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A mão que afaga nem sempre é a mesma que apedreja.

Minimalismo penal e Direito sancionador não-penal

Agenda 26/05/2011 às 16:35

O STJ entendeu que R$ 0,40 (quarenta centavos) é resultado valioso decorrente de conduta praticada por policial militar que subtraiu chocolates (HC 192242). A ponto de reconhecer que a referida conduta possa ser alcançada pelo Direito Penal.

Certamente, errou o Egrégio Superior Tribunal.

É sabido que a maioria dos penalistas contemporâneos não leciona nesse sentido. A doutrina esboça hoje um ligeiro affair pelo tema. Com erros, desacertos, construções e correções. Dessa feita, não é esse o diapasão abstraído de algumas obras de autores consagrados como Roxin [01], Ferrajoli [02], Hassemer, Zaffaroni [03], além de outros autores e coautores, como Slokar [04], Alagia [05], Nilo Batista [06], Cancio Meliá [07], Garcia-Pablos de Molina [08] e Luiz Flávio Gomes [09]. As quais servem de parâmetro para fundamentação de despachos efetuadores ou não-efetuadores de prisão em flagrante delito inclusive (pelo menos os meus, e respeito opiniões divergentes).

Perlustradas as obras, nada leva a concluir pelo acerto do Superior Tribunal de Justiça, no caso em apreço.

Crê-se ainda que nem sequer possa falar-se em Direito Penal do autor ou do Inimigo [10] ao se referir à linha ora adotada por esse Tribunal. Visto que, por via de regra, essas doutrinas do Direito Penal de autor se pautam pela pertinácia delitiva do agente, para atribuir-lhe maior responsabilidade penal e reduzir-lhe a aplicação de direitos e garantias consagrados [11].

No caso em questão, a decisão ancorou-se na função (policiamento ostensivo) exercida pelo autor. Louvável. Porém, prendeu-se à valoração da conduta, olvidando observar tecnicamente a valoração do resultado jurídico.

Na doutrina de Roxin [12], não se nega a possibilidade de que algumas pessoas tenham maiores responsabilidades que as outras. Sobretudo – mas não exclusivamente – quando se trata de norma de cuidado, ou seja, crimes culposos.

Jakobs também alicerça a idéia de um Princípio da Confiança e também de um critério que ele chama de "conceito do Papel" [13]. Ou seja, a responsabilidade de cada indivíduo está atrelada ao papel social que o agente exerce no exato momento da conduta. Assim, não se pode exigir do piloto de Fórmula1 a habilidade de um piloto quando ele leva o filho à escola, pois, naquele momento ele não assume o papel de um piloto de Formula1, mas, sim, de um pai que leva o filho à escola (exemplo do autor). Saliente-se que a doutrina de Jakobs não se resume à teoria do Direito Penal do Inimigo. Para ele, há um Direito Penal do cidadão também. Paralelos. Todavia, Cancio Meliá ensina que "Direito Penal do cidadão’ é um pleonasmo; ‘Direito Penal do Inimigo’, uma contradição em seus termos" [14].

Não é de se negar que, enquanto atua na função de policial, o agente tem, por atribuição, a responsabilidade de evitar que crimes aconteçam. E, muito mais, a de não cometê-los ele próprio. Não se nega que, para o policial, o valor negativo da conduta se evidencia. É dizer, releva-se ainda mais. Principalmente pelo fato de que a vítima pode se descuidar de seu bem, por confiar que aquele servidor lhe reforça a guarda. Contudo, essa aferição se dá quando do exame do desvalor da conduta. E esse é apenas o primeiro grau na escala da tipicidade normativo-valorativa.

O nível subsequente é a análise do desvalor do resultado. Embora a conduta do PM tenha sido indignamente desvaliosa, do ponto de vista jurídico penal, não haverá tipicidade material se não houver desvalor do resultado.

Para Hassemer [15], a sanção penal que não possa apoiar-se em um bem jurídico relevante será terror estatal.

Com isso, é possível se convencer de que houve uma subtração. Mas, essa subtração, não alcançou a seara do Direito Penal, apesar de todo desvalor de que possa se revestir a conduta. Apreende-se, portanto, que nem toda subtração de coisa alheia móvel para si é, de per se, crime de furto, senão apenas uma de suas exigências.

Isso não leva a pensar que a impunidade deve prevalecer. Longe disso. A questão é perfeitamente destacável no campo do Direito Administrativo. Mormente para fins de demissão do servidor, visto que, no caso em epígrafe, trajava colete da corporação inclusive.

Ademais, no âmbito do Direito sancionador judicial (não-penal), são aplicáveis as sanções pela improbidade administrativa, nos termos da Lei 8.429/92:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência. [...]. (Grifos nossos).

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De mais a mais, nesses casos, as sanções judiciais não-penais são significativas:

Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: [...] III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

Alguns atribuem aos novos pensadores desse Direito Penal mínimo a pecha de ditadores da impunidade, como se nota nos discursos midiáticos apriorísticos contra os direitos humanos, exempli gratia [16]. E põem-se, às vezes, a pensar na autossuficiência do cárcere ou na possibilidade de regozijo punitivista a priori pela prisão cautelar em flagrante. Sem fazer observar que caminham, paralelos, sistemas sancionadores (não-penais) mais ou tão eficazes quanto.

O Direito Penal não está posto a resolver todos os males do Mundo. Pelo contrário, existem incontáveis caminhos que o antecedem. Há quem resista ainda em reconhecer que o Direito Penal não é a panacéia do Direito contemporâneo. Poder-se-á um dia notar que o Minimalismo penal não afasta a aplicação de um eficaz direito sancionador não-penal. Evitar-se-á, com isso, em casos mesquinhos, a desnecessária submissão de pessoas às prisões, verdadeiras "Bastilhas da razão humana" [17], para usar a expressão de Machado de Assis.

Há de se reconhecer a boa mão do Minimalismo, que afaga, reduzindo ou evitando os malfadados danos do encarceramento, quando desnecessários [18]. E, ainda, vislumbrar a dura mão sancionadora que, apesar de não-penal, pode ser mais ou tão eficiente quanto àquela outra.

Isso faz lembrar, e até em parte discordar, de Augusto dos Anjos, quando em Versos Íntimos [19] sugere que "A mão que afaga é a mesma que apedreja". Bem, nem sempre! A poesia do mestre serve ao tema. Dessa sorte, seguindo exemplo de outros [20], vale a deixa para reverenciar o belo soneto do mestre, que nasceu paraibano e morreu mineiro.

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão – esta pantera –

Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

(Augusto dos Anjos)


REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto et all. Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

ASSIS, Machado de. O Alienista e outros contos. São Paulo: Editora Moderna, 1995.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O abolicionismo como utopia produtiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2662, 15 out. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17631>. Acesso em: 6 abr. 2011.

CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. 2ª ed., trad. Luiz Flávio Gomes et all. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

__________. A Soberania no Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

JAKOBS, Günther. Imputação Objetiva no Direito Penal. 2ª ed., trad. André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

__________. Tratado de Direito Penal – Teoria do Injusto e Culpabilidade. Trad. Gercélia Mendes e Geraldo de Carvalho. São Paulo: Del Rey, 2009.

__________. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

MOLINA, Garcia-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral. Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

ROXIN, Claus. A Proteção de Bens Jurídicos como Função do Direito Penal. 2º ed., trad. André Luiz Callegari e Nereu Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

__________. Estudos de Direito Penal. 2º ed. Rio de Janeiro: renovar, 2008.

__________. GRECO, Luís. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal. 2ª ed., trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

__________. ALAGIA, Alejandro; BATISTA, Nilo; e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Vol. II. Tomo I. Rio de Janeiro: Revan, 2010.


Notas

  1. ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal. 2ª ed., trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, passim.
  2. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. 2ª ed., trad. Luiz Flávio Gomes et all. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, passim. Ver também: FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2008, passim.
  3. ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro; BATISTA, Nilo; e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Vol. II. Tomo I. Rio de Janeiro: Revan, 2010, passim. Ver também: ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, passim.
  4. Op. cit., passim.
  5. Op. cit., passim.
  6. Op. cit., passim.
  7. MELIÁ, Manuel Cancio; JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, passim.
  8. MOLINA, Garcia-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral. Vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, passim.
  9. MOLINA, op. cit., passim.
  10. MELIÁ, op. cit., passim.
  11. MELIÁ, op. cit. passim.
  12. ROXIN, op. cit., p. 376. Ver também: ROXIN, Claus. A Proteção de Bens Jurídicos como Função do Direito Penal. 2º ed., trad. André Luiz Callegari e Nereu Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, passim. E também: ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. 2º ed. Rio de Janeiro: renovar, 2008.
  13. CARVALHO, Érika Mendes de; PRADO, Luiz Regis. Teorias da Imputação Objetiva do Resultado – Uma Aproximação Crítica a seus Fundamentos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 129. Ver também: JAKOBS, Günther. Imputação Objetiva no Direito Penal. 2ª ed., trad. André Luís Callegari. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. E também: JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do Injusto e Culpabilidade. Trad. Gercélia Mendes e Geraldo de Carvalho. São Paulo: Del Rey, 2009.
  14. MELIÁ, op. cit., p. 54.
  15. HASSEMER, apud ROXIN, Claus, in A Proteção de Bens Jurídicos como Função do Direito Penal. 2º ed., trad. André Luiz Callegari e Nereu Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 19.
  16. PALMA, Fernanda. O Discurso do Antigarantismo. O Correio da Manhã. Disponível em: http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/opiniao/fernanda-palma/o-discurso-do-antigarantismo. Consulta em 02 de abril de 2010. Ver também sobre discursos penalizadores: WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. E também sobre a propaganda punitivista wölkich e publicidade vingativa cool: ZAFFARONI, Eugênio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro. Revan, p. 64 e ss.
  17. ASSIS, Machado de. O Alienista e outros contos. São Paulo: Editora Moderna, 1995, p. 31. Esse termo é utilizado por uma personagem de MACHADO DE ASSIS – o barbeiro – na obra O Alienista, ao se referir à Casa Verde, uma clínica psiquiátrica onde pessoas sãs são internadas sem mais nem menos. Essa obra nos foi recomendada pelo amigo e colega Charles Samahá, um jovem promissor, amante da política e apreciador das boas obras literárias.
  18. Ver sobre a função constitucional de redução de danos trazidos pelo potestas puniendi. CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p. 19.
  19. ANJOS, Augusto dos; et all. Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século. Org. Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 61.
  20. Refiro-me ao Professor Eduardo Cabette, que em seu texto "O Abolicionismo como Utopia Produtiva", acertadamente, fez lembrar Mário Quintana, no poema "Das Utopias". A reprodução da idéia não é menos que uma infecundidade criativa de minha parte, senão uma reverência ao professor e amigo. Ver: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O abolicionismo como utopia produtiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2662, 15 out. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17631>. Acesso em: 6 abr. 2011.
Sobre o autor
Eduardo de Camargo Loberto

Delegado de Polícia de Minas Gerais. Especialista em Ciências Penais pelo Curso de Pós-Graduação Lato Sensu com Formação para Magistério Superior da Pós-Uniderp/MS. Graduado pela Unisal-Lorena/SP. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – Fadileste. Professor de Legislação Penal Especial no Curso Especial de Formação de Sargentos da Polícia Militar de Minas Gerais. Autor de artigos jurídico-científicos. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOBERTO, Eduardo Camargo. A mão que afaga nem sempre é a mesma que apedreja.: Minimalismo penal e Direito sancionador não-penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2885, 26 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19190. Acesso em: 22 nov. 2024.

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