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Blade Runner.

Estado de Direito Penal: o caso do Caçador de Andróides

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Agenda 06/05/2011 às 17:06

O intransigente direito à vida

Era isso o que os revelava, além da inteligência e da sagacidade aguçadas, reagiam violentamente quando instigados em seu "lado emocional"; era seu ponto de desequilíbrio: provocava-se o "sentimento de maldade" e daí a instabilidade emocional. Apesar de bastante estimulados e fortes (como o afeto e amor que nutriam uns pelos outros: Roy beija Pris, já morta por Deckard, empurrando-lhe a ponta da língua para dentro da boca), os sentimentos eram incontrolados. Talvez fossem incontroláveis exatamente pela força que guardavam como "potências". De todo modo, os replicantes não eram capazes de "esconder esses sentimentos e emoções" — apesar de irônicos e do bom humor, estavam "procurando por metamorfoses", pela longevidade necessária para vivê-las e apreciá-las.

Desse modo, vemos que o lema estava correto ("Mais humanos, do que os humanos"), porque seu sistema límbico não lhes imprimira a marca nefasta do cinismo. A vida não lhes era indiferente, ainda que fossem "máquinas genéticas".

A par disso, o modelo de Estado Cientificista apresentado em todas as edições, aplicava-se em profundo desenvolvimento de ciência e tecnologia, mas também em sua correção (ou remoção, se não fosse possível utilizar seus engenhos na colonização de territórios, como escravos). A todo instante, os cidadãos de Los Angeles eram bombardeados por imagens e mensagens convidativas a tentar a sorte em colônias extra-terrestres: "Terras douradas para a exploração". O modelo de Estado, portanto, era um misto de Estado Penal e Estado Cientificista.


Diálogos de vida e morte

Roy segura um pombo branco na mão esquerda, a outra está perfurada por um prego, que ele próprio introduzira para "retardar" o retesar dos dedos e que lhe davam o sinal da morte iminente. Recua alguns passos e sala de um prédio a outro e é com esta mão perfurada e avariada que ele apanha Deckard, o caçador, e evita sua queda para a morte certa.

Diante de seu oponente e algoz "humano" (?) Roy lhe diz: "Viver com medo é uma experiência e tanto, não é? É o mesmo que ser escravo" (grifos nossos). Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam [descreve cenas de horror, de brutais combates em outras galáxias]. Vi a luz do farol cintilar no escuro no portal de Tannhüser. Todos esses tormentos se perderam no tempo como lágrimas na chuva. HORA DE MORRER" (grifos nossos). Leon, antes de ser abatido por Rachael, também pergunta a Deckard se não é horrível viver com medo. No fim, todos os seis replicantes insurretos estão mortos (dois foram eletrocutados), mas Deckard matou apenas as duas mulheres.

Roy brinca de gato e rato, numa contagem regressiva de 1 a 10, antes de ir atrás de Deckard. Mas, antes se pinta com o sangue de Pris, como se fosse uma pintura de guerra. Interrompe a contagem em oito, depois de uivar como um lobo caçador: as posições haviam sido invertidas. No meio da "caçada", Roy ainda demonstra humor (apesar de seus sistemas apresentarem falhas), quando passa a cabeça através de uma parede de azulejos quadrados, com aparência de preto e braço.

Por fim, o replicante, como que adormecendo, abaixa a cabeça e morre sentado na posição de Lótus, com as pernas entrelaçadas. Seguindo-se à inevitável e "programada" morte de Roy, Deckard percebeu o gesto humanista do andróide — aliás, em tudo superior a ele e a todo "o aparato estatal de repressão" que deveria dar segurança aos cidadãos. A exposição da "consciência narrativa" revelou seus pensamentos (em 1982 e 1992):

Eu não sei porque ele salvou a minha vida. Talvez naqueles momentos finais ele amou a vida mais do que nunca. Não apenas a vida dele, a vida de qualquer um. A minha vida. Tudo que ele queria era o mesmo que o resto de nós quer. De onde venho? Para onde vou? Quanto eu tempo tenho? E tudo que eu pude fazer era sentar ali e vê-lo morrer.

Na edição de 2007 não há esta narração. Mas, na cena seguinte, Deckard, exausto, com dois dedos quebrados, ainda houve do assessor japonês da polícia, referindo a Rachael, a replicante Nexus 6, mas não violenta, por quem se apaixonara: "Que pena que ela não viverá. Mas quem vive".

Em todas as versões, o caçador volta para pegar Rachael e fugir. Cuidadosamente, como um soldado, põe-se em guarda para entrar no apartamento e aí temos o suspense de se saber se ela ainda vive ou se já teria sido abatida: dormia tranqüilamente, com o rosto coberto. Ele a beija levemente no rosto e saem para pegar o "elevador inteligente" – ao transpor meio corredor, o pé de Deckard esbarra em um origami: era um unicórnio.

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Nas edições de 1992 e de 2007, o mesmo cavalo branco de chifre na testa que lhe aparece em sonhos, deixado ali como um sinal, pelo policial oriental, incitando-lhe a dúvida de que também era replicante. Os replicantes tinham memórias implantadas de outras pessoas, como se fossem suas, para dar-lhes a sensação de passado, origem, filiação e pertencimento. Também vinham acompanhados de um kit de fotografias de famílias. E se o policial sabia de seu sonho, é porque lera em sua ficha. Neste sentido, por que o piano de Deckard estaria repleto de fotos? Quem sabe ao certo?

Mas, há uma mudança conceitual, se compararmos com as edições anteriores. Nas edições de 1982, Deckard foge com Rachael, por uma auto-estrada (para o norte?), longe das chuvas ácidas, enquanto sua consciência (como narrador) nos diz que havia conversado com Tyrell e que já sabia que Rachael não tinha o dispositivo que encurtava a "vida útil". Na saída do apartamento, Deckard também esbarra no origami mas, como ele não "sonhava" com o unicórnio, há apenas a sugestão de que Gaff estivera lá, mas que preservara a vida da moça. Nas edições de 1982, a Terra ainda tinha grandes áreas verdes e dias ensolarados. Antes da fuga, Deckard pergunta a Rachael se ela o ama e se cofia nele.

Deckard é replicante ou a vida é que é repleta de artificialidades? Deckard cede à libido de um homem solitário ou se apaixona por uma replicante que luta para obter um mínimo de "integridade emocional"? Ele se apaixona por alguém que quer ser humano?Por que, afinal tanta mortandade e crueldade?

Há uma metamorfose da caça em caçador, de andróides em humanos. Os replicantes morreram para provar sua luta por reconhecimento — neste caso, pelo reconhecimento do direito à vida.


2ª PARTE

Estado de Direito Penal

Utiliza-se muito a expressão Estado Penal para designar a crescente privatização do serviço de segurança pública. Como mais um dos negócios do capital globalizado, "presos extraditados aumentam a margem de lucro", presídios já nascem privatizados, mas financiados pelo Estado: são "pedágios de gente infratora, pagos pela sociedade civil".

Assim, se os investimentos se destinam a outros "setores sociais", também reflui significativamente o aporte que outrora fora devido ao Estado Social, criado nos anos de 1920. Todos sabem que o MENOR investimento nas áreas sociais implica, é óbvio, no MAIOR abandono das populações pobres e miseráveis. Portanto, se não é correto dizer que a pobreza por si só gera a violência, não é incorreto pensar que os sobreviventes da marginalidade social, logo se encontrarão, queiram ou não, com a marginalidade da lei.

Logo, com a fuga do Estado, cresce o "movimento lei e ordem", pedindo-se leis eficazes e ações exemplares e, lógico, penas duras como prisão perpétua ou de "antecipação da morte". Mas, ainda que seja fato que a omissão do Estado gera o crime, de todo tipo, vê-se igualmente o aumento do terror (do Estado e fora dele).

Como vimos, no Estado Penal ocorre a negação de uma função clássica do Estado Moderno: a segurança pública. A mesma segurança pública que justificou o discurso da soberania nacional, da necessidade da organização e da centralização política que protegesse o cidadão e fortalecesse o Estado. Esta "Razão de Estado" levou à expansão ultramarina e alimentou e alargou o capital e o território do próprio Estado-Nação.

Neste sentido, o que chamamos aqui de Estado de Direito Penal reúne o que há de pior no passado e no presente. A repressão, a tortura e a política do terror ocorrem, diariamente, com e sem conhecimento do Estado. A sociedade em parte é conivente, porque alimenta o discurso da "lei dura e da punição exemplar". Em São Paulo, por exemplo, como resposta ao terror, são instaladas dez mil câmeras de vigilância por mês.

Além da espoliação dos lucros do crime, que seria a base do Estado Penal, ainda se legaliza o uso, supervisionado pelo Estado, de medidas de exceção. Isto ocorre toda vez que o Estado de Direito se metamorfoseia em Estado de Exceção. Desta "consternação do direito", são exemplos clássicos: o patriotic act, editado depois do 11 de setembro, suspendendo direitos individuais, nos EUA; a prisão de Guantânamo, em Cuba, com "terroristas presos sem direito de defesa".

Ainda nos EUA, jovens de 16 anos são condenados à prisão perpétua, com mais 20, 25 anos (sic), em presídios de segurança máxima: chamados de Supermax. Esses jovens são denominados pelo Judiciário como "super-predadores", a exemplo do nosso Champinha. Na Inglaterra, prende-se um suspeito (preferencialmente acusado de terrorismo) por até quatro semanas, mesmo sem acusação formal.

Em 2008, a França vai usar o DNA como identificador e codificador de imigrantes (in)desejáveis, aproximando a realidade da ficção. A técnica deve se valer do chamado diagnóstico genético pré-implantatório (DPI), para futuramente também auxiliar na "detecção e seleção" de indivíduos que "sirvam ou que melhor contribuam" à França. A terapia genética descobriria (para prevenir) a formação de "indivíduos indesejáveis ao Estado e à segurança nacional" ou, então, selecionaria dentre os "melhores e mais aptos à produção".

No Brasil, o mais típico caso de Estado Penal é a lei de Crimes Hediondos, que desconsidera frontalmente a Constituição (a exceção se impõe ao direito); assim como uma declaração do Governo do Estado do Rio de Janeiro, de que uma vida em Copacabana vale mais do que outra da Rocinha ou da Coréia. Um morro chamado Coréia já diz tudo. Do mesmo modo, o Complexo do alemão é um "bairro de pobres sitiado", pelo contínuo processo de ocupação da polícia e dos militares – com o uso do "caveirão". Mas, esses dados nos ajudam a pensar que a criminalidade que se abate sobre "populações negras", pelo Brasil afora, é uma herança da escravidão, ou seja, um crime do Estado.

Em suma, o Estado de Direito Penal é só o emprego de meios próprios do Estado de Exceção ("direito de negação", suspensão de direitos fundamentais), além de subtrair-se às atividades inerentes ao Estado Democrático de Direito (saúde, educação), para atender aos anseios do neoliberalismo: privatização da segurança e do direito à vida. Na raspa do tacho, são simples reinvenções, re-nomeações modernas que procuram ofuscar o princípio que movia a Lei de Plenos Poderes aprovada por Hitler, no auge da Solução Final. A Solução Final não está em Blade Runner, mas parece um mal que não sossega, que nos procura ao longo de toda a história.

Curiosamente, os crimes menos punidos são os de omissão e de corrupção pública. Hoje, os "homens de má conduta" são tratados de outra forma, bem diferente, do que eram no passado, quando eram chamados de RACCA: "homem de má conduta". O termo era usado pelos hebreus que, com desprezo, repetiam a palavra escarrando e desviando a cabeça.


Considerações Finais

2008: a realidade vai copiar a ficção

Blade Runner trouxe o conceito de "obra aberta" para o cinema, uma vez que foi reeditado três vezes: uma versão para cinema internacional (1982) e uma versão do diretor (1992). Em dezembro de 2007, foi lançada uma terceira versão que está sendo considerada como definitiva e autorizada pelo diretor Ridley Scott, contendo cenas estendidas e efeitos especiais.

Na essência, Blade Runner opõem-se à catástrofe ética de outro filme de ficção, Laranja Mecânica, e sua inigualável insensibilidade e desprezo pelo Outro. Este é de 1971 e foi dirigido por Stanley Kubrick. O filme traz Alex como protagonista e líder de uma gangue que se diverte com a "ultraviolência, estupros e música clássica" (especialmente Beethoven). Seus crimes o levam à prisão e a um tratamento de reabilitação: como cobaia. Porém, no fim, o delinquente volta a ser o que sempre foi, superando o condicionamento recebido. Ironicamente, o enredo se desenrola em 2007.

Por contraste, Blade Runner é tido como crítica e antítese à banalização da violência, do sadismo. Aliás, numa das cenas finais, fica claro este embate entre "o caçador de andróides" e "o reconhecimento do humanismo": o direito à vida como aposta para o futuro. Quando o replicante Roy (o líder) segura pelas mãos, do alto de um prédio, o seu próprio matador (Harrisson Ford, no papel de Deckard) e, em seguida morre, o que faz é nos ensinar o humanismo. Apenas uma cena em que o replicante foi mais piedoso do que foi seu algoz e caçador, em todo o filme, nos faz pensar e lembrar que restam poucas coisas importantes e caras à humanidade (em 2007 ou 2019).

O mesmo sentido de humanização ("tornar-se humano") fora apresentado por Isaac Asimov em O homem bicentenário e suas três leis da robótica ou, se quisermos simplificar, sua crença na direção do bom senso. No romance, bem melhor do que o filme, o robô Andrew (no filme, interpretado por Robin Williams) quer deixar de ser coisa, objeto, mesmo que deixando a possível perfeição da máquina. O robô prefere os riscos e as incertezas da humanização, decorrente de sua "descoisificação", a uma suposta perfeição indiferente à dor do mundo. Andrew está na contramão da história.

Podemos aprender muitas coisas com a vida, com a realidade cotidiana – mas é uma pena que nem sempre se aprenda o básico: o próprio sentido da vida, a luta, a perseverança por uma destinação humana. Não só genericamente humana, mas substancialmente humana. O curioso e irônico, entretanto, é que muitas vezes aprendemos este sentido substancial da vida, não pela realidade (se nos massifica ou se é cruel demais com alguns), mas pela ficção. Quando, mais precisamente, a ficção é dotada de uma realidade que a vida já viu se esvaziar do que lhe fora anteriormente substancial. Ao menos para a maioria, o que se foi, mas que se luta desesperadamente para recuperar é um tipo de completude humanista. Ao menos para a minoria, esta é uma ânsia enorme e sufocante (se negada) de se tornar humano, substancialmente humano, e assim se completar na liberdade que o humanismo nos oferece.


Bibliografia

ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre : L&PM, 1997.

TESTART, Jacques. Biotecnologia: O fantasma do apartheid genético.Le Monde Diplomatique. Em: http://diplo.uol.com.br/2007-12,a2077, 12/2007.


Notas

  1. http://www1.uol.com.br/diversao/afp/2004/08/25/ult32u9060.shl.
  2. Aqui, o robô quer deixar de ser coisa, objeto, mesmo que levado à perfeição possível a uma máquina, ou seja, prefere os riscos e incertezas da humanização, de sua própria "descoisificação".
  3. Numa referência a Decartes.
  4. Originalmente, do romance de >
Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Blade Runner.: Estado de Direito Penal: o caso do Caçador de Andróides. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2865, 6 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19052. Acesso em: 16 nov. 2024.

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