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Do princípio da igualdade à ação afirmativa.

A trajetória do direito à inclusão social

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Agenda 09/06/2011 às 15:56

RESUMO: Trata-se de artigo que desenvolve as idéias de igualdade e diferença em contextos filosóficos e considera seu desenvolvimento para a positivação do princípio da igualdade no movimento constitucionalista. Diante da constatação de que o princípio, ainda que se demonstre como fundamento do ordenamento jurídico democrático, não se mostra suficiente para assegurar que minorias tenham o mesmo tratamento determinado na norma, principalmente ao considerar a eqüidade sob a ótica de iguais oportunidades e meios para o desenvolvimento social, de forma que insere a temática da ação afirmativa como política pública concretizante.


IGUALDADE E DIFERENÇA

"Tempo difícil este em que vivemos, em que é mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito".

Albert Einstein

A declaração epigrafada de um dos maiores cientistas da história humana não deveria ser verdadeira por longa data. Entretanto, ainda que se considere o contexto em que foram exaradas suas palavras - contaminado pela guerra que dizimou incontáveis humanos, principalmente aqueles que, como ele, não pertenciam à "raça ariana" – o fato é que elas foram repetidas ainda em outros contextos históricos e encontram eco até os dias atuais.

A dialética conceitual entre as idéias de diferença e de igualdade foi torturante ocupação do homem primordial, e continua sendo o dramático desafio do homem pós-moderno. Até porque é emblemática a questão humana de reconhecer o próximo como igual,o que implica desenvolver socialmente o conceito de alteridade.

Da análise etimológica, pode-se dizer que termo igualdade é oriundo da língua latina, derivando-se em diversos substantivos, como o inglês equality, o italiano eguagliaza e o francês egalité e designa seres/coisas exatamente idênticos, existindo, portanto, possibilidade de substituição de um pelo outro.

Esse critério de substituição pode ser considerado de forma absoluta ou de forma relativa, o que implica dizer que existem coisas idênticas ou semelhantes entre si, sendo que a semelhança informa que não são substituíveis no todo, mas somente em parte, relativamente a uma ou outra característica comum.

Só será possível avaliar a condição de substituição absoluta, tendo em vista seres idênticos, que por certo, ou são seres artificiais - manipulados pela criação humana, como objetos saídos das fábricas e softwares de mesma programação - ou são seres naturais, mas que também sofreram modificação humana, como animais ou plantas geneticamente modificados. Excluídas essas situações, a verdade é que não há um só ser idêntico no universo, como entende Leibniz [01], que reforça o argumento, afirmando que na natureza nunca há dois seres tão perfeitamente idênticos, onde não seja possível encontrar diferenças internas, fundadas em uma denominação intrínseca.

Kant também demonstra que o mundo sensível apresenta diversidade natural, ou seja, uma disparidade que não se reduz ao conceito do objeto apreendido. Acaba por conceituar identidade, quando afirma: "duas gotas de água são idênticas no que diz respeito ao conceito [...] e, contudo, são diferentes (pela sua posição no espaço e no tempo)". [02]

Enquanto não se confirmam as utopias descritas por Adous Huxley em "Admirável Mundo Novo", no qual o código genético determinará o destino do homem, ou as que afirmam sobre sua imortalidade e substituição, pela ficção que se faz em torno da possibilidade e realização do clone humano, não é possível conceber igualdade material e empírica entre os homens, daí o entendimento de Aristóteles, que identifica, filosoficamente, a divergência plausível entre identidade e igualdade, que, a rigor, não se confundem jamais, eis que cada um dos homens tem sua própria identidade que não se confunde com a de qualquer outro. [03]

Portanto, a igualdade, quando tratada em relação à identidade dos seres humanos, só poderá ser relativa. Assim, quando se trata de imprimir a idéia de igualdade entre os homens, torna-se impossível concebê-la empiricamente, diante da constatação fática de que os homens são desiguais por natureza. Entretanto, por esta mesma natureza são iguais. Ou seja: são humanos.

Norberto Bobbio sintetizou esse pensamento, ao afirmar que "os seres humanos só são iguais ou desiguais em relação a algumas características que devem ser especificadas [...] A única característica que é comum a todos é a natureza humana, mas isso é uma afirmação tautológica". [04]

O brilhantismo expresso nas palavras de Ruy Barbosa, destinadas aos formandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito de São Paulo, aconselhados a se diferenciar e respeitar as diferenças, em sua "Oração aos Moços" também reafirma a idéia da desigualdade entre seres naturais:

"[...] a parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si se diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros, no céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados". [05]

A desigualdade, portanto, condição e característica imutável dos seres da natureza, inclusive o homem, atinge também o ambiente social, no qual é também importante considerar a desigualdade, como definidora de funções sociais e estruturação de classes, a fim de compor uma sociedade mais complexa e interessante.

Ainda na Antigüidade Clássica, a idéia já inspirava alguns dos filósofos. Na República de Platão, o autor, em seus Diálogos, sustentava a necessidade de cultivar a diferença entre os indivíduos, a fim de permitir o nascimento da cidade ideal:

"[...] o que causa o nascimento de uma cidade, penso eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas; ou julgas que existe outro motivo para o nascimento de uma cidade? [...] Portanto, um homem une-se a outro homem para determinado emprego, outro ainda para outro emprego, e as múltiplas necessidades reúnem na mesma residência um grande número de associados e auxiliares; a esta organização demos o nome de cidade [...] As tuas palavras sugerem o seguinte raciocínio: em primeiro lugar, a natureza não fez todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e aptos para essa ou aquela função, Concordas?" [06]

A desigualdade é, assim, essencial para a própria constituição da cidade, ou mais especificamente, nos nossos dias, do Estado. Esse argumento de nenhuma maneira macula a intenção moral do filósofo em considerar que a desigualdade, quando causadora de preconceitos e injustiças, possa ser essencialmente negativa e deva ser repugnável, como motivação para a perpetuação de atos injustos. Na própria obra "As leis", essa intenção fica clara, na medida que filósofo adverte que quando a igualdade é conferida a coisas desiguais, o resultado será desigual, ou seja, o tratamento igual de coisas desiguais é moralmente reprovável, pois causador de injustiças.

Da mesma forma, também seu discípulo, Aristóteles, em "A Política", defende a desigualdade entre os indivíduos como fator de pluralidade na comunidade, ou mais especificamente, no Estado:

"O Estado que se tornar progressivamente uma unidade deixará de ser Estado. A pluralidade, nesse caso, é natural; e quanto mais o Estado se afastar da pluralidade, em direção à unidade, menos Estado será e mais próximo estará de uma família [...] porque o Estado consiste não simplesmente de homens, mas de diferentes espécies de homens; não se pode fazer um Estado a partir de homens iguais [...] as dessemelhanças entre os membros é essencial para a constituição de um Estado [...] é o equilíbrio perfeito entre diferentes partes que dá existência à cidade". [07]

A idéia presente ainda na época clássica da história da filosofia grega e até hoje incontestável sugere que a desigualdade é essencial para o desenvolvimento da cidade-Estado corroborando a importância das funções sociais.

Do ângulo mais moderno, esse argumento pode ser sintetizado nas palavras da professora Renata Vilas-Bôas, dada a essencialidade do pensamento filosófico grego:

"[...] a sociabilidade, tal como a convivência e a coexistência, só é possível em razão de forças que se equilibram, tais como interesses, necessidades, direitos e deveres, sendo umas contrárias às outras. Desta forma, a desigualdade parece ser vital para a existência da própria sociedade". [08]

Nesse sentido, pode-se concluir que a desigualdade é essencial para as sociedades em geral, tanto no que diz respeito necessidade do pluralismo social, tanto no que diz respeito ao equilíbrio econômico, na divisão do trabalho etc. Essa foi e é uma característica a todas as organizações societárias, desde as mais antigas até as mais modernas.

Em termos gerais, a desigualdade fática, essencial entre os homens, por si só, não se configura negativa. As reais diferenças de sexo, cor, origem e idade, quando devidamente respeitadas, contribuem para a constituição de uma sociedade fraterna, plural e multifacetada. Estados que saibam lidar com as várias circunstâncias apresentadas pelas diferenças sociais oriundas de diversas origens, formam construções societárias influenciadas por tradições culturais distintas, alimentadas por pontos de vista múltiplos, privilegiados pela convivência harmônica entre seus membros.

Entretanto, essa visão ideológica é suplantada pela constatação também fática de que as diferenças acabam por gerar a submissão de certos grupos por outros, tendo em vista critérios diferenciadores relacionados ao poder, "seja riqueza, na oligarquia, seja nascimento, na nobreza, seja virtude, na aristocracia", como previa Aristóteles. [09]

Tanto é verdade que, durante a maior parte da história humana, foi exatamente a idéia de superioridade, fundada na existência da diferença e apregoada por alguns grupos, que nos levaram as mais vergonhosas formas de degradação social.

Vale dizer, a ética da diferença na sociedade não pode ser caracterizada como sendo uma "ressurgência moderna de um nacionalismo anti-humanista" [10], mas exatamente o contrário. Não deve haver superioridade de um grupo em detrimento de outro, em razão da diferença inexorável que há entre os seres, mas sim respeito a todos os grupos sociais e o direito à diferença natural entre os seres constituintes da sociedade.

Assim, a propugnada busca pela igualdade não é pretexto para desconhecer a realidade da diferença entre indivíduos, entre as culturas e sociedades, nem tampouco para negar-lhe seu direito à diferença.

Aristóteles concebe dois significados sobre justiça, um ligado à legalidade e outro ligado à igualdade. Fazendo distinção entre justiça e injustiça, Aristóteles observa que, a despeito dos termos serem tomados em vários sentidos e não se perceba claramente sua ambigüidade, como noções que se distanciam uma das outras, é possível descrever as ações humanas que caracterizem eles próprios como justos ou injustos. Para ele, o justo é o que observa a lei e respeita a igualdade e o injusto o que é contrário à lei e que falta à igualdade. [11]

Essa noção de justiça, que se relaciona diretamente com a igualdade em Aristóteles, é por ele considerada como justiça distributiva, na qual, pode-se supor que "é matematicamente lógico que pessoas iguais recebam porções iguais de coisas a serem divididas, enquanto que pessoas desiguais recebam quinhões desiguais destas mesmas coisas, consistindo o justo em tratar desigualmente fatores desiguais". [12]

Se para Aristóteles era patente a vinculação do princípio da igualdade com o conceito de justiça, também o é para o jurisfilósofo norte-americano Jonh Rawls, autor utilitarista que construiu uma teoria da justiça, baseada em princípios que são conceitos-chave da democracia liberal.

Dentre os princípios de justiça demonstrados por Jonh Rawls, pode-se dizer que o da igualdade eqüitativa é o mais importante, dentro dos conceitos de liberdades pessoais. Como exemplo, ele sugere iguais condições de oportunidades, para beneficiar ao máximo os menos favorecidos da sociedade, tendo em vista o precedente princípio da diferença, que deve ser respeitado.

Nota-se que os conceitos de justiça, tanto de Aristóteles, quanto de Rawls, tratam da questão do princípio da igualdade como norteador deste. Apenas para demonstrar uma das diferenças entre os conceitos dos dois, pode-se dizer que, aprofundando o mesmo conceito de justiça dado por Aristóteles, baseado somente no mérito, Rawls defende a igualdade de oportunidades, além do mérito, como descrito abaixo:

" [ ...] diz-se que a igualdade eqüitativa de oportunidades exige não somente que cargos públicos e posições sociais estejam abertos no sentido formal, mas que todos tenham chance de acesso a eles. Para especificar a idéia de chance eqüitativa dizemos: supondo que haja uma distribuição de dons naturais, aqueles que têm o mesmo nível de talento e habilidade e a mesma disposição para usar esses dons, deveriam ter as mesmas perspectivas de sucesso, independentemente de sua classe social de origem. Em todos os âmbitos da sociedade deve haver praticamente as mesmas perspectivas de cultura e realização para aqueles com motivação e dotes similares". [13]

Portanto, resta demonstrado, em dois tempos históricos - distintos e distantes - a inegável influência do princípio da igualdade no conceito que se tem sobre justiça. Por isso, à todas as luzes, não se pode desconsiderar que a igualdade de tratamento e de oportunidade se apresenta como elemento primordial da noção de justiça.

Partindo dessa concepção, o Direito serve à sociedade para reparar as arbitrariedades impostas pelas desigualdades fáticas existentes entre os homens, elevadas ao status econômico, social, cultural, étnico e religioso, coibindo seu abuso e imprimindo aos princípios, principalmente o da igualdade, importância elevada, a fim cumprir ao mister de ser justo.


EVOLUÇÃO DO CONCEITO E A POSITIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Embora as idéias que propunham igualdade remontem aos primeiros filósofos, precursores de todo o conhecimento ocidental, somente foram disseminadas e inseridas no ordenamento jurídico, como forma de norma positivada, após as revoluções sociais ocorridas nos séculos XVII e XVIII.

Em cada um dos períodos em que foram discutidas, estavam sob a determinação de um contexto histórico, limitado pelo pensamento ideológico e filosófico subjacente à estrutura econômica e social das épocas em que foram levantadas.

A apreensão do conceito, depende, pois, da inteligência de sua inserção em alguns momentos históricos, ou seja, "para ser devidamente compreendido, o conceito de igualdade precisa estar situado em um contexto filosófico, uma vez que se trata de um conceito em constante evolução". [14]

Para Norberto Bobbio, as regras de distribuição (denominação utilizada por ele para identificar normas que destinem tratamentos iguais ou desiguais aos indivíduos) devem possuir um critério que permita classificá-las como igualitárias ou não. [15]

Segundo seu entendimento podem ser considerados os critérios tradicionais de igualitarismo, numéricos, de proporcionalidade, de mérito, de distribuição de riquezas, de igualdade de oportunidades, de satisfação de necessidades fundamentais etc. [16]

Esses critérios aos quais Bobbio se referia, são visualizados durante todo decorrer do processo histórico e evidentemente com ele modificam-se, na dependência da ideologia de cada contexto inserido.

De fato, se considerarmos que a afirmação "Todo homem nasce igual" é uma das máximas políticas mais repetidas no decorrer do tempo e que sua formulação e reformulação ocorre no decorrer de todo o tempo histórico, é necessário, preliminarmente, para possibilitar um melhor entendimento do princípio, regressar à uma suscinta, brevíssima e generalista evolução de sua origem até os dias atuais. Como declara Bobbio:

"Esta máxima aparece e reaparece no amplo arco de todo pensamento político ocidental, dos estóicos ao cristianismo primitivo, para renascer com novo vigor durante a Reforma, assumir dignidade filosófica em Rousseau e nos socialistas utópicos, e ser expressa em forma de regra jurídica propriamente dita nas declarações de direitos, desde o fim do século XVIII até hoje". [17]

O autor resume em pontos estratégicos a evolução do princípio. Vejamos, portanto, como se deu a evolução do pensamento ocidental sobre a idéia igualitária, de modo brevíssimo e generalista, ressaltando alguns pontos básicos para sua compreensão atual:

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2.1. A igualdade na Antiguidade Greco-Romana

Iniciando o estudo com a Antigüidade Clássica, diz-se que os gregos formularam o conceito principiológico da igualdade, em termos que persistem até hoje, a despeito do fato da sociedade grega permitir incoerências inaceitáveis para o pensamento moderno, como a escravidão e limitação de direitos dos não-cidadãos. [18]

Na República de Platão a idéia da igualdade é recorrente. Fundamentado nos diálogos, o filósofo conclui que a democracia é o melhor sistema de governo, que tem como pilar a igualdade de direitos entre os cidadãos (que abrangem tão-somente os gregos nascidos na cidade-estado, excluindo-se as mulheres, crianças, estrangeiros e escravos). Entretanto, cumpre salientar, trata-se tão-somente de uma igualdade de oportunidades para o exercício da política, eis que possibilita aos cidadãos, igual poder de representação, igualando-os somente nessa condição, relevado, é claro, o conceito de cidadão grego.

Pela leitura dos diálogos escritos por Platão, pode-se afirmar que Sócrates admite a desigualdade com algo positivo, entendendo que a organização da cidade, para que seja ideal, deve contar com a divisão do trabalho de modo racional. Entretanto, ao que tudo parece, a divisão de classes em homens de ouro (que tem como virtude a sabedoria, e são os filósofos), de prata (tem como virtude a fortaleza e são os soldados), de bronze e de ferro (que tem como virtude a temperança e são os artesãos, que produzem os bens para a subsistência da sociedade), segundo suas funções sociais, é uma estrutura que enaltece a desigualdade, deixando transparecer uma certa carga de discriminação entre os homens, pois, é devido a esta atribuição de valores que cada um é mais ou menos importante na estrutura social. [19]

Cumpre dizer, até na cidade ideal de Platão, totalmente desvinculada da cidade concreta de Atenas, de sistema político injusto, corrupto e decadente, os não-cidadãos (incluídas as mulheres) e escravos não tinham direito à participação política nenhuma.

Entretanto, ainda assim, Platão admite a ascensão pelo mérito, em sua organização social ideal, ou seja, reconhece que, pela educação, é possível dar mobilidade à estrutura social, embora não seja esse o reflexo que perpassou toda Antiguidade Clássica. Sabe-se que não havia interesse político em abolir a escravidão, principalmente por parte dos filósofos, os quais eram privilegiados pelo trabalho do povo, que permitiam suas eternas preocupações com a verdade.

Aristóteles defende a tese da igualdade numérica, a qual afirma que um sistema moral ou juridicamente igualitário é aquele em que todos os benefícios e encargos são distribuídos, em partes iguais, por todos. Para ele, são iguais os homens a medida em que são tratados igualmente e identicamente no número e volume de coisas recebidas.

Em Ética a Nicomacos, Aristóteles vincula o conceito de justiça ao conceito de igualdade, considerando que o justo é o proporcional, o igual, o que corresponde em certa medida à eqüidade. Vejamos:

"Uma das espécies de justiça em sentido estrito e do que é justo na acepção que lhe corresponde, é a que se manifesta na distribuição de funções elevadas de governo, de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da cidade, pois em tais coisas uma pessoa pode ter uma participação desigual ou igual à de outra pessoa [...] Se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação igual nas coisas [...] Além do mais, isto se torna evidente porque aquilo que é distribuído às pessoas deve sê-lo de acordo com o mérito de cada uma [...] O justo nessa acepção é portanto o proporcional e o injusto o que viola a proporcionalidade". [20]

Oportuno salientar que o filósofo grego considera dois significados gerais para o termo justiça: um relacionado à justiça como legalidade (há justiça quando há respeito à lei e injustiça quando não há respeito à mesma, chegando-se à conclusão de que justiça coincide com o respeito à legalidade, embora não se confunda legalidade com justiça, mas considera-se que a justiça só poderá ser atingida uma vez respeitada a legalidade) e outro relacionado à justiça como igualdade, classificando-as em comutativa (considerando a relação entre às partes) e distributiva (considerando sua relação entre o todo e as partes e vice-versa). [21]

Recorrendo a Pegoraro, pode-se afirmar que Aristóteles, ao deduzir as duas modalidades de justiça relacionada à igualdade - distributiva e a comutativa –, entendeu que a segunda regula as ações da sociedade política em relação ao cidadão e tem por objetivo a justa distribuição dos bens públicos: honras, riquezas, também encargos sociais e obrigações. O critério da distribuição de tais bens sociais é a igualdade, mas não é uma igualdade matemática, mas uma "igualdade geométrica ou proporcional, que leva em consideração o dever de cada um dar o que é devido, pesando, sobretudo, os dotes naturais, como dignidade, nível das funções, formação e posição na hierarquia organizacional da polis". [22]

Um contra-senso, pois, é perceber que o próprio filósofo tenha justificado e disseminado o axioma que afirma que "alguns homens são livres por natureza, enquanto outros são escravos, para estes últimos a escravidão é conveniente e justa". [23]

Imperioso ressaltar que a sociedade grega não permitiria outro pensamento senão o da classe dominante, que pretendia a manutenção do status quo, embora haja a notícia de que os filósofos sofistas, até hoje tão duramente criticados, se opunham ao sistema escravagista.

Não se pode, portanto, identificar como igualitária a sociedade grega, nem tampouco democrática no sentido mais abrangente do termo, que inclui características de liberdades e igualdade, já que não existia respeito às classes minoritárias, como mulheres, crianças e escravos. A manutenção de todos os privilégios dos "homens de ouro" enquadram-na mais aproximadamente em um conceito de oligarquia. Ademais, a igualdade existente era somente a política, realizada entre os cidadãos, todas as demais liberdades e todos os demais indivíduos não eram considerados.

No que diz respeito a Roma e aos tempos pós-romanos, há se que esclarecer que também havia escravidão, e, além dela, a relação entre patrícios e clientes. Significa que existia uma desigualdade social profunda entre os cidadãos romanos. Ao comentar sobre o período histórico aqui destacado, Pontes de Miranda afirma:

"Os mais fracos, inseguros, indecisos, que não podiam viver por si, buscavam a proteção de outrem, forte ou mais eficaz. Tudo se passava em torno de ter casa, comida, assistência, educação, convivência. Nem votavam diferentemente, nem testemunhavam um contra o outro". [24]

Sem sequer liberdade de voto independente, não poderia existir igualdade, que dirá democracia, que é composta desta última. Por isso, a despeito da plenitude lógica e elegância estilística das leis romanas, decepcionam-nos o conjunto de regras arbitrárias existentes sobre a escravidão. Como exemplo, ressalte-se que os homens, os escravos, mesmo após adquirir liberdade, nem sempre adquiriam todos direitos a ela inerentes, sobretudo o de voto.

Essa estrutura social e essa forma de organização produtiva acabaram por refletir da maneira mais desigual possível na sociedade romana, fato que enfraqueceu a suposta democracia lá existente, incentivando com mais um fator para o radical declínio do Império.

2.2. Da igualdade na Idade Média e Cristianismo

A estrutura feudalista que daí se originou também trazia para a relação "servo e senhor", as desigualdades política, social e econômica. Semelhantemente, porém não igual, à estrutura anterior das gens, os feudos tornaram-se espaços em que reinava o senhor a seus servos, devendo os últimos a ele fidelidade. Pontes de Miranda assegura que "socialmente as classes ficaram tão discriminadas que o homem livre, casando-se com um servo, caia também em servidão". [25]

Nesse contexto, entretanto, os servos ainda eram mais livres do que os escravos, embora estivessem sob a proteção de seus senhores, ligados em tudo a eles. Houve uma certa evolução baseada no acréscimo de liberdade que o servo foi adquirindo ao longo do tempo, sobretudo porque a servidão poderia se transformar em colonato, dependendo da aquisição de terras de seu senhor.

Na Idade Média, a idéia de justiça, assim como, de certa forma, a de igualdade, estava baseada na moral cristã. Para os pensadores cristãos, no entendimento de Olinto Pegoraro, a justiça é uma ponte que une a comunidade de fé e a sociedade política, que é também o ponto central de toda a ética ocidental. [26]

Nesse contexto, para Santo Agostinho, os homens eram naturalmente desiguais, sendo o critério que os diferenciava estritamente relacionado ao pecado. Filosoficamente, os homens que não pecavam eram naturalmente bons e deveriam assumir seu lugar na Cidade de Deus, já os que eram considerados pecadores estavam condenados a permanecer na Cidade dos Homens, inferiormente considerada em relação ao Reino Celeste.

Renata Vilas-Bôas, ao também analisar essa relação em Santo Agostinho, afirma que seu posicionamento justificava e corroborava o fato de que os escravos eram os pecadores e estavam sujeitos a se manterem servos de outro homem, geralmente de classe social superior [27].

Longe da esfera celestial, essencialmente na Cidade dos Homens, Santo Agostinho acaba retomando a abordagem clássica de igualdade relacionada com a justiça, já desenvolvida por Aristóteles. Também eleva o conceito desenvolvido na distinção entre justiça aritmética e geométrica iniciado pelo filósofo grego, diferenciando justiça comutativa e justiça distributiva. A primeira, evidentemente referia-se a relação entre entes privados, traduzida na igualdade de troca ou comutação entre os mesmos, já a segunda se relaciona com a troca entre o particular e o público, o poder político constituído, ligados à idéia de que era necessário repartir os bens e encargos de conformidade com o mérito ou dignidade de cada indivíduo. Portanto, assim como em Aristóteles, não se tratava de uma igualdade absoluta, pois era necessário permutar bens entre indivíduos distintos, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Para S. Tomás de Aquino, que na visão de Pegoraro, concebe conjuntamente a idéia de moralidade, justiça e ética, três são as atitudes da moralidade: a posse das coisas inferiores, o reconhecimento do próximo, como igual e o respeito aos bens materiais que lhes pertencem. [28] Portanto, já se presenciava nos discursos políticos e filosóficos, o reconhecimento do outro, como igual, como propõe a doutrina cristã e, além disso, colocava essa questão numa esfera moral.

Porém, ainda que admitida à igualdade dos homens perante Deus na Igreja,idéia perpetuada pelos ensinamentos de Jesus Cristo, socialmente e economicamente eram discriminados os homens, divididos em servos e senhores, nobreza, realeza e plebe.

Ultrapassada a Idade Média e iniciada a Idade Moderna, principalmente com a formação dos Estados Nacionais, a prática econômica mercantilista, a ascensão da burguesia comerciante e o confronto entre o capitalismo recém-nascido e os entraves tradicionalistas do Antigo Regime, o Iluminismo floresceu, após a Reforma e a Renascença, trazendo à tona novas idéias sobre a temática da igualdade.

2.3. Da igualdade no Iluminismo

O Século das Luzes elegeu a razão como fundamento de todo conhecimento, nascente à época. O movimento ideológico denominado Iluminismo trazia como bandeiras a tolerância religiosa, a liberdade social e pessoal e, sobretudo, a igualdade jurídica, defendida pelos seus representantes, que, no entanto, ainda não admitiam a igualdade econômica entre os homens. Pretendia-se, tão-somente, que a igualdade no comércio fosse exercida, de forma a evitar desigualdades entre contratantes, bem como privilégios de nascença entre os homens, como era então admitido por membros da nobreza.

Essa revolução ideológica que culminou com a Revolução Francesa, teve vários representantes, dos quais se destaca Jonh Locke, contemporâneo da Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra, que defendia o respeito aos direitos naturais, como vida, liberdade e propriedade.

Jonh Locke defende que os homens só são iguais quando se encontram no estado da natureza. Apenas quando se acharem expostos a certos inconvenientes e buscarem segurança, poderão integrar uma sociedade civil, a fim de se sujeitar a um poder político maior, que irá defender seus direitos naturais.

É claro que a visão de Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, prevê que, ainda que considerados livres e iguais os homens, em seu estado natural, estes poderiam ser atingidos por violações dos direitos da vida, liberdade e propriedade. Por isso, a propugnada igualdade natural, também restaria prejudicada, de forma que é indispensável à boa convivência a realização de um pacto social que permitisse a criação de uma sociedade política que assegurasse os direitos naturais, principalmente esses da vida, da liberdade e da propriedade e só, indiretamente, o da igualdade. [29]

Porém, para contextualizar e justificar o pensamento de Locke - dentro do entendimento de Gruppi - a fim de não parecer contraditório defender a propriedade e igualdade ao mesmo tempo, basta notar que o Estado na Idade Média transmitia a propriedade pela herança, de forma que "o rei transmita para seus filhos a propriedade patrimonial do Estado e o poder; o latifundiário transmitia a terra; o marquês, o marquesado; o conde, o condado; isto é, todos os bens e todo o poder sobre esses bens". [30] Assim, juntamente com a propriedade do Reino, era passado também, pela herança, de mão em mão nobre, a característica de imobilidade social das classes. O direito inclusive corroborou esse fato por longa data.

Deve-se relevar o fato de que, nesse contexto, a sociedade política e a sociedade civil obedeciam a normas e leis diferentes. Portanto, a igualdade apregoada por ele inclina-se para a submissão de todos a uma mesma lei, sem que a propriedade de um fique desprotegida em relação a de outro. O Estado, nesse sentido, não deve interferir na propriedade, mas sim tutelar o livre exercício desse direito, fundamentado nas bases originais da livre iniciativa e livre concorrência características do liberalismo econômico. [31]

Jean Jaques Rousseau admite a desigualdade natural (ou física) entre os homens, ao analisar o estado do homem na natureza, que se manifesta em função da idade, da saúde, das forças do corpo, das qualidades do espírito e da alma e de outros critérios de desigualdade que os diferenciam, porém não as considera negativas para a sociedade. [32]

Para ele, é a desigualdade moral ou política - distinta da desigualdade natural - que promove a distinção social entre os homens, de forma que nasce uma convenção para atingir o interesse comum, surge certo desenvolvimento social, iniciam-se as primeiras famílias e é estabelecida a propriedade, que é, certamente, para o filósofo, a origem de toda desigualdade.

Rousseau reflete, assim, um pensamento um pouco distinto dos filósofos iluministas, à medida que critica duramente a burguesia e encontra na propriedade privada a raiz das infelicidades humanas.Esse posicionamento é relevado, sobretudo porque destoa radicalmente da situação social imposta pela época, levantando-se contra a escravidão e submissão de um homem por outro, mais fraco socialmente. Vejamos como se manifesta no seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens:

"Os ricos, de sua parte, nem bem experimentaram o prazer de dominar, logo desdenharam todos os outros e, utilizando seus antigos escravos para submeter outros, só pensavam em subjulgar e dominar seus vizinhos [...] Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades um espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem [...]Ergueu-se entre o direito do mais forte e o primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos." [33]

Assim, fica claro que Rousseau, na visão de Gruppi "refere-se à igualdade diante da lei, à igualdade jurídica, mas também chega a compreender que existe um problema de igualdade econômica, econômico-social". [34]

Rousseau defende, ainda, que somente o Estado é capaz de oferecer aos cidadãos uma igualdade política e jurídica, fundando as bases do Estado democrático mais parecido com as feições que se conhece hodiernamente. O autor suíço foi um dos mais importantes inspiradores da Revolução Francesa, que fundou suas bases nos conceitos de liberdade, igualdade e fraternidade e reestruturou o ordenamento jurídico, de forma a contemplar um sistema de igualdade perante a lei para todos: o clero, nobreza e terceiro estado, a fim de permitir uma quebra dos privilégios de certos grupos sociais.

2.4. A igualdade no constitucionalismo liberal

Destaca-se a consagração da Declaração dos Direitos do Homem e dos Direitos dos Cidadãos como fato histórico mais relevante da Era das Revoluções. Rompendo com o tradicional, foi a primeira vez que o homem foi considerado como tal e foram reconhecidas suas liberdades, sobretudo frente ao Estado que as limitava. Com esse passo inicial, na visão de Bobbio: "a Revolução Francesa, entrou prepontentemente na imaginação dos homens a idéia de um evento político extraordinário que, rompendo a continuidade do curso histórico, assinala o fim último de uma época e o princípio primeiro de uma outra". [35]

Embora a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão seja um marco histórico, cumpre esclarecer que foi anteriormente precedida do Bill of Rights, das colônias norte-americanas em busca de independência. Entre as semelhanças entre as duas declarações, pode-se elevar o caráter naturalista, que, na visão de Norberto Bobbio, tem como ponto comum "a afirmação de que o homem tem direitos naturais que, enquanto naturais, são anteriores à instituição do poder civil, e por conseguinte, devem ser reconhecidos, respeitados e protegidos por esse poder". [36]

Esse pensamento foi importante porque realmente destruiu a idéia que sustentava, tradicionalmente, a legitimidade de uma relação desigual entre governantes e governados, soberanos e súditos. Bobbio sintetiza com maestria essa temática, ao afirmar:

"Nos termos da linguagem política, a potestas vem antes da libertas, no sentido de que a esfera de liberdade reservada aos indivíduos é concedida magnanimamente pelos detentores do poder. Em termos hobbesianos, a lex – entendida como mandamento do soberano – vem antes do ius, no sentido de que o ius, ou o direito do indivíduo, coincide pura e simplesmente com o silentium legis". [37]

Desse pensamento nasce também outro no que se refere à inversão das conjecturas até então vigentes. Anteriormente à Declaração, pode-se dizer que não havia um caráter individualista da sociedade, mas sim uma concepção organicista, que considera o todo anterior às partes. Invertendo essa afirmação, é possível compreender que a história afirma que vem primeiro o indivíduo e não a sociedade. Esse princípio se encontra solenemente inscrito no artigo 2º da Declaração, que determina que a finalidade de toda associação é a conservação dos direitos individuais. Nesse contexto, pela primeira vez na história, se reconhece que o todo, que não passa de mera abstração, é resultado da livre vontade das partes. [38]

Embora presentes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, as liberdades individuais não eram completas e nem efetivas. A concepção liberal do Estado demonstra, por exemplo, que os direitos políticos sofriam restrição em razão da má distribuição de renda. Vejamos como Gruppi sintetiza esse pensamento:

"Na Itália do século passado, por exemplo, só tinha direito de eleger e ser eleito quem pagasse determinado nível de impostos, isto é, exclusivamente os proprietários. Essa distinção entre proprietários e não proprietários é o alicerce do liberalismo e é expressa com extrema lucidez por Kant [...] Aqui fica em plena evidência a relação entre propriedade e liberdade; só é livre quem for proprietário [...] A relação indissociável entre propriedade e liberdade é justamente a essência do liberalismo [...] Fala-se de povo num sentido geral, mas depois, dentro desse povo, se faz discriminação entre quem pode exercer os direitos civis por ser independente - e quem não pode [...] A soberania do povo deve ser delimitada por algumas leis que estão acima dela e são invioláveis, indiscutíveis: o direito de propriedade, a liberdade de palavra, de expressão, de reunião, de associação. Liberdades que, na prática, são gozadas apenas por quem tiver recursos suficientes para usufruir delas". [39] [grifo nosso]

Assim, após a experiência da Revolução Francesa, a Europa toda se mostra tendente a admitir os ideais liberalistas. Separados a sociedade civil e o Estado, a liberdade ganha um significado, na visão de Gruppi, de ser somente "o direito de se submeter somente a lei; de não ser preso, ou mantido na cadeia, ou condenado à morte, nem sofrer maus tratos de qualquer outro tipo pela vontade arbitrária de um ou mais indivíduos". [40]

Nesse contexto, as relações entre liberdade e igualdade apregoadas nos ideais que inspiraram a Revolução começam a tomar novo sentido, com a derrota de sua fase democrática, de Robespierre, e a conseqüente propagação das idéias de novos pensadores.

Benjamin Constant, por exemplo, defendeu a identificação entre propriedade e liberdade, numa ideologia mais identificada com os valores burgueses liberais da época. Diferentemente de Rousseau, que só concebia a liberdade no contexto da igualdade, Benjamim polemizou ao declarar que a igualdade, tal como defendida por Rousseau, era uma ameaça à liberdade.

Evidentemente, ele estava em prol de uma classe que pretendia tutelar a propriedade e só admitia a desigualdade dos homens perante à lei, não tão profundamente quanto Rousseau havia concebido-a, ao considerá-la também no aspecto econômico.Gruppi afirma que "Constant defende assim a identificação entre propriedade e liberdade, isto é, a liberdade como diferença e não como igualdade". [41]

Tocqueville também vai se defrontar com essa mesma problemática na relação entre igualdade e liberdade política. Porém, ele se ocupa da preocupação sobre a realização da igualdade em detrimento da liberdade. Em outros termos, ele questiona "se a igualdade para qual tende a humanidade não vai destruir a liberdade [...] enfim, se a igualdade não vai se transformar em tirania". [42] Vejamos, com mais profundidade, seu pensamento:

"Considero como ímpia e detestável a máxima que diz que em matéria de governo a maioria de um povo tem direito a tudo; entretanto, coloco na vontade da maioria a origem de todos os poderes. Estaria me contradizendo? Existe uma lei geral que foi feita, ou pelo menos adotada, não só pela maioria de todos os homens. Essa lei é a justiça" [43].

Entretanto, outros críticos existiam acerca do liberalismo nascente. Contrariamente às várias concepções liberais e individualistas sobre a liberdade que vigiam à época, Fredrich Hegel, por exemplo, vai restabelecer plenamente a distinção entre Estado e sociedade civil. Para ele, não há "sociedade civil se não existir um Estado que a construa, que a componha e que integre suas partes; não existe povo se não existir Estado, o Estado é que funda o povo e não o contrário". [44]

Hegel se opõe ao liberalismo porque sua concepção organista do Estado não realiza que o Estado liberal seja ético. Pelo contrário, acredita que ele não educa, mas visa tão-somente garantir a esfera das liberdades, a inviolabilidade da pessoa, a iniciativa privada no campo econômico, ou seja, não diminui as desigualdades econômicas tão acirradas à época. [45]

Assim, ainda que uma Declaração reconhecesse e contemplasse a igualdade perante a lei, ela se restringia efetivamente aos burgueses. Ademais, o crescimento do capitalismo impunha aos operários uma divisão do trabalho injusta, exploração de sua mão-de-obra e submissão a baixíssimos salários. As condições de trabalho oferecidas durante os séculos XVIII e XIX, durante a Revolução Industrial, agravavam o quadro de marginalização social entre os homens e acirrava o contexto de desigualdade social.

Destarte, diante da crescente industrialização, avanço do capitalismo, e incessante aumento da classe burguesa industrial, a inexorável situação humana de desigualdade social se elevava. Nesse contexto, Adam Smith e outros representantes do pensamento liberal burguês, fundadores da nova concepção econômica, permitiram a teorização das leis econômicas que faziam o capitalismo crescer rapidamente em toda a Europa.

Ainda que relevada sua importância, e apesar dela, a Declaração foi alvo de duras críticas por diversos pensadores. Edmund Burke, incomodado com a falta de efetividade do princípio, manifestou-se da seguinte forma: "Nós não nos deixamos esvaziar de sentimentos para nos encher artificialmente, como pássaros embalsamados num museu, de palha, de cinzas e de insípidos fragmentos de papel exaltando os direitos do homem". [46]

Taine também, um século depois, expôs que a Declaração não passava de "dogmas abstratos, metafísicas, axiomas mais ou menos literários [...] ora falsos, ora contraditórios, suscetíveis de vários significados opostos". [47]

Também Marx não deixou de se exaltar contra a Declaração, mas em sentido oposto ao de Taine, afirmou que os artigos que elevam certas liberdades a direitos naturais, além de exaltar a propriedade como sagrada e inviolável, não são excessivamente abstratos, mas, sim, excessivamente concretos, expressando a ideologia e o interesse de uma classe dominante, a burguesia, que substituía a classe feudal no Antigo Regime. [48]

Visando reverter esse quadro, a ideologia socialista sugeriu o fim da exploração social dos trabalhadores e das injustiças sociais cometidas. Duas correntes principais se destacaram: o socialismo utópico e o científico. Semelhantes, propunham uma sociedade fundada na propriedade comum e na luta de classes. A idéia da igualdade social, política e econômica se torna recorrente no pensamento político da época, que pretende suplantar os desígnios do capitalismo e da burguesia.

Os principais idealizadores do movimento socialista foram Karl Marx e Friedrich Engels (socialismo cientifico) e Proudhon e Owen (socialismo utópico). Expunham, sobretudo, as mazelas do capitalismo, no que diz respeito à desigualdade econômica.

No entanto, pode-se dizer que a crítica à concepção burguesa do Estado teve início, verdadeiramente, logo depois da Revolução, com Babeuf e Buonarroti. Iniciadores do comunismo utópico, pregavam que "a liberdade e igualdade de que falava a Revolução Francesa não eram realmente universais [...] era liberdade e igualdade apenas para uma parcela da sociedade, para o poder economicamente dominante, isto é, a burguesia". [49]

O comunismo utópico teorizou e o socialismo tentou aplicar que, após a elevação da igualdade jurídica ao status de princípio, deveria existir uma revolução que resultasse em igualdade efetiva perante à lei, pois a igualdade jurídica não desfez as desigualdades reais, provenientes de fatores sociais e econômicos.

Para Marx o princípio da igualdade - que no entendimento dos teóricos atuais é "uma construção jurídico-formal, segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio" [50] - traduz-se num progresso enorme. Porém adverte que o princípio não deixa de ser uma abstração, uma mera ficção, eis que "cinde a unidade do homem, a unidade entre o homem e o trabalho e mesmo o homem diante da lei. O cidadão é uma hipótese jurídica, uma forma jurídica". [51]

Entretanto, a utópica ditadura do protelariado pregada por Marx e a real ditadura coercitiva, corrupta e burocrática, que restringiu senão todas, a grande maioria das liberdades individuais, culminando com a Guerra Fria e a divisão bipolar do mundo, ruiram frente a já conquistada democracia, ainda que sob um regime econômico de modo de produção capitalista, por muitos considerado injusto, porém livre.

George Orwell, autor de "1984", crítico voraz dos regimes totalitários do século XX, descreve, na obra A Revolução dos Bichos, a hipocrisia que perpassa as relações político-sociais, numa sociedade em que todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. O contexto em que o livro foi escrito corrobora o quadro de privilégios existentes, presentes, inclusive no regime comunista. Aliás, durante todo o curso da história, ainda que formulados todos os preceitos necessários a aplicação do princípio da igualdade, este nunca foi realmente efetivado.

Era necessário preservar a igualdade, mas também, da mesma forma, liberdade. Afinal, liberdade e igualdade é que servem, conjuntamente e somente assim, ao fundamento do conceito de democracia. Norberto Bobbio esclarece com propriedade a questão:

"[...] Todos são iguais, pelo menos enquanto são livres. Ao contrário, uma sociedade histórica pode ser constituída de homens livres, mas não iguais nas respectivas esferas de liberdade, assim como de iguais enquanto não são livres, ou, mais sucintamente, pode ser constituída de desiguais na liberdade e de iguais na escravidão [...] Entre as muitas definições possíveis de democracia, um delas – a que leva em conta não só as regras do jogo, mas também os princípios inspiradores é a definição segundo a qual a democracia é não tanto uma sociedade de livres e iguais (porque tal como se disse, tal sociedade é apenas um ideal-limite), mas uma sociedade regulada de tal modo que os indivíduos que a compõem são mais livres e iguais do que em qualquer outra forma de convivência [...] A maior ou menor democraticidade de um regime se mede precisamente pela maior ou menor liberdade de que desfrutam os cidadãos e pela maior ou menor igualdade que existe entre eles". [52]

O comunismo propunha que os indivíduos tivessem as mesmas condições materiais, obtendo em troca o sacrifício de grande parte de suas liberdades. O mundo todo optou pela liberdade, já que a igualdade não pôde ser concebida sem esse precedente.

Vários pensadores liberais só concebem a igualdade neste contexto, dentre eles, Rui Barbosa, que afirma que liberdade, igualdade e democracia são conceitos afins e não há democracia sem o necessário vínculo entre igualdade e liberdade:

"Liberdade, democracia e igualdade andam ligadas, até certo ponto. A igualdade abrange mais do que as duas outras: a sua realização, em conseqüência disso, é mais lenta. Quem não é livre, também não é igual aos que são livres. No conceito de liberdade, A é livre, portanto desigual de quem não é livre. No conceito de igualdade, A é igual a B pode significar que A e B são escravos, ou servos ou livres. Se A é igual a B e B é livre, A e B são iguais em liberdade. Podem não ser, e provavelmente não são, em outras propriedades (talentos, bens, idades, estado civil, nacionalidade). Quando se tira ao homem a liberdade, tira-se quase tudo mais". [53]

Assim, relacionado à liberdade e democracia, pelo menos teoricamente, o conceito abstrato e formalíssimo de igualdade deu sustentação jurídica a todo Estado Liberal e continua a mantê-lo, que, a despeito de toda crítica que se faz a ele. Foi elevado ao princípio constitucional na grande maioria dos Estados Constitucionalistas e atravessa agora reformulação jurídica constante, a fim de que dele se irradie efetividade.

À vertente da igualdade material que se propugnava com a idéia do Estado Social, principalmente após a Constituição de Weimar, que tratava a igualdade do indivíduo como um direito público subjetivo, consistente, sobretudo, numa nova forma de proteção do cidadão contra o tratamento arbitrário do Estado, surge o conceito de igualdade de oportunidades. Vejamos como Guilherme Machado Dray se posiciona a esse respeito:

"Com efeito, a noção de "igualdade de oportunidades" surge como um ponto de encontro entre duas grandes tradições jurídico-ideológicas existentes a propósito da igualdade: a liberal, que ao assentar na neutralidade do Estado, concebe a igualdade de oportunidades como uma igualdade de condições jurídicas independentemente da existência de desigualdades de meios factuais; e a social, que assenta no restabelecimento da própria igualdade factual, como condição necessária para a promoção de uma igualdade real. Assim, enquanto que a primeira vê a igualdade de oportunidades de um ponto de vista estritamente formal, a segunda, pelo contrário, concebe a igualdade de um ponto de vista material, apelando por isso uma visão positiva e intervencionista da igualdade". [54]

Sobre a relação entre democracia, justiça, igualdade, escolhe-se jurisfilósofos como o italiano Norberto Bobbio e os norte-americanos Dworkin e John Rawls, a fim de dar contribuição atual para a tônica e abrangência do princípio, principalmente se considerado o paradigma acima considerado.Vejamos como se referem à temática.

Norberto Bobbio, a despeito de conseguir identificar claramente as relações entre democracia, justiça, igualdade e liberdade, não reconhece que haja, nem que tenha havido nenhuma sociedade na história da humanidade que tenha permitido que os homens fossem totalmente livres e iguais. O jurista admite que "a sociedade de livres e iguais é um estado hipotético, apenas imaginado. Imaginado como se situando ora no início, ora no fim da história, conforme se tenha do curso histórico da humanidade uma visão regressiva ou progressiva". [55]

Bobbio reconhece que para que seja possível a realização da utópica sociedade descrita, a justiça deve nortear o conceito de igualdade. Para ele, a justiça é valor, enquanto a igualdade é um fato. "Que duas coisas sejam iguais entre si não é justo nem injusto, ou seja, não tem valor nenhum em si mesmo, nem social nem politicamente". [56] Por isso, devem existir alguns critérios de justiça para que haja a aplicação da igualdade.

A escolha deste ou daquele critério está ligada às concepções gerais da ordem social, que dita certas ideologias a seguir. Algumas sociedades elegem o mérito, o trabalho, o resultado, o posto, dentre outros como critérios a nortear a concepção de justiça, expressa na máxima generalíssima e repetida inúmeras vezes na história "a cada um, o seu", dando-lhe algum significado menos impreciso. [57]

Embora reconhecida a importância da igualdade jurídica pelo jurista italiano, ele entende que a interpretação deste deve levar necessariamente em conta a igualdade de oportunidades para identificação mais justa do mesmo. Por isso, em sua visão, "o princípio de igualdade de oportunidades, abstratamente considerado, não tem nada de novo: ele não passa de aplicação da regra de justiça a uma situação na qual existem várias pessoas em competição para a obtenção de um objetivo único". [58]

Portanto, em determinadas situações dos Estados contemporâneos, em que a sociedade é considerada globalmente e há uma concepção de conflito eterno (como dito anteriormente, deveras antigo, como a disputa pelo solo, alimento etc.) pela obtenção dos bens que a economia moderna permite seja distanciados sobremaneira de tantos grupos sociais, esse princípio deve ser aplicado, a fim de permitir igualdade no ponto de partida da competição humana pelos bens e como medida de inclusão social de grupos marginalizados que, sem a aplicação do princípio, estariam ad eternum nessa mesma condição distanciada da sociedade.

Jonh Rawls desenvolve uma teoria sobre a justiça, afirmando que ela é essencial numa sociedade e que seu conceito depende sobremaneira das concepções que os grupos sociais têm sobre ela. Para Rawls, a estrutura social contém tantas posições sociais, que homens nascidos iguais diante da lei, têm condições e expectativas de vida diferentes, determinados por circunstâncias econômicas e sociais. Vejamos:

"Assim, as instituições da sociedade favorecem certos pontos de partida mais do que outros. Essas são desigualdades especialmente profundas. Não apenas são difusas, mas afetam desde o início as possibilidades de vida dos seres humanos; contudo, não podem ser justificadas mediante um apelo às noções de mérito ou valor. É a essas desigualdades, supostamente inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade, que os princípios de justiça social devem ser aplicados em primeiro lugar. Esses princípios, então, regulam a escolha de uma constituição política e os elementos principais do sistema econômico e social. A justiça de um esquema social depende essencialmente de como se atribuem direitos e deveres fundamentais e das oportunidades econômicas e condições sociais que existem nos vários setores da sociedade." [59]

Nesse sentido, conclui-se que ele propõe a aplicação do princípio da igualdade formal conjuntamente com o princípio de igualdade de oportunidades, considerando, assim como Bobbio, a relação necessária entre justiça, liberdades individuais e igualdade social no contexto democrático.

Cabe ressaltar que a justiça social tem significado em Rawls de uma distribuição adequada de vantagens e ônus sociais, de forma que é necessário distribuir os bens de forma homogênea entre os seres sociais. Entretanto, como é cediço, não se pode tratar de forma igual os desiguais, nem de forma desigual os iguais, o que permite concluir facilmente que seu conceito de justiça está vinculado fortemente com a questão da igualdade de oportunidades, que, com sua idéia de redistribuição de bens e valores, tende a corrigir as desigualdades materiais existentes, com a necessária intervenção do Estado, principalmente, com a prática das denominadas discriminações positivas/ ações afirmativas.

Ronald Dworkin também trata da questão da liberdade e igualdade, agrupando essa última em várias concepções distintas, elaboradas, cada uma, por um grupo social específico que defende interesses próprios. A classificação se divide em concepções libertárias da igualdade, concepções baseadas na igualdade do bem-estar, concepções baseadas na igualdade material e concepções baseadas na igualdade de recursos. Tomando o exemplo do direito de propriedade, Dworkin exemplifica as concepções acima. Vejamos:

"As concepções libertárias de igualdade pressupõem que as pessoas têm direitos naturais sobre qualquer propriedade que tenham adquirido de modo canônico, e que o governo trata as pessoas como iguais quando protege a posse e fruição de tal propriedade. Por outro lado, as concepções que têm por base o bem-estar, negam qualquer direito natural à propriedade, e, insistem, pelo contrário, a regular a propriedade para obter resultados definitivos por alguma função específica da felicidade ou do bem estar [...] A igualdade do bem-estar [...] exige que o governo designe e distribua a propriedade de modo a tornar, na medida do possível, o bem-estar do cidadão mais ou menos igual...Semelhante teoria – da igualdade material – exige que o governo torne a riqueza material de seus cidadãos, ao longo de suas vidas, o mais igual possível. Outra teoria, que chamarei de igualdade de recursos, exige que o governo atribua a cada cidadão a mesma quantidade de recursos, para que cada os consuma ou invista como achar melhor. Ao contrário da igualdade de material, a igualdade de recursos admite que a riqueza das pessoas deve diferir, uma vez que elas fazem opções diferentes em questões de investimento e consumo." [60]

Podemos concluir, assim, que o princípio da igualdade – que tomou corpo formalmente após as Declarações de Direitos, principalmente a Declaração Francesa de 1789 e a Declaração Americana de 1776, consagrava tão-somente a ótica liberal contratualista, na qual os bens relevados à tutela e proteção eram à liberdade, a segurança e a propriedade. Com o advento do constitucionalismo no Estado Liberal, nasceu a idéia da necessária limitação e controle do poder Estatal, a fim de coibir as práticas absolutistas passadas. [61]

No entanto, essa perspectiva do princípio da igualdade mostrava-se essencialmente formal e não assegurava de forma material os valores sociais necessários à equidade condizente com o Estado Social então vigente. Nesse diapasão, a não atuação estatal, que em regra significava liberdade, acaba por prejudicar a idéia condizente com o princípio igualitário. Daí a necessidade do Estado se despir de sua suposta neutralidade para urgentemente equilibrar relações tidas como injustas na seara social.

Sabe-se que o princípio isonômico é uma conquista social proveniente das Revoluções Liberais e que desde então, a maioria, senão a totalidade das Constituições, o elevou à categoria de princípio norteador do ordenamento jurídico democrático.

Entretanto, o princípio, ainda que presente nas Constituições ou leis, ainda que fundamento do ordenamento jurídico democrático, não se mostra suficiente para assegurar que minorias, principalmente mulheres, negros e deficientes físicos, tenham o mesmo tratamento determinado na norma, principalmente ao considerar a eqüidade sob a ótica de iguais oportunidades e meios para o desenvolvimento social das minorias, inclusive para assumir papéis sociais de maior relevância. [62]

Esse fato acabou por ensejar em toda uma doutrina de estudos diversos sobre o princípio, alguns até concluindo pela sua falta de efetividade, diante das inegáveis desigualdades materiais presentes na sociedade democrática – ainda que a mesma carregue a bandeira da igualdade como característica intrínseca do Estado de Direito, evitando abusos por parte do Estado e respeito entre os iguais.

Para Carmem Lúcia Antunes Rocha, a "experiência mostrou, que tal como construída, à luz da cartilha oitocentista, a igualdade jurídica nada mais era do que uma ficção". [63] De forma tal que a mesma afirma que o Direito Constitucional que abrigava o princípio isonômico "acanhava-se em sua concepção meramente formal [...], despojado de instrumentos de promoção de igualdade como vinha sendo até então cuidado". [64]

Importante salientar outro fator que leva a uma maior preocupação sobre o debate da temática: o século XX foi terreno fértil para manifestações de intolerância e discriminação, principalmente diante das tentativas frustradas de eliminação do racismo, anti-semitismo, xenofobia, machismo e outras formas discriminatórias de exclusão social. Até os dias atuais verifica-se a prática de atos bárbaros de grupos neonazistas e racistas em diversas partes do mundo.

Aliás, muito embora existam Declarações e Convenções Internacionais que velem pela igualdade, manifestem repúdio às formas de discriminação e proíbam de forma veemente quaisquer atividades que possam caracterizá-la, a prática da discriminação não foi ainda banida da sociedade. Contrariamente, visualiza-se cada vez com mais freqüência, atitudes intolerantes, que trazem no bojo a mesma carga discriminatória que já fora tratada anteriormente, expressa na diferença entre o "eu" e o "outro", principalmente quando há uma grande discrepância entre a força entre ambos.

O combate a qualquer forma de discriminação é uma medida emergencial à efetividade do princípio da igualdade, que foi sendo substituído, ao longo do tempo, por seu conceito mais dinâmico, ligado à realização do princípio material de igualdade. Ainda nas palavras do Ministro do STF:

"Como se vê, em lugar da concepção "estática" da igualdade extraídas das revoluções francesa e americana, cuida-se nos dias atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção "dinâmica", "militante" de igualdade, na qual, necessariamente, são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade". [65]

Imperioso, portanto, que a sociedade se proponha a pensar em novas formas de minimizar efeitos nefastos causados pelo perene fenômeno discriminatório, bem como propugnar políticas que evitem práticas semelhantes com futuras gerações.

Assim, expressão da igualdade formal não foi suficiente para abolir privilégios nem evitar discriminações e tornar acessíveis aos desiguais oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente mais privilegiados. A igualdade deveria se traduzir em igualdade de condições para que fosse possível a aplicação do princípio.

No mesmo diapasão, principalmente o que sugere a reformulação do princípio da igualdade formal para a igualdade de oportunidades, surgem certas políticas que têm como maior objetivo extinguir ou no mínimo mitigar o peso das desigualdades econômicas, sociais e políticas que impedem a aplicação da justiça social e distributiva, além de minimizar todas as liberdades expressas na Constituição Federal.

Com essa nova visão, resultou a necessidade de garantir igualdade de oportunidades, a fim de ver realizado o princípio constitucional da igualdade em sua mais completa interpretação.

Trata-se, verdadeiramente, no entendimento do constitucionalista Clèmerson Clève, de uma passagem do conceito estático e negativo do princípio para um conceito dinâmico e positivo. Diferentemente da postura a que o Estado estava acostumado a assumir, agora é questão de se agir e não se abster:

"Com efeito, o Direito Constitucional Emancipatório, comprometido com a dignidade da pessoa humana, não deve persistir no conceito estático e formal da igualdade; bem pelo contrário, cumpre a ele propugnar por fórmula jurídica do princípio da igualdade na qual o escopo precípuo é, através da desigualação positiva, promover a igualação jurídica efetiva". [66]

Sobre a autora
Carolina Reis Jatobá Coêlho

Advogada. Graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília , pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional pelo IDP e pós-graduação lato sensu em Ordem Jurídica e Ministério Público, pela FESMPDF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COÊLHO, Carolina Reis Jatobá. Do princípio da igualdade à ação afirmativa.: A trajetória do direito à inclusão social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2899, 9 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19298. Acesso em: 23 dez. 2024.

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