A extinção do casamento ou da união estável, quando presente a figura do filho menor, geralmente traz como conseqüência a atribuição da guarda a um dos genitores, e ao outro a obrigação de prestar alimentos.
Não raro, entretanto, são os casos em que o alimentante percebe que os recursos pagos a título de pensão alimentícia, em favor do filho, são, em sua grande parte, usufruídos pelo(a) ex-cônjuge ou ex-companheiro(a), financiando o ostracismo e desviando a real finalidade da prestação.
Prescreve o art. 1.583, §3º, do Código Civil, que a guarda unilateral obriga o genitor que não a detenha a supervisionar os interesses do filho. Questão das mais tormentosas é a discussão acerca de como exercer esta supervisão, bem como o direito (ou não) do alimentante, que paga prestação alimentar em favor de filho menor, exigir do genitor que detém a guarda (e a administração dos valores) a devida prestação de contas.
Nossos tribunais têm, reiteradamente, entendido que faltaria ao alimentante interesse de agir, uma vez que a alegação de que a prestação paga não está sendo utilizada em
verdadeiro proveito do menor, não traria qualquer vantagem ao pleiteante, em razão da irrepetibilidade dos alimentos – impedindo o surgimento de eventual crédito em favor do alimentante – e pelo fato deste não poder eximir-se da obrigação, o que só se admite pelos meios processuais próprios para este fim [01].
Entretanto, sopesando os institutos jurídicos que cercam o tema, somos forçados a desenvolver raciocínio jurídico que nos apresenta alternativa viável. Induvidoso que a obrigação de prestar contas incumbe a todo aquele que administra bens ou interesses de terceiros. DONIZETTI assim se manifesta sobre o assunto:
"Todo aquele que, de qualquer modo, administra bens ou interesses alheios, por força de relação jurídica legal ou contratual, como, por exemplo, o tutor, o sucessor provisório, o mandatário, o administrador, o inventariante (arts. 33, 668, 1.755 do CC e 991, VII, 995, V, e 728, III, do CPC), está obrigado a prestar contas." [02]
O art. 914, do CPC, determina que a ação de prestação de contas caberá a quem tiver o direito de exigi-las (inciso I) ou a obrigação de prestá-las (inciso II). MONTENEGRO FILHO [03] destaca, por sua vez, que a ação de prestação de contas pode ser proposta em inúmeras situações, enfatizando, porém, que a relação de hipóteses legais que autorizam o ajuizamento da mencionada ação não é exaustiva, podendo ser identificadas outras situações nas quais seja perfeitamente cabível seu manejo.
Ora, inegável que o genitor que recebe valores de pensionamento alimentar, devidos pelo alimentante em favor de filho menor, administra interesses alheios, estando, portanto, sujeito à obrigação de prestar contas.
Surge, nesse ponto, a questão acerca da legitimidade ativa no ajuizamento da ação, uma vez que os valores despendidos a título de prestação alimentar, ao serem pagos, saem do domínio do alimentante. Em outros termos: aqueles valores não são do alimentante, mas sim do alimentado, não podendo o primeiro exigir a prestação de contas, por falta de legitimidade ativa. Esta "carência de condição da ação", inclusive, também tem sido utilizada para decisões judiciais que negam procedência ao pedido ajuizado pelo alimentante [04].
Por óbvio, comungamos desse entendimento: de fato, o alimentante não pode, em nome próprio, requerer prestação de contas do genitor que administra a pensão alimentícia do filho menor, eis que os valores despendidos são do menor, e não dele – alimentante.
Necessário, todavia, avaliar a situação por outro prisma, buscando encontrar uma solução para a querela. É preciso esclarecermos, nesse passo, que o poder familiar (até o Código Civil de 1916 denominado pátrio poder) é "o conjunto de deveres e obrigações dos pais em relação aos filhos menores não emancipados e aos bens destes, decorrentes da relação de parentesco existente entre eles." [05]
O poder familiar é exercido – geralmente pelos genitores – em igualdade de condições, com o fim de resguardar os interesses e proteger os filhos. Havendo divergência entre pai e mãe, quanto a estes interesses, a solução poderá ser submetida ao Poder Judiciário, de modo a resguardar a prole. É o que prevê o parágrafo único do art. 1690, do Código Civil.
Pois bem. O art. 1632, do CC/2002, indica claramente que a extinção do casamento ou a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos, ou seja, a designação de um dos genitores como guardião de filho menor (em razão da separação judicial do casal, do divórcio ou da dissolução da união estável) não retira do outro genitor as prerrogativas inerentes ao poder familiar. Neste sentido, CARVALHO FILHO4 afirma::
"Considerando-se que o poder familiar é exercido pelos genitores, o artigo em estudo dispõe que, sobrevindo a dissolução do matrimônio ou o fim do relacionamento dos companheiros pela separação, a titularidade do múnus permanecerá igual e simultânea a ambos os pais, ainda que somente um deles detenha a guarda do filho menor. Nessa hipótese, o genitor que não seja guardião do filho exercerá o direito de visita, mantendo a cotitularidade do poder familiar, com todas as atribuições inerentes ao instituto."
DINIZ [06] discorre sobre o tema de modo ainda mais esclarecedor:
"... os ex-cônjuges continuam como titulares do poder familiar, mas, se a mãe foi incumbida, por ter melhores condições, de ter sob sua guarda os filhos menores do casal, há deslocamento do exercício do poder familiar, porque ela precisa exercê-lo, o que não significa que o pai deixa de ser o titular conjunto, uma vez que, se ele discordar de alguma decisão da mãe, poderá recorrer ao magistrado para pleitear sua modificação."
Por sua vez, o art. 1.634, CC/2002, estabelece os deveres inerentes aos pais, no que tange ao exercício do poder familiar. Em seu inciso V, dispõe que é dever dos pais representarem os filhos menores de 16 anos nos atos da vida civil, e assistir aqueles com idade superior a 16 anos.
Promovendo-se uma interpretação conjunta dos dispositivos legais, conclui-se, sem maiores dificuldades, que mesmo o genitor que não detém a guarda do filho menor, pode representá-lo nos atos da vida civil e, obviamente, nas ações judiciais em que for titular o menor, nos termos do que prescreve o art. 8º, do CPC.
Induvidoso que, como legítimo credor da prestação alimentícia, tem o menor o direito à prestação de contas, eis que tem seus interesses (e seus recursos financeiros) administrados por terceiros. Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL - DECISÃO QUE DETERMINA A EMENDA DA INICIAL - NÃO INTERPOSIÇÃO DE RECURSO EM MOMENTO OPORTUNO - PRECLUSÃO - Não tendo o autor interposto recurso contra a decisão que determinou a emenda da inicial para afastar a conversão da ação em prestação de contas, precluso está o seu direito de se insurgir contra tal determinação, não sendo possível, nesta fase processual, determinar o prosseguimento do feito na forma inicialmente interposta, como ""requerimento de providência cível"". - O alimentante é parte ilegítima para requerer prestação de contas relativa à aplicação dos recursos pagos a título de alimentos, cabendo o manejo de tal ação apenas ao próprio alimentado [07]. (grifos nossos)
Entretanto, nos termos do art. 8º, do CPC, deve o menor ser representado ou assistido por um de seus pais, não havendo qualquer óbice a que esta representação ou assistência seja exercida pelo genitor que não detém sua guarda, eis que, conforme explicado alhures, este genitor preserva para si as prerrogativas (e os deveres) inerentes ao poder familiar, podendo, por óbvio, representar ou assistir seu filho em juízo.
Entendemos, dessa forma, que é perfeitamente possível que um dos genitores, representando o filho menor, exija judicialmente a prestação de contas daquele que recebe e administra a pensão alimentícia (geralmente, o outro genitor). Na prática – como não poderia deixar de ser – o autor da ação será o filho menor, representado, naquele ato, pelo genitor (pai ou mãe) que paga alimentos e que os vê administrados pelo outro genitor.
Restaria sanado, portanto, o problema da legitimidade, uma vez que a nós nos parece incontestável que o filho menor, beneficiário efetivo do pensionamento, tem o direito à prestação de contas e, para exigi-la em juízo, pode ser representado ou assistido pelo genitor que não detém sua guarda.
Caberia sanar, ainda, a questão do interesse de agir. Nesse ínterim, entendemos que a prestação de contas – comprovada a não aplicação integral dos recursos em proveito do menor – não serviria para futura ação revisional ajuizada pelo alimentante. Isso, muito mais por uma questão ética do que legal, haja vista que tal manobra se apresentaria incoerente: o próprio alimentado (representado pelo genitor) estaria subsidiando fundamentação para uma ação judicial que, ao final, pretenderia que os alimentos fossem reduzidos, com evidente prejuízo para o próprio alimentado.
Não há que se negar, contudo, que há interesse de agir, uma vez que, comprovado eventual desvio ou má administração de recursos do alimentado, por parte do genitor que detém sua guarda, estaria viabilizada a ação de substituição de guarda (comprovando-se que não se está privilegiando o melhor interesse do menor) ou, ainda, ação de obrigação de fazer, de modo a compelir o genitor que administra os recursos do menor a efetivamente aplicá-los em seu favor.
O que não se pode admitir é que o alimentante, percebendo a indevida aplicação dos recursos do pensionamento alimentar (muitas vezes com evidente desvio em proveito do guardião), não tenha instrumentos legais para exigir que tais recursos sejam aplicados em benefício do menor ou, em último caso, que possa requerer (de forma fundamentada) a substituição de guarda, com base no art. 1.583, §2º, do CC/2002 e art. 227, da Constituição da República.
Nem se diga que as providências acima mencionadas poderiam ser tomadas mesmo sem a ação de prestação de contas, com fulcro no art. 1.583, §3º, do Código Civil, uma vez que a jurisprudência, com base no art. 333, inciso I, do CPC, tem caminhado sempre no sentido de que cabe ao autor, neste caso, comprovar os fatos alegados; fatos estes que, muitas vezes, ocorrendo no recôndito da vida privada, não são de conhecimento público e não podem, por isso, ser comprovados pelo autor.
A ação de prestação de contas, neste caso, ao nosso sentir, seria legítima, constituindo-se em instrumento hábil para que se busque, pelos meios legais, o efetivo atendimento ao interesse do menor.
Notas
- Vide REsp 985061 / DF, Relatora Ministra Nancy Andrighi, publicado em 16/06/2008;
- DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 7. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. P. 762
- MONTENEGRO FILHO, Misael. Código de processo civil: comentado e interpretado. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 915-916
- Vide Apelação Cível n.º 1.0637.09.068613-9/001. TJMG. Rel. Des. Maria Elza. Publicado em 21/10/2009
- CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Coord.: PELUSO, Ministro Cezar. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2010. p. 1800
- DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 23. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 540
- Apelação cível n.º 1.0145.09.508600-8/001. TJMG. Rel. Des. Dídimo Inocêncio de Paula. Publicado em 19/02/2010