Dispunha o art. 25 da Lei nº. 10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento – que "Armas de fogo, acessórios ou munições apreendidos serão, após elaboração do laudo pericial e sua juntada aos autos, encaminhados pelo juiz competente, quando não mais interessarem à persecução penal, ao Comando do Exército, para destruição, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas" (grifamos).
Com o advento da Lei nº 11.706/2008, esse dispositivo passou a ter a seguinte redação: "As armas de fogo apreendidas, após a elaboração do laudo pericial e sua juntada aos autos, quando não mais interessarem à persecução penal serão encaminhadas pelo juiz competente ao Comando do Exército, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas, para destruição ou doação aos órgãos de segurança pública ou às Forças Armadas, na forma do regulamento desta Lei".
Acreditamos que o legislador disse menos do que queria, dando ensejo à interpretação extensiva desse dispositivo, por não abordar a situação das armas, acessórios ou munições pertencentes ao lesado ou a terceiro de boa-fé, deixando, assim, margem à obscuridade no que toca a essa questão, intrigando magistrados que se deparam com situações dessa natureza no caso concreto.
É que se interpretarmos literalmente esse dispositivo, dar-se-á a entender que todas as armas apreendidas devem, sem exceção, ser remetidas ao Exército, para destruição (e assim, serão perdidas em favor da União).
Ocorre que, em sentido contrário, dispõe o art. 91, II, a, do CP, prevendo, como efeito da condenação, a perda em favor da União, dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, "ressalvado o direito do lesado ou terceiro de boa-fé".
Encontramos-nos diante de um conflito aparente de normas, cuja solução é dada pelo próprio ordenamento jurídico e pelo bom senso.
Apesar de ser norma posterior, o art. 25 do Estatuto do Desarmamento não prevalece sobre o art. 91, II, do CP, por ser aquela norma especial e, em consequência, não derroga a norma prevista na parte geral do Código Penal (art. 91, II, a, CP), consoante estabelece o art. 2º, § 2º da LICC – Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42): "A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior" (grifo nosso).
Isso significa que o art. 25 da Lei nº. 10.826/2003 só será aplicado quando não prejudicar o lesado ou o terceiro de boa-fé, pois lex especialis non derrogat generalis ("a lei especial não derroga a lei geral").
É o caso, por exemplo, daquele que teve furtada (sem culpa sua) ou roubada arma de fogo, a qual vem a ser apreendida ilegalmente em poder de outrem. Na hipótese, deve a arma ser restituída a seu legítimo proprietário.
Ressalte-se, ainda, que o art. 25 da Lei n. 10.826/2003, se interpretado literalmente, ou seja, se não ressalvar o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé, conflitará com o direito de propriedade, estabelecido constitucionalmente no art. 5º, XXII, da CF/88.
O citado comando legal da "Nova Lei das Armas de Fogo" merece alteração legislativa para esclarecer seu contexto, pois, na prática, constatamos divergências entre os juízos de primeira instância com relação ao destino das armas de fogo que instruíram inquéritos policiais ou processos criminais.
No caso de absolvição, vale o mesmo entendimento: se o acusado possuir o registro da arma em seu nome (ou no da corporação, se policial), bem como o porte, não deverá ter sua arma perdida em favor da União.
Cite-se, como exemplo, caso ocorrido perante a 8ª Vara Criminal da Comarca de Natal/RN, em que um policial que estava portando sua arma ilegalmente (por não possuir o registro da arma em seu nome ou no da corporação e, ainda, portar arma ostensivamente, em local de grande aglomeração de pessoas – "Carnatal" - e fora de serviço), mesmo após ser condenado por porte ilegal de arma, obteve a restituição de sua arma depois de regularizar o registro da mesma (processo n. 001.04.026129-9, julgado em 17.10.2006, Juiz Ivanaldo Bezerra Ferreira dos Santos).
Diferente seria o caso se, por exemplo, ocorresse uma absolvição ou extinção de punibilidade e o acusado, mesmo sendo proprietário da arma de fogo apreendida, não possuísse autorização para portá-la ou o seu regular registro, caso em que sofreria a declaração de perda de sua arma, pois esta seria "coisa cujo uso, porte ou detenção constituiria fato ilícito".
Em suma, nem sempre as armas apreendidas serão perdidas para a União, devendo ser observados os ditames do art. 91, II, a, do CP.
Os produtos de utilização proibida (produtos falsificados ou adulterados, moeda falsa e substâncias entorpecentes, por exemplo), por sua vez, nem são restituídos ao lesado ou ao terceiro de boa-fé nem são perdidos em favor da União, pois há obrigatoriedade de inutilização ou destruição dos mesmos.
Conclui-se, assim, que se dermos interpretação restritiva ao art. 25 da Lei nº. 10.826/2003, no sentido de se decretar a perda de todos as armas de fogo apreendidas e, consequentemente, destiná-las ao Comando do Exército, essa interpretação não estará conforme à Constituição.
REFERÊNCIAS:
NUCCI, Guilherme de Souza. CÓDIGO PENAL COMENTADO. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. LEIS PENAIS ESPECIAIS COMENTADAS. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 2003.
BRASIL. CÓDIGO PENAL. Disponível em: www.presidencia.gov.br. Acesso em: 17.06.2009.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Disponível em: www.presidencia.gov.br. Acesso em: 17.06.2009.
BRASIL. LEI Nº 10.826/2003. Disponível em: www.presidencia.gov.br. Acesso em: 17.06.2009.
BRASIL. LEI Nº 11.706/2008. Disponível em: www.presidencia.gov.br. Acesso em: 17.06.2009.
BRASIL. Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil). Disponível em: www.presidencia.gov.br. Acesso em: 17.06.2009.