RESUMO
O presente trabalho tem como objeto de estudo o ato do indiciamento no Inquérito Policial e sua conformação no cenário do Processo Penal Constitucional. A pesquisa desenvolvida restringe-se ao indiciamento no Inquérito Policial, e busca abranger as repercussões e principais aspectos deste instituto, sempre confrontados com princípios constitucionais consagrados e sob o filtro do garantismo penal. A construção do referencial teórico ampara-se na legislação vigente, sobretudo no texto constitucional, na doutrina específica sobre o tema e jurisprudência dos tribunais brasileiros. O estudo busca demonstrar que, frente à leitura constitucional do processo penal, o indiciamento policial carece de suporte jurídico válido. Por meio de uma análise sistemática e crítica, examina-se a necessidade da aplicabilidade do instrumento diante das desproporcionais conseqüências negativas trazidas para o patrimônio moral do indivíduo atingido com a situação jurídica do indiciamento. Neste ponto, analisam-se os instrumentos do Inquérito Policial, simbioticamente ligados à figura do indiciamento, tais como o registro na folha de antecedentes criminais e o preenchimento do boletim de vida pregressa. A irrecorribilidade do ato administrativo do indiciamento e a ofensa a princípios que garantem a contestação e questionamento dos atos administrativos unilaterais são enfrentadas sob o enfoque do devido processo legal. A análise garantista do tema busca demonstrar a exigência da exclusão do indiciamento da persecução penal brasileira.
Palavras-chave:
Inquérito Policial, Indiciamento Policial, Processo Penal Constitucional, Garantismo Penal.
ABSTRACT
This study is an analysis of the police formal imputation act and its conformation in the scenario of Constitutional Criminal Procedure. The research is restricted to the imputation on the police investigation. It looks forward to consider the main aspects and the implications of this institute, confronted with constitutional principles. The study examines the issue under the filter and of penal guarantees. The argument is built by the current legislation, mainly the Republican Constitution of 1988. It was also founded on Brazilian studies of specialists in criminal process and in the Brazilian courts decisions on the subject. The study aims to demonstrate that the police formal imputation act is not motivated in valid legal support and that formal act has to be reread under a constitutional background. Given to the unreasonable negative consequences brought to the moral worth of the individual jeopardized by the formal but not constitutional police act, the study intends to make clear the analysis about the dispensability of that act. At this point, it explains how the record files of criminal records makes such a definitive stain on the individual life even if he or she will be later declared innocent. The fact that the administrative police formal act of imputation offends the principles that guarantee the defense and questioning of unilateral administrative acts is studied from the standpoint of due process of law. The essay concludes for the need of exclusion of the formal act of imputation from criminal prosecution system in Brazil.
Key words:
Police Investigation, Police Formal Imputation Act, Constitutional Criminal Process, Criminal Individual Guarantees
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO.1 O INQUÉRITO POLICIAL E O ATO DO INDICIAMENTO. 2 O INDICIAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO . 2.1 O Indiciamento como ato administrativo vinculado. 2.2 O Ato do indiciamento como afronta a princípios constitucionais. 2.3 Irrecorribilidade do indiciamento. 2.3.1 Princípios incompatíveis com a irrecorribilidade do indiciamento. 2.3.1.1 Princípio da legalidade. 2.3.1.2 Princípio da impessoalidade. 2.3.1.3 Princípio da razoabilidade.3 AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E A SITUAÇÃO JURÍDICA DO INDICIADO NO ATUAL CENÁRIO. 4 REPERCUSSÕES DO INDICIAMENTO. 4.1 Submissão ao preenchimento do boletim de vida pregressa. 4.2 Inclusão no banco de dados policiais - folha de antecedentes criminais... . 5 (DES) NECESSIDADE DO INDICIAMENTO. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
A persecução penal prevê uma fase preliminar ao processo penal para que sejam colecionados os indícios da autoria e demonstrada a materialidade do crime. O Inquérito Policial é o instrumento prévio que busca preparar o campo para que a ação penal não seja precipitada e evite acusações injustas e temerárias.
Após a Constituição de 1988 o Inquérito Policial deve ser visto sob o prisma garantista, que o defenda de deturpações históricas, minimize as distorções da discricionariedade estatal e o sustente como instrumento de realização dos direitos fundamentais do indivíduo.
Dentro deste contexto, a análise de adequação constitucional do Inquérito Policial revela a existência de institutos atávicos, desnecessários, danosos às liberdades públicas e sem fundamentação jurídica.
Embora renasça a cada manhã na prática policial brasileira e resista a críticas racionais comprometidas com a constitucionalização do processo penal, o ato administrativo do indiciamento policial se destaca como um daqueles males retrógrados, apontados pela doutrina como parte de um sistema superado e ineficiente.
Diante da aplicabilidade rotineira do instituto do indiciamento na persecução penal, ressalta-se a importância da análise criteriosa do tema, a fim de questionar os fundamentos jurídicos de validade.
Na atual sistemática processual penal e por meio do indiciamento no Inquérito Policial, todo indivíduo investigado, em que pese a inexistência de previsão legal expressa, pode ter sua situação jurídica alterada em seu desfavor, com conseqüências negativas diversas.
Esta relevante constatação ressalta, portanto, a importância do estudo aprofundado do tema, sobretudo a análise detida do espaço reservado pela comunidade jurídica ao indiciamento.
Neste intuito, com o auxílio da doutrina tradicional avalizada e também de novos autores, faz-se neste trabalho a leitura detida dos vários aspectos do indiciamento, suas incongruências com as garantias constitucionais, as repercussões para o investigado e também sua inadequação a princípios constitucionais. Para tanto, decisões judiciais monocráticas e colegiadas – fonte formal do direito – como parâmetros para a argumentação, são citadas, sempre que as sentenças forem portadoras de diferencial inovador garantista. Algumas decisões judiciais são também trazidas a lume para exemplificar o atual estágio de estagnação crítica no tratamento da matéria. O método adotado foi o dedutivo, considerando as hipóteses freqüentemente apontadas pelos doutrinadores.
A divisão da monografia em capítulos busca fragmentar o tema, facilitando a exposição das idéias, bem como a demonstração das variadas hipóteses assertivas.
Assim procedendo, o capítulo 1 situa o indiciamento dentro do procedimento administrativo do Inquérito Policial, a fim de contextualizá-lo na estrutura da investigação prévia no Brasil.
O capítulo 2 trata da problemática da fundamentação do indiciamento no ordenamento jurídico pátrio, buscando a legislação pertinente – o Código de Processo Penal, a Constituição Federal e outros normativos que tangenciam o tema, com o objetivo de demonstrar como atualmente é tratada a questão.
O capítulo 3 trata das garantias constitucionais básicas, como a ampla defesa e o contraditório que devem integrar o indiciamento, enquanto existir no cenário nacional.
O capítulo 4 descreve as repercussões negativas trazidas ao indivíduo pela figura do indiciamento, demonstrando a sua desproporcional conseqüência, sobretudo tendo em vista o balanço entre os valores individuais atingidos e o benefício social auferido. O capítulo traz pormenores acerca do boletim de vida pregressa e da folha de antecedentes criminais, corolários do indiciamento.
O capítulo 5, para arrematar a análise, e sempre com apoio na doutrina e jurisprudência sobre o tema, avalia a (des)necessidade do indiciamento policial, a sua pouca ou nenhuma utilidade para o modelo apuratório em vigor.
O desafio deste trabalho é analisar o ato de indiciamento, fazendo coro à doutrina e jurisprudência de vanguarda, para demonstrar seu antagonismo com o Processo Penal Democrático e Garantista.
1 O INQUÉRITO POLICIAL E O ATO DO INDICIAMENTO
O Inquérito Policial é um procedimento administrativo preparatório da ação penal, atribuído à polícia judiciária, com a finalidade de apurar a autoria e a materialidade da infração penal.
Eugênio Pacceli de Oliveira (2004, p.31) atribui ao Inquérito Policial natureza administrativa e pré-processual, "tratando-se de procedimento tendente ao cabal e completo esclarecimento do caso penal, destinado, pois, à formação do convencimento (opinio delicti) do responsável pela acusação"
Segundo Fernando Capez (2004), o Inquérito Policial é procedimento persecutório, que possui como destinatários imediatos o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública, e o ofendido, titular da ação privada. Guilherme de Souza Nucci complementa o conceito atribuindo ao inquérito função preparatória da ação penal. No seu entender:
Fazendo-se uma instrução prévia, através do inquérito, reúne a polícia judiciária todas as provas preliminares que sejam suficientes para apontar, com relativa firmeza a ocorrência de um delito e seu autor. [...] O inquérito é um meio de extirpar, logo de início, dúvidas frágeis, mentiras ardilosamente construídas para prejudicar alguém, evitando-se julgamentos indevidos de publicidade danosa. [...] O inquérito torna-se um procedimento preparatório e preventivo (2008, p. 71).
Esclarecedoras as lições de Guilherme de Souza Nucci sobre
a razão de ser do Inquérito Policial; a seu ver, a investigação preliminar
busca conferir segurança à ação da justiça e proteção ao acusado.
O Inquérito Policial tem assento no Título II do Código de Processo Penal e recebe o tratamento minucioso da Lei Processual por meio dos art. 4º. a 23º., onde são determinadas as formas de instauração do Inquérito Policial, determinações a cargo da autoridade policial a partir do conhecimento da notitia criminis, prazos para conclusão das investigações, incidentes no trâmite do Inquérito Policial, especificações quanto à prisão em flagrante delito etc.
Fernando Capez (2004, p. 81) observa que o legislador não determinou uma ordem prefixada para a prática dos atos que compõem o procedimento inquisitivo. No entanto, ressalta a importância do art. 6º. do Código de Processo Penal que indica "algumas providências que, de regra, deverão ser tomadas pela autoridade policial para a elucidação do crime e de sua autoria".
Analisando o teor do art. 9º. [01] do Código de Processo Penal, Guilherme de Souza Nucci (2008) observa que o Inquérito Policial é um procedimento formal e documentado. As diligências presididas pela autoridade policial devem ser reduzidas a escrito e logicamente ordenadas num caderno apuratório.
Na definição de Aury Lopes Júnior (2008, p. 241), "inquérito é o ato ou efeito de inquirir, isto é, procurar informações sobre algo, colher informações acerca de um fato, perquirir". Neste sentido, todo o conjunto de atos formalizados e ordenados a partir da instauração do Inquérito Policial tem como objetivo apurar as circunstâncias da infração penal e sua autoria.
No desenvolver da atividade investigativa, o presidente do Inquérito Policial, utilizando-se de diversas técnicas de investigação, coleciona informações que podem apontar a responsabilidade da infração penal para certa pessoa. Os "sinais que atribuam a provável autoria do crime a determinado, ou determinados suspeitos" (CAPEZ, 2004, p. 84) são denominados indícios [02].
A autoridade policial, ao se deparar com um "feixe de indícios convergentes" (PITOMBO apud LOPES JÚNIOR, 2008, p. 289) [03] a indicar o provável delinqüente, deve, pela sistemática da investigação preliminar policial brasileira, proceder ao indiciamento do suspeito.
Para Fernando Capez (2004, p. 84), o indiciamento "é a imputação a alguém, no Inquérito Policial, da prática do ilícito penal, sempre que houver indícios de sua autoria". A autoridade policial demonstra com a indiciação formal do investigado que sobre ele recai a probabilidade da autoria da infração penal (PITOMBO apud CAPEZ, 2004) [04].
O ato do indiciamento está inserido no conjunto de diligências a cargo da autoridade que comanda as investigações e externa a declaração de que "todas as investigações passam a se concentrar sobre a pessoa do indiciado" (CAPEZ, 2004, p. 84).
Por alterar a situação jurídica do investigado na persecutio criminis [05], com relevantes conseqüências para o investigado, o instituto do indiciamento (ou indiciação) merece uma análise sobre a sua compatibilidade no cenário das liberdades públicas abrigadas pelo atual texto constitucional.
2 O INDICIAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O indiciamento policial é expressamente citado em diversos artigos do Código de Processo Penal (exempli gratia, art. 5º, parágrafo 1º, alínea b, art. 6º, incisos V, VIII e IX, art. 10º, caput e parágrafo 3º, art. 14, art. 15, art. 21, art. 23 e art. 125) sem, contudo, receber do legislador atual contorno definido de seus limites e momento preciso de sua efetivação.
Aury Lopes Júnior percebeu a carência de uma regulação precisa do indiciamento e assim expôs a questão:
OCódigo de Processo Penal não define de forma clara quando uma pessoa passa a ser considerada como indiciada e tampouco estipula claramente que conseqüências endoprocedimentais produz o indiciamento [...]. Entre os maiores problemas do Inquérito Policial está a falta de um indiciamento formal, com momento e forma estabelecidos em lei (2008, p. 293).
Apesar de carente de tratamento transparente pela legislação, o indiciamento no ordenamento jurídico nacional é instituto vetusto [06], sedimentado, e há muito conceituado pela doutrina tradicional.
Júlio Fabrini Mirabete assim o define:
A imputação a alguém, no IP (Inquérito Policial), da prática do ilícito penal, ou o resultado concreto da convergência de indícios que apontam determinada pessoa ou determinadas pessoas como praticantes de fatos ou fato tidos pela legislação penal em vigor como típicos, antijurídicos e culpáveis (1993, p. 88).
Entre os novos juristas brasileiros, o tema também é freqüentemente visitado, e a conceituação do instituto não difere substancialmente do tratamento dado outrora. Marcus Camargo de Lacerda, delegado da Polícia Civil de São Paulo lembra que:
Este ato, o indiciamento, é a imputação a alguém, no inquérito policial, da prática do ilícito penal. A pessoa objeto de investigação é declarada como sendo a provável autora do crime. O indiciamento resulta da convergência dos sinais obtidos na persecução de que aquela pessoa é a provável autora do crime. A partir deste momento as investigações passam a se concentrar na pessoa do indiciado (2004, [s.p]).
A tentativa doutrinária de situar o indiciamento no cenário processual penal brasileiro, e fundamentar sua figura referenciada pelo legislador, não afugenta críticas pertinentes quanto à sua indefinição e falta de base jurídica precisa. Neste sentido, os comentários de Fauzi Hassan Chouke, para quem:
Pode-se, inicialmente, indagar qual a sua fundamentação jurídica, na medida em que o nosso Código de Processo Penal em momento algum disciplina seu funcionamento, muito embora por reiteradas vezes faça referência à expressão "indiciado". Pode-se questionar, ainda, ante a ausência de definição legal expressa, qual a razão de sua existência, na medida em que não traz qualquer conseqüência endoprocessual. (1995, p. 142-3)
Cabe lembrar que o Projeto de Lei n°. 156/2009 do Senado Federal, que reforma o Código de Processo Penal brasileiro, traz no capítulo III, a Seção IV, intitulada "Do indiciamento", especialmente dedicada ao instituto e onde consta a definição a ser dada pelo futuro diploma:
Art. 30. Reunidos elementos suficientes que apontem para a autoria da infração penal, o delegado de polícia cientificará o investigado, atribuindo-lhe, fundamentadamente, a condição jurídica de indiciado, respeitadas todas as garantias constitucionais e legais.
§1º A condição de indiciado poderá ser atribuída já no auto de prisão em flagrante ou até o relatório final do delegado de polícia.
§2º. O delegado de polícia deverá colher informações sobre os antecedentes, a conduta social e a condição econômica do indiciado, assim como acerca das conseqüências do crime.
§3º. O indiciado será advertido da necessidade de fornecer corretamente o seu endereço, para fins de citação e intimações futuras e sobre o dever de comunicar a eventual mudança do local onde possa ser encontrado. (BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei 156/09, [200-?], s.p.)
O Projeto do Novo Código de Processo Penal, ao desenhar os limites do indiciamento, definindo o momento da atribuição desta especial condição jurídica e prevendo expressamente o respeito às garantias constitucionais, ainda que supra uma carência já apontada por juristas da importância de Aury Lopes Júnior [07], não afasta os questionamentos quanto à constitucionalidade do instituto.
A condição jurídica de indiciado, citada de forma esparsa no atual Código de Processo Penal, e de forma condensada e sistematizada no art. 30 do pretendido Novo Código [08], não é sequer citado pela Carta Constitucional; ao contrário, há princípios constitucionais expressos que parecem repelir a idéia do indiciamento policial, nos moldes do existente no Brasil.
2.1 O Indiciamento como ato administrativo vinculado
Ato administrativo delegado à autoridade policial, com sérias conseqüências na esfera individual do investigado, o indiciamento embasa-se na convicção formada a partir dos elementos coligidos na investigação que apontem para a autoria do crime em apuração. "O indiciamento pressupõe um grau mais elevado de certeza de autoria que a situação de suspeito" (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 289).
Júlio Fabrini Mirabete ensina que, havendo a reunião de indícios de autoria da infração em direção ao investigado, este deverá ser necessariamente indiciado:
O indiciamento não é ato arbitrário nem discricionário, visto que inexiste a possibilidade legal de escolher entre indiciar ou não. A questão situa-se na legalidade do ato. O suspeito sobre o qual se reuniu prova de autoria da infração tem que ser indiciado; já aquele que contra si possuía frágeis indícios, não pode ser indiciado, pois é mero suspeito (1995, p. 91).
Como ato vinculado, se houver indícios de cometimento do crime, não haverá discricionariedade por parte da autoridade policial, que deverá formalizar o indiciamento (MIRABETE, 1995).
Aury Lopes Júnior (200, p. 312) também entende que "a autoridade policial deverá proceder ao indiciamento caso existam suficientes indícios."
Decisão do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo reforça este entendimento:
O indiciamento de uma pessoa não é ato discricionário da autoridade que preside o inquérito. Não fica ao alvedrio da autoridade indiciar ou não. Trata-se de ato vinculado a elementos idôneos. Havendo indícios é obrigatório o indiciamento; não havendo indícios não se pode indiciar (BRASIL, TJMSP, HC 1915/06, [200-], s.p.).
A obrigatoriedade do indiciamento - quando presente o conjunto indiciário indicativo de autoria - teria o condão de buscar definir a situação jurídica do sujeito perante a investigação. Segundo Pitombo apud Lopes Júnior (2008, p.290), esta definição do novo status do investigado deve "emergir configurado em ato formal de polícia judiciária". [09]. E mais: o indiciamento, obrigatório quando presentes indícios de autoria do crime investigado, formalizado pela autoridade policial, deve emanar de "um despacho sério e fundamentado da autoridade policial" (idem, p. 291).
Todavia, tentar delinear o instituto do indiciamento e fornecer parâmetros para que persista como instrumento da investigação preliminar, é esquecer a fragilidade de seu alicerce: o indiciamento nasce de uma convicção pessoal da autoridade policial "em ato, via de regra, desmotivado e totalmente desgarrado de controle pelo titular da ação penal [...] do juiz" ou da própria administração(CHOUKE, 1995, p. 143/150).
2.2 O Ato do indiciamento como afronta a princípios constitucionais
Os incisos X, LIV e LVII do art. 5º. da Constituição Federal demonstram que, em que pesem as citações legais esparsas do indiciamento no Código de Processo Penal ou mesmo sua tratativa condensada no projeto de Código de Processo Penal em tramitação, a Constituição Federal não admite qualquer ação do Estado que traga prejuízo ao indivíduo sem o devido processo legal, e é inflexível ao nomear como inviolável a honra e imagem das pessoas, além de repelir qualquer ataque sobre o princípio da presunção de inocência:
Art. 5°. [...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (BRASIL, Constituição Federal/88, [200-?], s.p.).
Ademais, o art. 1º., inciso III, da Constituição Federal enumera como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, que, no dizer de Luiz Flávio Gomes (2009, p. 04), é "o princípio-síntese do Estado constitucional e humanitário de Direito".
Nesse sentido, importante ressaltar que o ato do indiciamento além de marcar uma mudança de situação jurídica do investigado no apuratório, traz para o indivíduo que receber tal atributo diversas conseqüências jurídicas negativas (tratadas no Capítulo 4 desta monografia). O patrimônio moral do indivíduo é atingido pela decisão do indiciamento (SOUZA, 2001, p. 02) e, considerando-se o princípio da dignidade da pessoa humana, é necessário perquirir se tal ato seria legítimo.
"Figura da maior importância, eis que gera relevantes conseqüências endoprocedimentais" (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 292) [10], o indiciamento é fruto da convicção da autoridade policial a partir dos indícios colecionados por esta mesma autoridade.
A partir da decisão de indiciamento, altera-se a situação jurídica do indivíduo com conseqüências indesejáveis ainda na fase pré-processual. Esta decisão da autoridade policial, ainda que não vinculante dos outros órgãos investidos na persecução penal [11], grava a situação jurídica do investigado em um grau de certeza incompatível com garantias constitucionais básicas.
Para Aury Lopes Júnior (2008, p. 278) este grau de certeza provém de uma equívoca presunção de veracidade dos atos de investigação ainda hoje difícil de ser combatida "e parece haver sido criada em outro mundo muito distinto da nossa realidade, em que as denúncias, coação, tortura, maus-tratos, enfim, toda espécie de prepotência policial são constantemente noticiados."
Uma comparação crítica entre o indiciamento pela autoridade policial e o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público indica que o primeiro instituto não resiste a uma revisão constitucional.
Se mesmo a denúncia [12] recebida regularmente traz ínsita a incerteza em sua valoração, como aceitar uma apreciação inapelável (unilateral e acrítica, com efeitos negativos diversos) ainda na fase policial?
A imputação da autoria de conduta criminosa ao indivíduo deve ser sólida, lastreada em indícios firmes do cometimento do delito (NUCCI, 2008, p. 70) [13], possibilitando a plena defesa [14] e a paridade de armas [15] em sua contestação (eis o devido processo legal).
No âmbito do Processo Penal Constitucional, a imputação da autoria só é possível permitindo-se o contraditório e a ampla defesa – "máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Constituição", a fim de que se possa exercer a crítica sobre a opinio delicti do órgão acusador, em busca da "proteção do indivíduo", um dos objetivos traçados pelo próprio Processo Penal (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 26).
Importante destacar que o oferecimento da denúncia pelo Parquet (em momento posterior ao indiciamento e logicamente depurado) não passa de presunção, de uma tese, uma hipótese a ser demonstrada. Aury Lopes Júnior (2008, p. 337) afirma que "não existe nenhuma presunção de veracidade da peça acusatória – seja denúncia ou queixa – e todos os fatos alegados devem ser demonstrados em grau de probabilidade para a admissão".
É evidente que a peça acusatória deve se revestir de firme base empírica (BRASIL, STF, HC 73.271-2 SP), mas nunca será uma verdade incontestável [16]. A ação penal nasce com uma peça acusatória maturada pelo crivo do Ministério Público (oferecimento da denúncia) e do Judiciário (recebimento da denúncia [17]) e ainda assim apenas inicia o debate crítico que legitimará uma possível condenação.
Por lógica, se a própria opinio delicti inaugura um questionamento sobre seu acerto e razoabilidade, inclusive sobre a correta tipificação legal, não parece correto que o indiciamento grave na vida pregressa do indivíduo uma certeza inquestionável, ferindo irrefutavelmente a presunção de inocência que todos têm garantido.
Tudo leva a crer que houve um amadurecimento na visão constitucionalista do processo, embora persista o atavismo em relação à antecipação de repercussões negativas ao individuo, que permanecem numa etapa frágil e anterior- fase do apuratório.
Vale lembrar as palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, quando do julgamento do Habeas Corpus n. 84409/SP, in verbis:
Quando se fazem imputações vagas, dando ensejo a persecução criminal injusta, está a violar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana que, entre nós, tem base positiva no art. 1°, III, da Constituição. Como se sabe, na sua acepção originária, esse princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição à ofensa ou humilhações (BRASIL, STF, HC 84.409/SP, [200-?], s.p.).
Com efeito, estas idéias já sedimentadas na cultura jurídica atual atestam que o ser humano não pode ser meio para consecução de políticas estatais, já que é a razão e o próprio fundamento da ordem vigente.
As palavras do Promotor de Justiça Fernando Ferreira dos Santos (2001, [s.p.]) resumem a idéia aqui tratada: "[...] se o texto constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado [...]".
Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, considerando cada pessoa como fim em si mesma e não como instrumento ou meio para outros objetivos; sob pena de inconstitucionalidade e de violação da dignidade da pessoa humana - real paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público.
Justamente por ter como paradigma a dignidade da pessoa humana, parece apropriado o questionamento da validade do indiciamento no ordenamento jurídico pátrio, já que o prejuízo trazido para a esfera individual por meio deste instituto não se baseia em critérios transparentes de necessidade e proporcionalidade.
O imprescindível equilíbrio entre liberdade e autoridade exige que só se imponha uma limitação a direito individual se as razões legitimarem a preponderância dos valores coletivos face aos valores individuais (FERNANDES, 2007) [18]. Pelas razões demonstradas neste trabalho, não parece o caso da figura do indiciamento no Inquérito Policial.
Importante ressaltar que a exposição de motivos do Projeto do Novo Código de Processo Penal assevera que:
A incompatibilidade entre os modelos normativos do citado Decreto-lei nº 3.689, de 1941 e da Constituição de 1988 é manifesta e inquestionável. [...] A eficácia de qualquer intervenção penal não pode estar atrelada à diminuição das garantias individuais. É de ver e de se compreender que a redução das aludidas garantias, por si só, não garante nada, no que se refere à qualidade da função jurisdicional. As garantias individuais não são favores do Estado. A sua observância, ao contrário, é exigência indeclinável parao Estado. Nas mais variadas concepções teóricas a respeito do Estado Democrático de Direito, o reconhecimento e a afirmação dos direitos fundamentais aparecem como um verdadeiro núcleo dogmático (BRASIL. Projeto de Lei 156/09, Exposição de Motivos, Senado Federal, [200-?], s.p.).
Nesse sentido, em discordância com o propósito garantista declarado na exposição de motivos, o legislador se manteve cauteloso quanto à eliminação do indiciamento, buscando uma fórmula pouco ambiciosa. [19]
2.3 Irrecorribilidade do indiciamento
Embora a doutrina e jurisprudência entendam que tal ato seja vinculado, [20] sem margem para a discricionariedade da autoridade policial quando delineada a situação fática do indiciamento, em verdade não há na legislação pátria previsão de recurso viabilizando o controle do acerto do indiciamento.
Ora, se o indiciamento é ato obrigatório (pois que vinculado) quando estiverem presentes os indícios de cometimento de crime, a decisão da autoridade policial será indevida quando ausentes tais indícios, tornando-se, neste caso, abusiva. Fauzi Hassan Chouke ensina que:
Nunca foi novidade em uma investigação criminal a situação em que, logo após a "autuação", sem que nada exista nos autos além de um boletim de ocorrência, venha já o indiciamento de um "suspeito", ato isolado, muitas vezes lacônico e transformado em verdadeiro ponto de interrogação notadamente naquelas hipóteses em que o indiciado utiliza seu direito ao silêncio (1995, p. 143).
Para a hipótese de abuso de poder [21] a Administração deve prever uma forma de revisão da ilegalidade, o que não ocorre no fenômeno do indiciamento. Seguindo o raciocínio, aceitar a existência de ato administrativo vinculado sem o conseqüente meio de revisão deste mesmo ato parece-nos um contra-senso.
Ocorre que dos atos administrativos exige-se a revisibilidade, em decorrência do princípio da pluralidade de instâncias[22].
Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2000, p. 493), "o que se objetiva, com a possibilidade de reexame, é a preservação da legalidade administrativa".
A razão é clara, a Administração Pública, ainda que exercida com cautela e segundo os ditames legais, está sujeita a erros, uma vez que é efetivamente desempenhada por servidores públicos falíveis. O princípio da autotutela vem justamente reconhecer tal falibilidade e prever a revisão de eventuais atos equívocos.
José dos Santos Carvalho Filho explana sobre tal fundamento, nos seguintes termos:
A Administração Pública comete equívocos no exercício de sua atividade, o que não é nem um pouco estranhável em vista das múltiplas tarefas a seu cargo. Defrontando-se com esses erros, no entanto, pode ela mesma revê-los para restaurar a situação de regularidade. Não se trata apenas de uma faculdade, mas também de um dever, pois que não se pode admitir que, diante de situações irregulares, permaneça inerte e desinteressada. Na verdade, só restaurando a situação de regularidade é que a Administração observa o princípio da legalidade, do qual a autotutela é um dos mais importantes corolários (2003, p. 21).
Acredita-se que o Código de Processo Penal, no art. 5º, § 2º, foi tímido ao tratar da recorribilidade no Inquérito Policial. Apenas o indeferimento de requerimento de abertura de Inquérito Policial nos crimes de ação pública foi contemplado com esta possibilidade. Nestes casos, caberá recurso para o chefe de Polícia. Em diversos outros momentos não menos importantes, inclusive o indiciamento, o legislador silenciou-se.
Ainda no Código de Processo Penal brasileiro, mais precisamente no art. 14, há leve permissão para que o indiciado requeira qualquer diligência, "que será realizada, ou não, a juízo da autoridade" (BRASIL, Decreto n. 3.689/41, [200-?], s.p.). Verifica-se, neste caso, que não há possibilidade de revisão do ato e sim mera oportunidade para requisição de diligências. Ou seja, o ato do indiciamento foi poupado pelo Código de Processo Penal de uma saudável maturação revisional [23].
O indiciamento por absoluta ausência de previsão legal é instituto fechado à crítica racional e não permite revisão na esfera administrativa. No entanto, a Constituição Federal no art. 5º, inciso XXXV, prevê expressamente o princípio da inafastabilidade do Judiciário: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (BRASIL, Constituição Federal/88, [200-?], s.p.). Consequentemente, cabe ao prejudicado bater à porta do Judiciário em busca de um reexame impossível na esfera administrativa.
Em comentários à Constituição Federal de 1988, Alexandre de Moraes (2002, p. 292) resume a questão: "a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue."
Desta forma, nem a lei nem a ausência dela impedirão que o Judiciário aprecie a legalidade do indiciamento. Na esteira deste raciocínio, inúmeras são as decisões de teor idêntico à prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello, nos autos do Inquérito no. 2.041-MG, em decisão publicada em 06/10/2003 e transcrita no Informativo n. 323/STF:
Se é inquestionável que o ato de indiciamento não pressupõe a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, não é menos exato que esse ato formal, de competência exclusiva da autoridade policial, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que torne possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal. O indiciamento não pode, nem deve constituir um ato de arbítrio do Estado, especialmente se se considerarem as graves implicações morais e jurídicas que derivam da formal adoção, no âmbito da investigação penal, dessa medida de Polícia Judiciária, qualquer que seja a condição social ou funcional do suspeito. Doutrina. Jurisprudência (BRASIL, STF, IPL 2.041-MG, [200-], s.p.).
Na atual sistemática da investigação preliminar brasileira, o indiciamento é ato unilateral, exteriorizado pela decisão da autoridade policial que aponta pelo indiciamento do investigado, sem previsão de contestação. Nas palavras de Fauzi Hassan Chouke (1995, p. 143), "o indiciamento é oriundo de uma convicção pessoal da autoridade policial, na maior parte dos casos, e na prática raramente motivado."
Por ausência de previsão legal, o indiciamento e seu momento de efetivação ficam ao alvedrio do delegado de polícia, na "mais absoluta incerteza" (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 311). Nestas circunstâncias, ao investigado não resta mais que esperar pela conclusão da autoridade, sem poder fazer uso da contestação ao ato administrativo [24], "em inequívoco detrimento de sua situação jurídica, do seu status libertatis e da sua própria dignidade pessoal" (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 311). Decidido o indiciamento pelo delegado, com fundamentação ou desamparado de qualquer justificação plausível, é imediata a modificação da situação jurídica do indivíduo.
Neste ponto, o indiciamento é conceituado por parte considerável da doutrina e jurisprudência com certa parcimônia, uma vez que, indiscutivelmente com natureza jurídica de ato administrativo, aceita-se sua persistência no ordenamento jurídico, sem contudo avaliar-se criticamente alguns princípios que devem reger os atos da Administração Pública.
2.3.1 Princípios incompatíveis com a irrecorribilidade do indiciamento
2.3.1.1 Princípio da legalidade
José dos Santos Carvalho Filho (2003, p. 13), ao discorrer sobre o princípio administrativo expresso da legalidade, entende que "toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita." O indiciamento, como já dito, em que pesem citações esparsas no Código de Processo Penal, não recebe do legislador tratamento devido e não é sequer reconhecido pelo texto constitucional.
O indiciamento é ato administrativo que traz ao indivíduo efetivo prejuízo em seu status quo, e justamente no campo sensível do Direito Processual Penal. A sociedade e o próprio investigado assimilam o indiciamento como antecipação da manifestação acerca da culpabilidade da conduta. Por isto, o indiciamento não pode buscar fundamentação senão em fonte jurídica formal estrita, ou seja, em norma jurídica elaborada pelo Legislativo em procedimento adequado.
Alexandre de Moraes (2000, p. 67) afirma que o princípio da legalidade "assegura ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei [...]".
Na busca pela definição e contornos do indiciamento é necessário recorrer à produção jurisprudencial, definições doutrinárias e normatização interna policial, pois não há lei que conceitue ou delimite o instituto.
Além da falta de previsão legal do indiciamento, a sedimentada inadmissibilidade de recurso do preceito fere o princípio da legalidade. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2000), o princípio da legalidade é o que melhor enquadra a idéia de que a vontade da Administração é a que decorre da lei. Sendo assim, é também o princípio da legalidade que estabelece os limites da atuação administrativa, só admitindo restrição ao exercício de direitos quando em benefício da coletividade e expressamente prevista.
Aplicado cotidianamente nos atos de persecução penal, ainda que sem previsão e contorno legal expresso, o indiciamento é caracterizado pela inadmissão de recurso na via administrativa. A regra trazida pelo projeto do novo Código de Processo Penal também não prevê a recorribilidade do ato, como já mencionado alhures. Diante de tal irrecorribilidade, o próprio controle da legalidade dos atos da Administração se vê impossibilitado.
É justamente o recurso da decisão administrativa à autoridade administrativa superior que possibilita o controle e a verificação do atendimento dos limites legais à intervenção estatal. Maria Sylvia Zanella Di Pietro mais uma vez lembra que:
A Constituição ainda prevê outros remédios específicos contra a ilegalidade administrativa, como a ação popular, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança e o mandado de injunção; tudo isso sem falar no controle pelo Legislativo, diretamente ou com auxílio do Tribunal de Contas, e no controlepela própria Administração (2000, p. 68).
Sem a possibilidade do recurso administrativo, a aplicação e leitura dos dispositivos legais ficam à mercê da livre interpretação da autoridade administrativa, sem oportunidade de questionamento de seu acerto e pertinência.
2.3.1.2 Princípio da impessoalidade
Em relação aos administrados, o princípio da impessoalidade está relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda a atividade administrativa. Significa que a Administração Pública não pode prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, sem a motivação adequada, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento. (DI PIETRO, 2000)
O princípio é assim sintetizado por Celso Antônio Bandeira de Mello:
No princípio da impessoalidade se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia (1996, p. 68).
De outro lado, justamente por buscar esteio na convicção unidirecional de uma só autoridade, ainda que travestido muitas vezes com débil fundamentação, o princípio da impessoalidade torna-se dificilmente apurável na figura do indiciamento. Como verificar sua ocorrência aceitando a existência de um instituto despótico? Por lógica, a própria irrecorribilidade do ato administrativo do indiciamento afugenta o controle de sua impessoalidade.
Relembra-se, por oportuno, casos exemplares (e extremos) como os dos irmãos Naves [25] e do Bar Bodega [26] para registrar que não se pode credenciar as autoridades policiais com a indiscutibilidade de suas decisões, sob pena de conivência com um sistema arbitrário. As garantias constitucionais dos indiciados devem permear toda a investigação e não pode haver ato unilateral sem a possibilidade de revisão crítica.
Ouve-se, com certa freqüência, que as autoridades, sobretudo as do aparato policial, usam do discurso do "império da ordem", esquecendo-se da impessoalidade que deve nutrir seus atos, desviando-se da finalidade pública que deve regê-las. Em certos casos, vigora a "tolerância zero para o outro e tolerância dez para nós e os nossos." (LOPES JÚNIOR, 2008, p. 14).
Sobre o movimento da "lei e ordem":
A visão de ordem nos conduz, explica Bauman, à de pureza, a de estarem as coisas nos lugares "justos" e "convenientes". [...] O oposto da pureza (o imundo, o sujo) e da ordem são as coisas fora do seu devido lugar. [...] Exemplifica o autor com [...] uma omelete, uma obra de culinária que dá água na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro. [...] O exemplo é interessante e bastante ilustrativo, principalmente num país como o nosso, em que vira notícia no Jornal Nacional o fato de um grupo de favelados ter "descido o morro" e "invadido" um shopping center no Rio de Janeiro. Ou seja, enquanto estiverem no seu devido lugar, as coisas estão em ordem. Mas, ao descerem o morro e invadirem o espaço da burguesia, está posta a (nojenta) omelete no travesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organização do ambiente (BAUMAN, 1997, apud, LOPES JÚNIOR, 2008, p. 15) [27].
2.3.1.3 Princípio da razoabilidade
Falar em ato administrativo é o mesmo que falar em razoabilidade, princípio consagrado e defendido por autores como Maria Sylvia Zanella Di Pietro(2000, p. 80), Lúcia Valle Figueiredo (1995, p. 46) e José dos Santos Carvalho Filho (2003, p. 23).
Analisando o indiciamento, não se enxerga razoabilidade, pois é um ato que não admite revisão crítica e ponderação. Nas palavras de Lúcia Valle Figueiredo (1995) apud José dos Santos Carvalho Filho, 2003, p. 24) [28] "a razoabilidade vai se atrelar à congruência lógica entre as situações postas e as decisões administrativas [...]". Neste sentido, não há razoabilidade na sustentação de decisão incólume ao questionamento, pelo fato da razão se sustentar justamente pela resposta legítima à crítica. Sobre um ato em que não se pode exercer crítica racional, não se pode, tampouco, dizer que se sustenta em parâmetros coerentes [29].
Com efeito, a irrecorribilidade do indiciamento retira do instituto contornos mínimos de razoabilidade e macula sua legitimidade.