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AIDS e direitos humanos

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Agenda 01/07/2000 às 00:00

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

A SIDA(1) é conhecida popularmente como AIDS (sigla da denominação em língua inglesa). É a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida: síndrome de conjunto de sintomas ou sinais de doença; imunodeficiência do momento no qual o sistema imunológico de uma pessoa não pode proteger o corpo, o que facilita o desenvolvimento de diversas doenças; e adquirida do fato de que ela não é hereditária, depende de infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).

Esse tipo de conceito, porém, não me parece suficiente, limita-se a relatar aspectos clínicos. E, quanto a isso, o médico Jonathan Mann, quando era responsável pelo programa de controle da SIDA da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 20 de outubro de 1987, perante a Assembléia Geral da ONU, alertava que a SIDA, na verdade, representava três epidemias: a primeira da infecção pelo vírus; a segunda das doenças infecciosas e a terceira das reações sociais, culturais, econômicas e políticas. Ele acrescentava, desde aquela época, ser essa última tão fundamental quanto a própria doença e, potencialmente, mais explosiva do que aquela.

Nesse sentido, também Herbert Daniel, para quem "atribui-se à ciência, de forma quase imediata, o papel de descobrir soluções médicas. Coisas bem restritas. Não estarão solucionando nenhum Grande Enigma. Estarão dando uma explicação médica sobre uma doença. Ou seja, uma interpretação científica de certos danos e fatos na relação entre agente etiológico e a evolução da patologia" (p. 100).

Por isso, opto por um conceito histórico-cultural da SIDA, como o que se segue.

A SIDA foi diagnosticada pela primeira vez em 1982. Aparece como uma nova doença; logo, porém, assume um caráter bem mais amplo, mostrando-se um poderoso fator de discriminação. Decorrência de características das pessoas então identificadas como portadores: homossexuais masculinos norte-americanos com idade entre os trinta e quarenta anos. Isso leva os médicos, respaldados pelos meios de comunicação, a pensar no surgimento de um câncer gay - denominação decidida sem ter por base nem sequer o conhecimento do agente transmissor da Síndrome.

Pouco tempo depois, identificavam-se inúmeros casos de semelhante problema em território africano. As hipóteses então levantadas explicavam o surgimento da epidemia como resultado de rituais tribais envolvendo macacos, animais nos quais se descobriu vírus semelhante ao VIH.

A teoria estava montada. Trabalhadores haitianos, com passagem pela África, teriam disseminado o vírus para os Estados Unidos através de relacionamento homossexual com norte-americanos.

Assim como a sífilis em épocas passadas, percebe-se uma perfeita manipulação dos fatores sexuais e econômicos de discriminação. Afinal, hoje, embora se tenha claro que a transmissão sexual da SIDA não é restrita ao comportamento homossexual e que, se a origem da epidemia foi realmente a África, a causa mais provável são experiências de cientistas do Primeiro Mundo em território subdesenvolvido, a idéia inicial persiste no inconsciente coletivo, mesmo que o perfil atual da Síndrome seja de caráter pandêmico, atingindo todas as faixas etárias, independentemente de classe social e comportamento sexual.

A vontade de estar imune ao perigo, que seria reservado ao outro, ao pecador, remonta ao século XVIII, quando Cotton Mather (pregador e escritor puritano da Nova Inglaterra, 1663-1728) dizia que a sífilis era um castigo "que o justo juízo de Deus reservou para nossa era tardia" (apud Sontag, 1989, p. 72).

Hoje Dom Eugênio Sales escreve a respeito da SIDA:

"E cai, como raio, na humanidade, o perigo da AIDS... Surge como imposição que atinge, em cheio, a inversão sexual, a troca de parceiros, uma interminável lista de assuntos condenados pela legislação divina... Esse clima revela a decadência dos costumes com as conseqüências de um comportamento humano quando contraria o destino para o qual fomos criados...

Os flagelos sociais servem de instrumento para despertar a consciência, explorar a imoralidade reinante, fazer o homem retornar aos caminhos de Deus" (2).

Essas visões apocalípticas são absurdas. A SIDA não é algo anormal que vai acabar com a vida e/ou os costumes do homem na Terra, é apenas uma doença.

Nos livros A doença como metáfora e A AIDS e suas metáforas Susan Sontag analisa a tuberculose, o câncer, a sífilis, a cólera e a SIDA. No último, ela mostra as falsas diferenças entre o câncer e a SIDA. Ressalta que, no câncer, o doente se pergunta: por que eu?, na SIDA não. Naquela doença revela-se uma fraqueza do doente, nesta uma irresponsabilidade, uma delinqüência.

Como o câncer deixou, há algum tempo, de ser um pecado, algo terrível a ser escondido, o mesmo deve acontecer com a SIDA no futuro.

Ela ainda é sinônimo de morte, mas o período de vida da pessoa contaminada aumenta e não existe possibilidade de se negar que a doença terá, em breve, as características de uma patologia crônica.

Há pouco Sontag alertava que "tais fantasmas florescem porque consideramos a tuberculose e o câncer muito mais do que como doenças que comumente são (ou eram) fatais. Nós os identificamos como a própria morte" (1984, p.25) e que "a doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença" (1984, p. 7).

Susan Sontag acrescenta ainda que "nada é mais punitivo do que atribuir um significado a uma doença quando esse significado é invariavelmente moralista. Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz tende a ser sobrecarregada de significação" (1984, p. 76).

Também Herbert Daniel ressalta o absurdo do temor que transforma a SIDA em algo mais do que uma doença: "A AIDS é um mito! Como diriam os chineses dos bons tempos, ‘é um tigre de papel’.

Ora, direis, este é um absurdo que vem desmentir todos os dados e fatos. E eu explico que a SIDA é uma doença grave, transmissível e mortal. Não é um ‘enigma’, mas - como muitas outras doenças - aparece como um desafio. Este desafio é colocado à ciência e à comunidade (e não nesta ordem...). É verdade que, em termos de saúde pública, há um desafio a ser vencido, assim como a questão da fome, do trânsito, da poluição, das doenças cardiovasculares, do câncer, da iatrogênese, etc" (p. 82).

O Brasil é um bom exemplo prático destas características preconceituosas e mistificadoras em relação à SIDA. Os programas governamentais são, na sua quase totalidade, ligados a ministérios ou secretarias de saúde, dirigidos por médicos, que também são considerados pela mídia como as únicas verdadeiras autoridades no assunto.

O resultado é inoperância e fracassos desde 1983, quando se divulgou a morte de Markito, costureiro de renome, primeiro doente brasileiro conhecido.

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Naquele momento, definiu-se o perfil nacional da pessoa contaminada: jovem, rico, gay. E, raras vezes, tentou-se alterar tal pensamento. A exceção diz respeito às ONGs/SIDA que, preocupadas com a instalação da Síndrome no país, exigiam que o governo tomasse atitude a respeito. Não obtiveram resposta até os dias de hoje.

Em 1984, a SIDA contabilizava 122 casos no Brasil. Os dados oficiais, de abril de 1992, já alcançavam a cifra de 24.704 pessoas com um novo perfil epidemiológico. Se a doença, em 83, atingia a população numa proporção de 30 homens contaminados para cada mulher, em 91 a relação situava-se em seis pessoas do sexo masculino para uma do feminino. A perspectiva é de se chegar a uma realidade onde os portadores estarão numa proporção de 50% para cada sexo.

Percebe-se também que a propagação do vírus ocorre em direção às classes desfavorecidas. Embora inexistam dados oficiais a respeito, observa-se um aumento do número de contaminados entre as pessoas de menor nível cultural, habitantes de vilas e favelas.

Assim, dez anos depois de diagnosticada, a SIDA encontra-se, cada vez mais, instalada no cotidiano dos brasileiros. E esse fato reflete-se nos vários discursos.

O preconceito e a intolerância estampam-se nos discursos reacionários, onde se forma o aidético, categoria única, indivisível e, principalmente, separada da sociedade, das pessoas, dos seres humanos. Ele é um inimigo condenado à morte física, considerado sem utilidade para o desenvolvimento social. Tenta-se coisificá-lo.

Uma divisão apenas pode ser tolerada: os aidéticos culpados (homossexuais, prostitutas e drogaditos) e os aidéticos inocentes (mulheres contaminadas pelos maridos, crianças e hemofílicos).

Alain Molla, sobre este assunto, indignado, manifestou-se: "Como se pode falar de ‘SIDA dos inocentes’ (isso mesmo que Le Monde ousou noticiar no dia 8 de junho de 1989), a respeito de hemofílicos e pessoas contaminadas após várias transfusões. Sim, estas pessoas são inocentes e não procuraram nem a doença nem a morte no instante de sua contaminação! Mas qual é o contrário de ‘inocente’ senão ‘culpado’, e o homossexual contaminado é culpado de quê? De ter procurado a doença e a morte pela expressão sexual, o prazer e o amor? Vamos então! Digamos mais explicitamente que ele é culpado por que é homossexual! Como, decididamente, é difícil ser solidário desses estranhos doentes!".

Mas mesmo estas vítimas inocentes sofrem com o preconceito e o descaso geral de uma sociedade na qual o individualismo, a competição, a produtividade parecem ser a solução para os problemas; afinal, no imaginário popular, não estão os aidéticos aptos a alcançar bons resultados.

Para os fins deste trabalho, acrescente-se que pessoa com SIDA, portador do vírus ou doente são termos que serão utilizados como sinônimos. Afinal, as pessoas, quando pretendem discriminar, desconhecem diferenças e, nesse aspecto, embora, em sentido contrário, pode-se lhes dar razão: em todos os estágios da doença, inexistem razões para discriminar ou fazer separações, ter preconceito ou temor.


SIDA e Direitos Humanos

Conforme a Resolução 41.24, da OMS, elaborada em Genebra, no dia 13 de maio de 1988:

"A quadragésima primeira Assembléia Mundial de Saúde está fortemente convencida de que o respeito pelos Direitos Humanos e dignidade dos portadores do VIH e pessoas com SIDA, bem como membros de grupos populacionais, é vital para o sucesso dos programas nacionais de prevenção e controle da SIDA e para estratégias globais dos Estados-membros, particularmente na ampliação dos programas nacionais para fora de suas fronteiras, sempre visando à prevenção e ao controle da infecção pelo VIH e à proteção dos Direitos Humanos e à dignidade do portador do VIH e pessoas com SIDA, bem como membros de grupos populacionais e, para evitar ações discriminatórias e estigmatizações dessas pessoas no momento de se empregar, viajar, e garantir a confidencialidade do teste para detecção do VIH".

Inobstante muitas pessoas perceberem-se imunes frente ao poder do Estado e considerarem a tomada de medidas autoritárias por parte daquele como algo não apenas eficaz para conter a violência, mas também como benéfico para a sociedade, há muito e, cada vez mais, posições como essas vêm perdendo espaço para disposições como as contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, que pregam o respeito pelo homem.

O surgimento de fatos novos, porém, causa uma expectativa muito grande na população e faz, por vezes, ressurgir velhos fantasmas. Acontece em relação à SIDA. Aconteceu em relação à sífilis e à cólera em momentos anteriores à descoberta de curas para essas doenças.

Assim, atualmente, em muitos casos e para muitas pessoas, o portador do VIH acaba encarnando o mal. Para corrigir essas distorções, necessita-se de um trabalho de esclarecimento geral, de divulgação das informações. Muitos progressos já podem ser percebidos, mas muito ainda resta a ser realizado.

Enquanto esses objetivos não são alcançados, os Direito Humanos surgem como um espaço de salvaguarda na defesa dos direitos básicos dos doentes de SIDA e portadores do VIH.

Quais são, pois, os direitos fundamentais do doente de SIDA e do portador do VIH? Como defendê-los de forma prática?

Os direitos são os mesmos de todas pessoas, contidos que estão na Declaração Universal. Entretanto, mesmo esses valores são relativizados. Como aponta Paul Sieghart, o "Estado, desejando justificar uma interferência, limitação ou restrição de um direito fundamental, tenta demonstrar que a restrição é prescrita por lei ou é necessária em uma sociedade democrática para a proteção de um ou outro interesse listado" (p. 12).

Essa luta, pois, não é fragmentada e reduzida a esses dois campos de saber. Para se tornar eficaz, ela deve ser integralizada e multidisciplinar. Deve envolver todas as formas capazes de desenvolver a pessoa, no sentido de torná-la, cada vez mais, cidadão.

Isso devido à real dimensão da SIDA: um instrumento de preconceito e de discriminação, forma de alienação e desumanização.

O discurso do aidético, categoria única de um ser monstruoso, não serve apenas para estigmatizar os portadores, é, antes de tudo, uma forma de dividir a sociedade: os sadios, bons, nós; e os doentes, sujos, maus, eles.

E eles nada merecem do que é nosso. Ao contrário, de tudo devem ser despojados, que percam casa, trabalho e amigos; eles são algo que não deveriam ser, eles fizeram algo que não deveriam ter feito. Eles devem ser (e o estão sendo) punidos.

Contra isso nos insurgimos. Mais do que nunca, necessitamos da retomada da cidadania. Urge o abandono da ignorância, para que se compreenda que a SIDA é apenas uma doença causada por um vírus. É hora de afastar os fantasmas e verificar que o doente pode ser qualquer um. E que a SIDA é uma doença, não um castigo.

Logo, deve ser tratada e curada, não temida. A informação das formas pelas quais se transmite, em conseqüência, adquire grande importância. Afinal, através dela acaba-se com tentativas de isolamento, de segregação.

Para completar, uma sociedade que pretenda respeitar os Direitos Humanos do portador deve permitir à pessoa com SIDA a possibilidade de se assumir enquanto ser humano portador de um vírus. Chega de tratá-lo como um cadáver, de decretar sua morte civil. Só assim também ele poderá abandonar os estigmas que carrega e encarar sua individualidade, fator essencial para conquistar a cidadania.

Mas urge especificar melhor quais sejam esses direitos dos doentes de SIDA e portadores do VIH, sob risco de deixá-los sem direito algum.

O art. XXIII, 1, da Declaração dos Direitos Humanos, assegura que "todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego". E a Constituição diz, no art. 6º, ser o trabalho um direito social, garantindo, no art. 7º, I, ao trabalhador urbano ou rural uma "relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa".

Cabe ressaltar, segundo Márcio Bressan e Ricardo Giuliani Neto, que "a AIDS não se transmite, convivendo-se com portadores do VIH no cotidiano da atividade profissional" (p. 4). Em decorrência disso a Organização Internacional do Trabalho (OIT), através da chamada Declaração de Consenso, definiu que 1) a detecção do VIH não deve ser exigida, em hipótese alguma, para pessoas que solicitam emprego; 2) o trabalhador não está obrigado a informar ao empregador sobre sua situação relativa ao VIH; 3) a infecção por si só não significa limitação para o trabalho, e 4) a contaminação não configura motivo para demissão.

Tendo em vista tais fatos e disposições cumpre garantir ao doente de SIDA e ao portador do VIH a continuidade da atividade laboral, pois ela, antes mesmo de representar a preservação do meio de subsistência, representa a preservação da vida. Afinal, trata-se da estabilidade emocional da pessoa, situação elementar para a estabilidade físico-clínica do doente e portador. Para isso, conta-se com a difusão das informações corretas, desmistificadoras.

A questão da saúde do portador do VIH e do doente de SIDA é de suma importância. A cura da doença ainda não é conhecida, mas tratamentos eficazes já existem e devem ser assegurados a todos que deles necessitem. Esse direito encontra-se no art. XXV da Declaração de Direitos Humanos ("Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde [...]") e, no art. 196 da Constituição: "A saúde é direito de todos e dever do Estado [...]".

Logo, garantindo a saúde e existente um tratamento, o paciente deve ser atendido. Não cabem as alegações de que "o paciente com SIDA é caro" ou "o portador vai morrer mesmo". Essas falsas idéias surgem de preconceitos, da discriminação e do medo; não possuem sustentação científica e devem ser abandonadas. Não se admite a formação de critérios para atendimento, pois a toda pessoa deve ter garantida a assistência médica.

Neste sentido vem decidindo nossos tribunais:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PACIENTE DE SIDA OU AIDS. SAÚDE, DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO E DEVER DO ESTADO. MEDICAMENTOS. FORNECIMENTO. RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR PÚBLICO.

As regras da legislação ordinária não se sobrepõem a mandamento constitucional, e a doença grave, como a AIDS, causada pelo vírus HIV, não pode ficar aguardando o tratamento que depende de solução jurídica ou burocrática, que, via de regra, chega quase sempre depois do decesso da vítima.

A saúde é o bem maior do homem e dever do Estado, que deve ajudá-lo na senda de sua plena realização. Confirmada, em reexame necessário, a sentença remetida.

Recurso improvido.

(Apelação Cível nº 597087170, 1ª Câmara Cível do TJRGS, Porto Alegre, Rel. Des. Celeste Vicente Rovani. j. 18.06.97, DJ 08.08.97, p. 31).

SAÚDE, DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO E DEVER DO ESTADO. MEDICAMENTOS. FORNECIMENTO. RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR PÚBLICO.

1. As regras da legislação ordinária não se sobrepõem a mandamento constitucional e a doença grave, como a AIDS, causada pelo vírus HIV, não pode ficar aguardando o tratamento que depende de solução jurídica ou burocrática, que via de regra, chega quase sempre depois do decesso da vítima .

2. A saúde é o bem maior do homem e dever do Estado, que deve ajudá-lo na senda de sua plena realização.

Recurso improvido.

(Agravo de Instrumento nº 596245019, 1ª Câmara Cível do TJRGS, Porto Alegre. Rel. Des. Celeste Vicente Rovani. j. 21.05.97, DJ 04.07.97, p. 07).

Ações como estas perderam sentido após a edição da Lei Sarney (Lei federal nº 9.313/96), que garante aos portadores o acesso ao "coquetel". No que tange a este assunto devemos ressaltar a rapidez com que foi elaborada e aprovada, fruto da pressão das ONG´s - ressaltando ainda que com relação ao AZT, por exemplo, a distribuição nunca ocorreu por força de lei. Não obstante, algumas ações ainda devem ser impetradas, pois a lei determina critérios para o direito - que podem/devem ser discutidos.

A falta de recursos precisa ser combatida através de políticas sérias. O paciente com SIDA não pode ser abandonado pelo fato de estar acometido desta e não daquela doença. Ninguém é culpado do mal que o aflige. Logo, o doente com SIDA tem o direito de ser atendido; e os hospitais, os trabalhadores da área de saúde, o dever de atendê-los.

Se a discriminação parte até mesmo dos profissionais da área de saúde, pessoas teoricamente preparadas para atuar junto a doentes, imagine-se o que não ocorre com quem nunca teve noções a respeito de doenças, formas de infecção, etc. Os horrores cometidos por essa ignorância leva a conseqüências nefastas, como o desrespeito de um dos mais básicos Direitos Humanos, o de ir e vir.

Esse direito encontra-se consagrado na Declaração, art. XIII, 1 e 2, onde se garante a liberdade de locomoção dentro das fronteiras de cada Estado e o direito de deixar qualquer Estado e a ele regressar. A Constituição, se bem que com ressalvas, no art. 5º, XV, diz que "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz".

O que interessa analisar nessa questão é a concepção de SIDA formulada pelas autoridades e sua efetividade, no sentido de controlar a expansão da epidemia.

O cidadão - esta parece ser a posição geral dos países - pode retornar ao seu Estado pátrio, independentemente de sua sorologia positiva no referente à SIDA. Inobstante, muitos países negam vistos para pessoas portadoras do VIH, seja para turismo, estudos, participação em congresso, seja para imigração.

A esse respeito a OMS declarou que "desde que a infecção pelo VIH, já se encontra presente em cada região e, virtualmente, em toda cidade grande do mundo, certamente, a total exclusão de todos (estrangeiros ou cidadãos em circulação) não pode prevenir a introdução e expansão do VIH" (apud Sieghart, p. 48).

Assim, qualquer impedimento para a locomoção da pessoa portadora do VIH e doente de SIDA deve ser denunciado como violação dos Direitos Humanos, uma clara demonstração de ignorância por parte dos legisladores ou aplicadores da lei.

Não obstante, ela acontece, por exemplo, nos Estados Unidos.

Essa atitude repercutiu mal, sobretudo, em dois momentos: o primeiro aconteceu quando da detenção de Hans-Paul Verhoef no aeroporto onde desembarcava. Verhoef participaria de uma conferência internacional e agentes alfandegários descobriram AZT (remédio para a SIDA) em sua bagagem. Foi detido por constituir séria ameaça à saúde pública norte-americana (Tomasevski, p. 262).

O segundo ocorre por ocasião da VIII Conferência Internacional sobre SIDA, prevista para ser realizada em 1992 nos Estados Unidos. A legislação norte-americana, porém, proibindo a entrada de portadores, foi questionada e em o governo não se propondo a revogá-la, apenas a permitir a entrada de congressistas soropositivos, desde que tal condição fosse revelada no passaporte do portador resultou na transferência da Conferência, de Boston para Amsterdã.

No âmbito internacional, conforme análise da OMS, vige o Regulamento Internacional de Saúde, que impede a recusa de visto ou entrada de uma pessoa pela razão única de não apresentar certificado médico, declarando não ser ela soropositiva (Tomasevski, p. 258).

No Brasil, vige a Portaria nº 07/GM, do Ministério da Saúde, de 05 de janeiro de 1989, que não permite a estrangeiro que constitua risco à saúde pública, a entrada no território nacional. Qualificando como tal, entre outros, o portador de doença transmissível.

Para interpretação dessa Portaria, existe deliberação da Comissão Nacional de Controle e Prevenção da AIDS (publicada no Boletim Epidemiológico, nº 07, de 1990, do Ministério da Saúde). Conforme o documento, tendo em vista o quadro epidêmico da SIDA no país, a testagem de estrangeiro não é meio próprio para a contenção da doença, podendo-se, pois, concluir que eles não representam perigo à saúde pública nacional.

O direito à educação está previsto na Constituição Federal, art. 205, nos seguintes termos: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Quando surge a SIDA, entretanto, tudo se transforma; ela deixa de ser direito, e a sociedade foge do aidético. É o que se percebe no caso Sheila, quando uma escola particular de São Paulo se recusou a rematricular uma menina portadora.

Felizmente, após a reação inicial, a questão acabou esclarecida e, inclusive, emitiu-se a Portaria nº 796, assinada pelos Ministros da Educação e Saúde, de 29 de maio de 1992. Nela se proíbe a formação de classes especiais para portadores ou a necessidade deles declararem sua condição a professores, diretores ou outros membros da comunidade escolar e, recomendam-se, isso sim, a manutenção, a implantação e a ampliação de projetos educativos a respeito da SIDA.

Como nos casos anteriormente denunciados e em muitos outros (direito à privacidade, à liberdade, à segurança, etc), os portadores do VIH e doentes de SIDA vêm tendo, sistematicamente, seus direitos básicos negados. A legislação, por ser ampla, permite tais ocorrências, que poderiam ser evitadas com a democratização da informação. Isso, porém, não acontece; afinal, o medo, o terror da contaminação pelo vírus da SIDA se prestam a múltiplas funções, entre as quais, o fortalecimento do aparelho repressivo do Estado.

Cabe, portanto, para o enfrentamento da terceira epidemia, reações "tão fundamentais para o desafio global da SIDA quanto a própria doença" (apud Daniel e Parker, p. 13) uma tomada de posição quanto à atual forma de ação do Estado, repressiva e não educativa. Precisa-se de um novo Estado, que abandone o espírito de competição pela solidariedade, que troque a repressão pela prevenção.

Para isso, abandone-se o interesse imediato e se passe a ver o futuro, se prepare uma verdadeira revolução dos costumes para que o homem veja no seu semelhante um amigo, um parceiro e nunca um adversário. Incentivem-se a reflexão sobre atos do dia-a-dia, as relações com o outro, seja o marido, a esposa, os pais, filhos, seja os vizinhos.

Dessa forma, transformar-se-ão as leis e, mais do que isso, prevenir-se-á novas gerações do vírus da ignorância, do medo, - em relação à SIDA ou à outra doença qualquer.

Para finalizar essa seção, dois aspectos essenciais no que diz respeito à relação AIDS e Direitos Humanos: o isolamento e a testagem compulsória. Importante ressaltar e assumir que as verdades, nesses questionamentos, partem de opções político-filosóficas pelo discurso repressivo ou preventivo.

Sobre o autor
Dani Rudnicki

mestre em Direito pela Unisinos, professor de Direito Penal na Universidade de Cruz Alta (RS) e Faculdades Reunidas Ritter dos Reis (RS), conselheiro do Movimento de Justiça e Diretos Humanos/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUDNICKI, Dani. AIDS e direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1875. Acesso em: 26 dez. 2024.

Mais informações

Este texto resume idéias do livro do autor AIDS e Direito: função do Estado e da Sociedade na prevenção da doença (Editora Livraria do Advogado, 1996) e nos artigos SIDA: a função do Direito Penal (Livro de estudos Jurídicos, Rio de Janeiro, nº 6, 1993) e É necessário criminalizar a transmissão da AIDS? (Boletim IBCCrim, São Paulo, maio, 1998).

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