A presente análise tem como paradigma o pensamento de Antonio Gramsci em sua obra "Cadernos do Cárcere", Volume Três, a qual analisa Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política. O pano de fundo desta análise visa correlacionar a Moderna Maquiavelística e o Teorema das Proporções Definidas, de Antonio Gramsci, com a Lavagem de Dinheiro e Remessa Ilegal de Divisas. Ao explicitar algumas ideias do que seria a Nova Maquiavelística e o Teorema das Proporções Definidas, Gramsci esclarece elementos sociológicos que se amoldam ao fenômeno da Lavagem de Dinheiro, a Remessa Ilegal de Divisas e seus agentes interlocutores.
Inicialmente, para Gramsci, o caráter utópico do Príncipe consiste no fato de que o "príncipe" não existia na realidade histórica, não se apresentava ao povo italiano com características de imediaticidade objetiva, mas era pura abstração doutrinária, o símbolo do poder, do condottiero ideal. Seriam os elementos passionais, míticos, contidos em todo o pequeno livro, com movimento dramático de grande efeito, sintetizam-se e tornam-se vivos na conclusão, na invocação de um príncipe "realmente existente".
O moderno príncipe, o mito-príncipe não poderia ser uma pessoa real, um indivíduo concreto, só poderia ser um organismo, um elemento complexo da sociedade no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Para Gramsci:
"O moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa de fato que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência próprio moderno Príncipe e serve ou para aumentar seu poder ou para opor-se a ele. O Príncipe toma o lugar, nas conseqüências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno ou de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume." [01]
Na verdade, nas entrelinhas do pensamento de Gramsci, a nova maquiavelística estaria em atividades a par do direito, incluindo aquelas atividades que hoje são compreendidas na fórmula do "indiferente jurídico" e que são de domínio da sociedade civil, que atua sem "sanções" e sem "obrigações" taxativas, mas que nem por isso deixa de exercer uma pressão coletiva e de obter resultados objetivos de elaboração nos costumes, nos modos de pensar e de atuar, na moralidade, etc.
Nesse sentido, o príncipe seria, por exemplo, a empresa que atua de modo ilegal em paraísos fiscais, utilizando-se abusivamente dos Tratados e Convenções Internacionais como mecanismo para lavagem de dinheiro e a remessa ilegal de divisas. O príncipe seria o político que escolhe um agente administrativo ímprobo para gerenciar fundos de pensão e, por intermédio de aplicações enviesadas na bolsa de valores, fazer lavagem de dinheiro. Portanto, a nova maquiavélica seria a arte de formular inverdades com lógica e verossimilhança, conhecida por sofisma, não obstante resultar sistematicamente em grave desvio de realidade.
Já o Teorema das Proporções Definidas pode ser empregado com utilidade para tornar mais claros e mais bem esquematizados muitos raciocínios relacionados à ciência da organização (o estudo do aparelho administrativo, da composição demográfica, etc) e também à política em geral (nas análises de situações, das relações de força, no problema dos intelectuais, etc) [02]. É evidente que se deve sempre recordar que o recurso do teorema das proporções definidas tem um valor esquemático metafórico, isto é, pode ser aplicado mecanicamente, já que nos agregados humanos o elemento qualitativo (ou de capacidade técnica e intelectual de cada um de seus componentes) tem uma função predominante, mas não pode ser mensurado matematicamente.
Politicamente, para Gramsci, o teorema pode ser aplicado aos partidos, aos sindicatos, às fábricas e empresas, para ver como cada grupo social tem uma lei própria de proporções definidas, que varia de acordo com o nível de cultura, independência mental, espírito de iniciativa e senso de responsabilidade e de disciplina de seus membros mais atrasados e periféricos [03]. Seria possível usar metaforicamente o teorema das proporções definidas para compreender como um ‘movimento’ ou tendência de opiniões se torna partido, isto é, política eficiente do ponto de vista do exercício de um determinado poder (estatal ou privado). Seria a forma de se utilizar legalmente os meios para se alcançar os fins, que, em regra, seria ilegal.
Faz-se, agora, uma analogia ao "Príncipe", famosa obra de Nicolau Maquiavel. Esta obra política suscitou muitas polêmicas, com interpretações problemáticas, debatidas, em certos momentos obscuros e paradoxais. A obra levantou questões fundamentais, como a conquista do poder, a preservação do mandato e os cuidados para não perdê-lo, a obtenção de alianças, negociações e acordos políticos, relações entre Estado e povo, corrupção, nepotismo e favorecimento, bem como outros temas secundários não menos importantes. A ideia do "Príncipe" é bastante conhecida pelo cínico amoralismo traduzido por: "os fins justificam os meios", senão vejamos:
"Trate, pois, o príncipe de conservar o poder; os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo sempre se deixa levar pela aparência e pelo resultado das coisas; e no mundo só existe o vulgo e a minoria não tem lugar quando a maioria tem onde se apoiar. Triunfai sempre, pouco importando como, e sempre terás razão." [04]
Assim, por exemplo, um agente público, enquanto "Príncipe", não mede consequências para alcançar a sua finalidade precípua, qual seja, locupletar-se com o patrimônio público, utilizando-se, inclusive, de mecanismos para reciclar dinheiro público. Utiliza-se inadvertidamente a teoria realista de Maquiavel, que visava implantar uma nova ordem dominada pela liberdade moral e física e capaz de tornar o homem despido de seu natural sentimento de inferioridade, para auferir-se do patrimônio público em detrimento da sociedade. As degenerações eventualmente enfrentadas pela Administração Pública são provocadas pela degeneração da virtude em corrupção, tanto por parte dos agentes públicos, como de parte da população.
A questão da moderna maquiavelística e o teorema das proporções definidas pode ser melhor evidenciadas por Schopenhauer, que "aproxima a lição de ciência política de Maquiavel daquela do mestre de esgrima que ensina a arte de matar (mas também de não se deixar matar) mas nem por isso ensina a se tornar sicário ou assassino" [05]. Em outras palavras, o agente que faz a lavagem de dinheiro se utiliza desse expediente por intermédio de mecanismos que podem, muitas vezes, não ser considerados ilícitos. Trata-se, parafraseando Gramsci, da arte de matar sem se tornar assassino.
Enfim, há mais relação entre crise da Justiça e crise econômica do que supõe a maioria de nossa classe dominante. O Direito é a base sobre a qual se assenta o regime democrático. Quando falha, tudo mais sofre as consequências. Esse eixo de gravidade sempre está presente em crises econômico-financeiras, que tem por base uma atitude de negligência do Estado em relação ao Direito e seus fundamentos.
A Lavagem de Dinheiro e a Remessa Ilegal de Divisas, como moderna maquiavelística e a consequente teorema das proporções definidas, expõem anomalias e perversões do sistema jurídico pátrio, permeando todo o tecido moral, social e cultural do país. A análise da moderna maquiavelística e do teorema das proporções definidas, no âmbito do tema "Lavagem de Dinheiro", evidencia qual seria o bem jurídico tutelado, conquanto se busque alcançar a proteção de interesses metapessoais ou interindividuais, evitando, por conseguinte, a erosão do sistema democrático com o comprometimento do destino econômico de toda a sociedade.
A Lavagem de Dinheiro, enquanto crise da democracia, abala a vida social, ensejando o descrédito popular contra a classe dirigente em geral, minando os princípios básicos do Estado Democrático de Direito. A crise da democracia, perpetrada em fenômenos como a Lavagem de Dinheiro, é a incessante discussão do certo e do errado, do bem e do mal, proposta por Nietzsche: "Na verdade, o Eu astuto, o Eu egoísta, que procura seu bem no bem de muitos, este não é a origem do rebanho, mas a sua destruição". [06]
Notas
- . GRAMSCI. Antonio. Cadernos do Cárcere – Volume 3 – Maquiavel e Notas Sobre o Estado e a Política. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002, p. 19.
- . GRAMSCI. Antonio. Op. Cit., p. 83.
- . GRAMSCI. Antonio. Op. Cit., p. 85.
- . MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe: com notas de Napoleão Bonaparte – 2 ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, pág. 115.
- . GRAMSCI. Antonio. Op. Cit., p. 26.
- . NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Editora Martin Claret, 1999, p. 59.