempre que o profissional, empregando correta e oportunamente os conhecimentos e regras da sua ciência, chega a uma conclusão falsa, possa, embora, advir daí um resultado de dano ou perigo".

Aos tribunais corresponde esta aplicação com discernimento, com moderação, deixando para a ciência toda a latitude que necessita, porém dando à justiça e ao direito comum tudo o que lhe pertence.

O sucesso da Medicina exige mais do que a simples, mas impossível, eliminação da arte e do relacionamento com o homem. Negar ou embelezar as partes que a integram é tornar-se escravo de um homem que não lhe cabe, assim como, eliminando o erro humano, eliminar-se-ia a humanidade do Homem.

Sobre os autores
Sidney Zampieri Júnior

advogado e médico neurocirurgião

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZAMPIERI JÚNIOR, Sidney; ZAMPIERI, Alessandra Moreira. Erro médico: semiologia e implicações legais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 26, 1 set. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1866. Acesso em: 23 dez. 2024.

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