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Estudos sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos.

De Westfália às Nações Unidas

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Agenda 03/07/2011 às 08:37

2.A Ascensão dos Valores Humanos: novas relações entre indivíduo e poder

Segundo ensina Fábio Konder Comparato (2004, p. 40) o reconhecimento dos direitos humanos, próximo do que se tem nos dias atuais, apenas foi possível depois um longo trabalho de preparação com fulcro na limitação do poder político e no reconhecimento de que os governados são a prioridade e não os seus governantes.

Sobre o caminho percorrido pelos direitos humanos, cabe evocar a lição de Norberto Bobbio (1992, p. 6) onde o jurista italiano ensina que "os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer".

Neste sentido, os direitos ditos essenciais a pessoa humana são frutos das mais diversas lutas sociais, seja contra o poder, a opressão, o desmando, gradativamente, ou seja, corroborando a lição de Bobbio, não passam a existir todos de uma vez, surgindo quando as condições lhes forem favoráveis, momento em que se passa a reconhecer a sua necessidade para afiançar a cada indivíduo e à sociedade uma existência digna.

Os direitos humanos nasceram, assim, da necessidade dos cidadãos se tornarem titulares de certos direitos em relação a seu Estado soberano e, consequentemente, em relação à comunidade internacional. Desenvolveram-se acompanhando as demandas dos indivíduos em determinadas épocas sempre com o escopo de proteger a dignidade humana, seu principal fundamento.

Diversos fatores desencadearam a luta dos indivíduos por seus direitos, merecendo maior destaque acontecimentos como o desenvolvimento do comércio, criando, com isto, uma nova classe, a burguesia, que antes, na sociedade feudal, não participava das decisões; o surgimento do Estado Moderno, abrindo azo para a centralização do poder político, ou seja, passando a existir um só direito para todos dentro do reino, sem as inúmeras fontes de onde emanava o comando, característica do período medievo, e, uma alteração no modo de pensar, onde os fenômenos passam a ter explicação científica através da razão e não apenas por meio de uma visão religiosa, ocorrendo, deste modo, uma mundialização da cultura. (MARTÍNEZ, 1999, p. 115-127).

Nesta linha de raciocínio, alguns episódios que marcaram a história humana acabaram por se caracterizar como elementos motrizes do processo de ascensão de liberdades públicas, desaguando no processo de promoção dos direitos humanos.

Assim, acompanhando o ideário insurgente, durante o século XVII diversos documentos eivaram-se de vital importância para o desenvolvimento da tese dos direitos humanos como o Petition of Rights (Petição de Direitos),de 1628, assinada na Inglaterra pelo Rei Carlos I, versando sobre a necessidade de consentimento na tributação, reclamava o julgamento pelos pares para a privação da liberdade e ainda pugnava pela proibição de detenções arbitrárias. (FERREIRA FILHO, 1998, p. 12).

A Lei do habeas corpus, do ano de 1679, criada entre os ingleses como um ato de defesa da liberdade individual. protegia os súditos de prisões ilegais ou abusivas. Seus pilares serviram como fonte inspiradora de ordenamentos semelhantes em todo o mundo. (COMPARATO, 2004, p. 86).

No ano de 1689, também na Inglaterra, surge o Bill of Rights (Declaração de Direitos), consistindo, grosso modo, em uma sinopse das liberdades inglesas anteriores. (COMPARATO, 2004, p. 90)

Sobre a percepção do momento histórico onde se deram os maiores avanços no sentido de se ter ações efetivas no âmbito da proteção dos direitos humanos, expressiva é a lição de Hélio Bicudo (1997, p. 32):

[...] ainda que a proteção dos direitos humanos conhecesse desde a cidade antiga antecedentes notáveis, sua história não se desenvolve verdadeiramente senão com o Estado moderno, que reflete fundamentalmente as novas compressões das relações entre o indivíduo e o poder.

Ainda em uma linha evolutiva, somente com o século XVIII surgem textos declarativos de direitos no sentido moderno, com especial relevo para a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a  Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte francesa de 1789.

Anunciando, a partir do século XVIII, uma era de mudanças significativas no trato do tema, não se pode negar a importância da era das revoluções para o reconhecimento de direitos inerentes a pessoa humana. Neste sentido, seus textos em muito contribuíram com esta tarefa, cada um é claro colaborando à sua maneira, sendo os textos americano e francês, os que, de forma decisiva, influenciaram o ideário presente nas futuras constituições dos Estados. (RUBIO, 1998, p. 82).

A explicação para o maior destaque dado pelos doutrinadores às contribuições americana e francesa, em detrimento da colaboração da Inglaterra, vincula-se a própria evolução histórica de reconhecimento de direitos aos ingleses e de limitação do poder real que ocorria desde a Magna Carta de 1215, sendo, portanto, uma continuação de conquistas anteriores e não uma ruptura com o antigo Regime como o fora na Revolução Francesa. (MARTÍNEZ, 1999, p. 148).

O Bill of Rights de 1689, explica-se, perfilhou alguns direitos ao indivíduo como o direito de liberdade, o direito a segurança e o direito a propriedade privada, direitos estes que já estavam esculpidos em outros documentos, porém devido a constante violação dos mesmos pelo poder real foram rememorados na esperança de que desta vez, de fato, pudessem ser respeitados. (ARAGÃO, 2001, p. 32).

O seu texto, na visão de Comparato (2004, p. 90), também conferiu limites ao poder real deslocando para o Parlamento as competências de legislar e de criar tributos, e, institucionalizando a separação de poderes, com a abolição do Absolutismo pela primeira vez desde o início da Idade Moderna sendo esta, segundo o autor, a sua contribuição principal.

Ainda sobre a Declaração de Direitos inglesa, o autor afirma que:

[...] apresenta, assim, um caráter contraditório no tocante as liberdades públicas. Se, de um lado, foi estabelecida pela primeira vez no Estado moderno a separação de poderes como garantia das liberdades civis, por outro lado essa fórmula de organização estatal, no Bill of Rights, constituiu o instrumento político de imposição, a todos os súditos do rei da Inglaterra, de uma religião oficial. (COMPARATO, 2004, p. 92)

Destarte, embora de extraordinária importância para por obstáculos ao poder real por meio da separação de poderes e da passagem da competência de legislar e de criar tributos da pessoa do monarca para o Parlamento, tal documento se contradiz ao perpetrar tamanha brutalidade em relação aos direitos humanos, pela imposição aos ingleses de uma religião oficial, eliminando, com isto, a possibilidade da prática de outras crenças dentro da Inglaterra.

Sob tal cenário, muitos ingleses receosos com a perseguição empreendida contra aqueles que não comungavam da religião oficial tomaram o rumo das colônias americanas, buscando em seu território um novo modo de vida com fulcro na liberdade e na tolerância, levando consigo o pensamento de que existem alguns direitos inerentes à pessoa humana que devem ser respeitados pelo poder político. (RUBIO, 1998, p. 82).

Assim, nesta nova perspectiva, no ano de 1773, em Boston, na colônia, um grupo de 300 pessoas jogou ao mar caixas contendo chá em claro protesto pelos impostos instituídos pela Coroa britânica sobre os artigos nativos. Em 1774 foi criado um exército comum entre as colônias evidenciando que o respeito em relação à Metrópole cada vez mais se fragilizava abrindo passagem para o processo de Independência. (RUBIO, 1998, p. 83).

E, em 1776, com a elaboração da Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, primeiro documento da história que enumerava em suas linhas os chamados direitos individuais, assegurando que todos os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, gravando na história o nascimento dos direitos humanos. Duas semanas após, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, separando as colônias norte-americanas da Inglaterra, repetia em seu corpo o teor da Declaração da Virgínia, ratificando o solene reconhecimento de que todos os homens são igualmente vocacionados, por sua própria natureza, ao aprimoramento constante de si mesmos. (COMPARATO, 2004, p. 49).

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Nesta esteira de acontecimentos, merece grifo especial a passagem histórica ocorrida em 26 de agosto de 1789, assinalando o momento a partir do qual surge a mais importante e famosa declaração de direitos fundamentais, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, marcada em sua essência pela universalidade dos direitos inaugurados, e que afirma solenemente que "a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos fundamentais nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição" [2].

A data e o evento são marcantes, pois não só, utopicamente, como também legalmente, o homem passava a ser visto como portador de direitos, e não apenas de deveres. A partir daí, o Estado Absolutista não era mais o sujeito exclusivo de direitos no âmbito internacional. Podendo-se afirmar, inclusive, que com tal marco dá-se o primeiro passo para uma legitimação das aspirações populares, e para uma limitação do poder soberano do Estado.

Diante do absolutismo fazia-se forçoso impedir os abusos, o excesso e o arbítrio do poder. Nesse período histórico, os direitos humanos vêm ao mundo como instrumento de reação e resposta aos exageros cometidos pelo regime vigente, na tentativa de infligir controle e limites à atuação do Estado. A solução era controlar o poder estatal, que, para tanto, deveria ser moderado pela legalidade e pelo respeito os direitos fundamentais. (PIOVESAN, 2010, p. 143).

Georges Lefebvre (apud BOBBIO, 1992, p. 85), acentuado historiador da época, a respeito da Declaração de 1789, asseverou que "Proclamando a liberdade, a igualdade e a soberania, a Declaração foi o atestado de óbito do Antigo Regime destruído pela Revolução".

A explicação oficial para a eclosão da Revolução Francesa se pauta no enorme descontentamento da burguesia francesa, grande mantenedora da monarquia àquele momento, com o parasitismo da nobreza que drenava as riquezas do Estado, mantendo a população em um estado de penúria inadmissível, o que seria uma grande afronta à dignidade humana.

Nesta esteira, sabe-se que a afirmação do Estado Liberal opera-se a partir da Revolução Francesa, quando a classe burguesa, após a tomada do poder político que até então pertencia aos monarcas, divide as funções do Estado, com a tripartição de seus poderes entre o legislativo, o executivo e o judiciário.

Com certeza foi uma resposta aos exageros praticados pelo regime absolutista, com a tentativa de fixar controle e limites à abusiva atuação do Estado. (MELLO, 2000, p.130-132).

Em conformidade com os ensinamentos de José Afonso da Silva:

O texto da Declaração de 1789 é de estilo lapidar, elegante, sintético, preciso e escorreito, que, em dezessete artigos, proclama os princípios da liberdade, da igualdade, da propriedade e da legitimidade e as garantias individuais liberais que ainda se encontram nas Declarações contemporâneas, salva as liberdades de reunião e de associação que ela desconhecia, firmando que estava em uma rigorosa concepção individualista. (SILVA, 2003, p.158).

Norberto Bobbio (1992, p. 61), analisando a teoria individualista, entende que esta desempenhou função de grande relevância ao colocar o indivíduo singular, com valor em si mesmo, em primeiro lugar, ajeitando o Estado em uma posição secundária. Desta forma, o Estado seria feito pelo indivíduo, e não este feito pelo Estado.

Sob a égide desta inovação, Ferrajoli (2002, p. 28) afiança que: "Com a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, e depois com as sucessivas cartas constitucionais, muda a forma do Estado, e, com ela muda, até se esvaziar, o próprio princípio da soberania interna".

O mestre italiano complementa seu raciocínio do seguinte modo:

De fato, divisão dos poderes, princípio da legalidade e direitos fundamentais correspondem a outras tantas limitações e, em última análise, a negações da soberania interna. Graças a esses princípios, a relação entre Estado e cidadãos já não é uma relação entre soberano e súditos, mas sim entre dois sujeitos, ambos de soberania limitada. [...] Sob esse aspecto, o modelo do estado de direito por força do qual todos os poderes ficam subordinados à lei, equivale à negação da soberania. (FERRAJOLI, 2002, p. 28).

E, arremata:

Com a subordinação do próprio poder legislativo de maioria à lei constitucional e aos direitos fundamentais nela estabelecidos, o modelo do estado de direito aperfeiçoa-se e completa-se no modelo do estado constitucional de direito, e a soberania interna como potestas absoluta (poder absoluto), já não existindo nenhum poder absoluto, mas sendo todos os poderes subordinados ao direito, se dissolve definitivamente. (FERRAJOLI, 2002, p. 33)

Desta forma, para o referido autor, resolve-se a questão da limitação da soberania interna dos Estados, que, diante do Estado democrático de direito, não teve outro destino, a não ser se diluir.

Em rota diametralmente oposta caminhou a soberania externa, alcançando seu auge, entre o século XIX e meados do século XX. Situação bem representada pelas guerras e conquistas coloniais, caracterizando muito bem o novo Estado de natureza selvagem demonstrado por Hobbes, conforme o visto em linhas pretéritas, como um ambiente de soberanias externas ilimitadas e desenfreadas, com a expansão das grandes potências mundo afora. (FERRAJOLI, 2002, p. 34).

Sobre a ampliação da soberania externa como poder absoluto dos Estados, Ferrajoli (2002, p. 39 e 40) explica que no período compreendido entre as duas guerras mundiais (1914-1945) tal fenômeno chega a seu ápice. Todavia, com a criação da ONU (Organização das Nações Unidas) em 1945 e via da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, considerados pelo jurista italiano, os dois fatos chaves para tirar o mundo, ao menos no plano normativo, do Estado de natureza o levando para um Estado civil, ocorre o seu declínio, fazendo com que a soberania externa deixe de ser livre e absoluta, passando a se subordinar a duas normas fundamentais: i) O imperativo da paz; ii) A tutela dos direitos humanos. Com esta alteração substancial a própria acepção de soberania internacional absoluta ou ilimitada, acompanhando aquilo que a soberania interna já sofrera antes, torna-se inconsistente.

Ante ao trazido acima, pode-se concluir que com a queda do poder soberano tradicional, o indivíduo passa a ocupar a posição de sujeito de direitos perante a sociedade internacional, abrindo grande espaço entre os Estados, que até então eram os únicos a figurar neste posto, dando início, assim, a um processo de internacionalização dos direitos do homem, conforme será visto a seguir.

2.1.A Internacionalização dos Direitos Humanos

2.1.1 Precedentes Históricos

O estudo acerca dos precedentes históricos da internacionalização dos direitos humanos realça-se de importância para o entendimento de seus reflexos no mundo hodierno.

Igualmente, arrazoa Flávia Piovesan (2010, p. 115) que se na ordem contemporânea o tema da proteção dos direitos humanos surge como questão central, pode-se inquirir quais seriam os seus precedentes históricos da moderna sistemática de proteção desses direitos na seara internacional?

Em sede de resposta a indagação acima, a celebrada autora ensina que o fenômeno dos direitos humanos teve como balizas históricas de sua de internacionalização a Liga das Nações ou Sociedade das Nações (SDN), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Direito Internacional Humanitário. (PIOVESAN, 2010, p. 115).

No que se refere à Sociedade das Nações – SDN, (1920-1945), criada logo após a Primeira Guerra Mundial, tinha por objetivo promover a cooperação, a paz, e a segurança internacional, condenando as agressões externas, defendendo a integridade territorial e a independência política. O Pacto da Liga, de 1920, grifa-se, contava com dispositivos que restringiam a soberania absoluta dos Estados, valorizando o respeito aos direitos humanos como prioridade e objetivo de todos os componentes da sociedade internacional. (PIOVESAN, 2010, p. 116 e 117).

Cabe aqui destacar que desde a época da Liga das Nações, já se cogitava a possibilidade de uma ingerência em nome da proteção dos direitos humanos. A este respeito, de forma muito tênue, o corpo do artigo 13 do Pacto da Liga faz referência a solução diplomáticas de conflitos, entretanto, defende soluções pela via arbitral, com a aplicação de medidas necessárias para afiançar os efeitos da sentença do Tribunal de arbitragem [3].

Entretanto, devido à não consecução da prevenção da Segunda Guerra Mundial [4], a Liga acabou por ser dissolvida em sua 21ª sessão. Deste evento, porém, nasceu a ideário de uma nova organização, que foi inicialmente altercada pelo Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt e pelo Primeiro Ministro inglês Winston Churchill, na Carta do Atlântico, de 14 de agosto de 1941.(COMPARATO, 2004, p. 211).

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) constituída no ano de 1919 cooperou de sobremaneira com o processo de internacionalização dos direitos humanos, contando com mais de uma centena de Convenções internacionais promulgadas, garantindo um modelo justo e digno nas relações laborais. Segundo Louis Henkin,

a Organização Internacional do Trabalho foi um dos antecedentes que mais contribuiu à formação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. [...] foi criada após a Primeira Guerra Mundial para promover parâmetros básicos de trabalho e de bem-estar social. (HENKIN apud PIOVESAN, 2010, p. 117)   

Devido às especificidades desta pesquisa, nas linhas que se seguem, será oferecido tratamento diferenciado ao Direito Internacional Humanitário uma vez que de suas origens despontam as bases sobre as quais as ingerências humanitárias do período contemporâneo são justificadas.

2.1.1.1 O Direito Internacional Humanitário

Nesta esteira, em uma primeira análise "o Direito Humanitário constitui o componente de direitos humanos da lei da guerra". (BUERGENTHAL apud PIOVESAN, 2010, p. 115).

Tem o direito humanitário o condão de ser o regramento que se aplica em hipóteses de guerra, colocando limites aos atos do Estado, e, afiançando a observância, nesta situação especial, dos direitos fundamentais dos militares postos fora de combate e da população civil envolvida no conflito. Caracteriza-se, desta forma, o direito humanitário como a primeira manifestação de que no plano internacional mesmo em situações de conflito bélico existem limites à liberdade e autonomia dos Estados. (PIOVESAN, 2010, p. 116)

Mesmo entendendo que o recurso à guerra é um modo agressivo dos Estados resolverem suas contendas, não fazendo uso das soluções diplomáticas e jurídicas, a ela se impõem uma cadeia de regras de caráter humanitário advindas de convenções ou pautadas nos costumes. Tais normas compõem o Direito Internacional Humanitário. (ARAÚJO, 2000, p. 329).

O Direito Internacional Humanitário, desta forma, origina-se dos primeiros estudos e debates acerca do Direito Internacional e de suas consequências em relação às situações de guerra, tendo os seus primeiros estudos realizados por São Tomas de Aquino, classificando como imprescindível a uma guerra justa, que o beligerante proceda com reta intenção (ARAÚJO, 2000, p. 328) e tomando o pensamento de Hugo Grócio, que sublinha a necessidade de introduzir restrições às situações de conflitos, protegendo a vida e a integridade física das pessoas inocentes ou não envolvidas deliberadamente, ainda no ano de 1625, em sua obra The Rights of War and Peace - O direito da Guerra e o Direito da Paz – onde o jurista holandês formaliza alguns do temas principais do Direito Internacional, apontando as causas justas e injustas para que seja deflagrado um conflito, as obrigações impostas pelos tratados, os direitos dos embaixadores, assim como, lecionando sobre a paz no período pós-guerra, trazendo as condições para as tréguas, os direitos dos prisioneiros e as sentenças. (GRÓCIO, 2011. p. 1150).

No entanto cabe assinalar que até meados do século XIX, os Estados imersos em uma determinada disputa, eventualmente, podiam firmar acordos para resguardar as vítimas das guerras. Todavia, esses tratados somente se aplicavam ao conflito para o qual haviam sido forjados.

Como que inaugurando um novo período, em 1864 é elaborada a Convenção de Genebra, com o objetivo de aliviar o destino dos militares feridos nos exércitos em campanha. Foi o primeiro tratado internacional nesta seara, sendo válido para qualquer conflito vindouro entre os países partes. A partir de sua elaboração dá-se o primeiro passo em um processo de sucessivas formalizações de acordos internacionais sobre o assunto em comento. (REZEK, 2000, p. 365).

Neste diapasão, até o final da 1ª Guerra Mundial, a proteção dos indivíduos que se encontravam em guerras internacionais provinha dos direitos e obrigações dos Estados beligerantes, tomando por suporte o conjunto de normas ratificado por eles. A característica fundamental que acompanhava o direito internacional, nessa etapa, era o contratualismo, ou seja, a aplicação dos termos de um tratados ou convenção só teria lugar em um conflito, caso fosse ratificado por todas as partes nele envolvidas.

O quadro exposto acima somente sofre alterações substanciais com a mudança na forma de se fazer guerra e com a observância de seus efeitos danosos. Sobre esta alteração paradigmática, Dalmo de Abreu Dallari (2002, p. 81) leciona que:

toda guerra é, em princípio, um momento de irracionalidade, de substituição de todos os avanços conquistados, às vezes penosamente, durante a longa marcha civilizatória da humanidade pela força bruta, é um momento de retorno à barbárie. Por esse motivo, quando no século dezenove as guerras se tornaram mais "tecnológicas", ficando mais fácil matar o inimigo à distância, e quando os meios de divulgação já permitiam a difusão mais ampla de informações sobre os males causados pela guerra, começou um esforço de homens de boa vontade, no sentido de estabelecer limites às ações de guerra. Foi assim que se desenvolveu o chamado "Direito de Genebra", que tem seu ponto de partida com a celebração de um acordo multilateral, conhecido como Convenção de Genebra, em 1864, sendo esse um marco fundamental no desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário. Depois disso vieram diversos tratados e acordos internacionais, fixando limites ético-jurídicos para as violências em ações de guerra, tratando da proteção devida às populações civis envolvidas numa circunstância bélica e, além disso, colocando as exigências mínimas quanto ao tratamento a ser dispensado aos prisioneiros de guerra, para que se preserve a dignidade humana.

Desta feita, é a partir da Segunda Guerra Mundial e de seus efeitos catastróficos para a humanidade, que, sob a pressão dos movimentos de direitos humanos, começa-se a pensar na defesa direta da pessoa humana em situações de guerra. E, em virtude da influência dessa nova vertente humanitária, foram elaborados, no mês de agosto do ano de 1949, mais quatro Convenções de Genebra, numeradas de I a IV, na seguinte ordem: Convenção para a melhoria da sorte dos feridos e doentes das Forças Armadas em campanha; Convenção para a melhoria da sorte dos feridos, doentes e náufragos das Forças Armadas no mar; Convenção relativa ao tratamento dos prisioneiros de guerra; e, por fim, Convenção relativa à população civil em tempo de guerra. (REZEK, 2000, p. 365).

A grande inovação das Convenções em tela consiste na regulação, pela primeira vez, dos confrontos armados ocorridos dentro do território dos Estados, recebendo tratamento de modo expresso pelo artigo 3º, fixador de uma pauta mínima de humanidade a preponderar nos embates, com igual aproveitamento às quatro Convenções e com a seguinte redação:

ARTIGO 3. Em caso de conflito armado de caráter não-internacional que ocorra em territórios de uma das altas partes contratantes, cada uma das partes em conflito deverá aplicar, pelo menos, as seguintes disposições:

1) As pessoas que não tomarem parte diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tiverem deposto as armas e as pessoas que ficarem fora de combate por enfermidade, ferimento, detenção ou qualquer outra razão, devem em todas circunstâncias ser tratadas com humanidade, sem qualquer discriminação desfavorável baseada em raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo.

Para esse efeito, são e continuam a ser proibidos, sempre e em toda parte, com relação às pessoas acima mencionadas:

a) atentados à vida e à integridade física, particularmente homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios;

b) tomadas de reféns;

c) ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes;

d) condenações proferidas e execuções efetuadas sem julgamento prévio realizado por um tribunal regularmente constituído, que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados.

2) Os feridos e enfermos serão recolhidos e tratados.

Um organismo humanitário imparcial, tal como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer seus serviços às Partes em conflito.

As Partes em conflito deverão empenhar-se, por outro lado, em colocar em vigor por meio de acordos especiais todas ou parte das demais disposições da presente Convenção.

A aplicação das disposições anteriores não afeta o Estatuto Jurídico das Partes em conflito. [5]

O sistema de proteção consagrado pelo "Direito de Genebra" repousa sobre alguns princípios, como a neutralidade, significando que a assistência humanitária não pode ser utilizada como instrumento de intromissão no conflito, em contrapartida, todas as categorias de indivíduos protegidos devem abster-se de qualquer ato hostil; a não discriminação, pautada na ação protetiva sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, língua, classe social ou opiniões políticas, filosóficas ou religiosas; e, a responsabilidade, configurada pela máxima de que o responsável pela sorte dos indivíduos protegidos e pela fiel execução das regras convencionais é o Estado preponente, e não o corpo da tropa. (REZEK, 2000, p. 365 e 366).

Ante ao exposto formou-se o cenário ideal para o surgimento de um Direito Internacional Humanitário, que, nos dizeres de Carlos Roberto Husek (2000, p. 191), caracteriza-se por constituir

um conjunto de normas internacionais, que se originam em convenções ou em costumes, especificamente destinadas a serem aplicadas em conflitos armados, internacionais ou não internacionais, que limitam, por razões humanitaristas, o direito das partes em conflito a escolher livremente os métodos e os meios utilizados no combate e protegem as pessoas e os bens afetados.

Com a cogente necessidade de se concretizar as normas do Direito Internacional Humanitário dois protocolos complementares às quatro convenções retrocitadas são elaborados em 1977 a fim de reafirmar e desenvolver seus propósitos.

Segundo Rezek (2000, p. 366), o Protocolo I se referia a conflitos internacionais, incluindo-se nesta classe as chamadas "guerras de libertação nacional". O seu texto desenvolve, de maneira especial, a proteção a proteção das pessoas e dos bens civis, bem como os serviços de socorro às vítimas, além de aperfeiçoar a estrutura de identificação e sinalização protetivas. Já o Protocolo II dedica-se ao trato mais detido do artigo 3º, comum às quatro Convenções de 1949, e versa sobre os conflitos internos do gênero da guerra civil, excluindo, no entanto, em clara homenagem ao princípio da não-ingerência internacional em assuntos internos dos Estados, os tumultos e agitações de caráter isolado nos quais não sejam possíveis a identificação nas fileiras rebeldes do mínimo de organização e responsabilidade.

Deve-se enfatizar que os dois Protocolos de 1977 tiveram motivação nos frequentes conflitos internacionais regionalizados, no imediato período subsequente à Segunda Guerra Mundial, que demandavam regulamentos que compreendessem acontecimentos que escapavam à tipicidade já conhecida das guerras anteriores, como as guerras para libertação nacional, os combates para descolonização e os conflitos de caráter revolucionário, com consequências para as populações talvez bem maiores do que as guerras tradicionais.

O somatório de dispositivos protetores estabelecido pelo aparato de Genebra permite apreender que tal estrutura abarca normas gerais e completas, no sentido de que não se restringem a determinadas categorias de pessoas, tendo, pois, aplicação entre todos os indivíduos atingidos de forma concreta ou potencialmente pelas consequências de um enfrentamento militar.

E, apontando a importância do Direito Internacional Humanitário, da OIT e da SDN para o processo de internacionalização dos direitos humanos, Flávia Piovesan (2010, p. 118 e 119) declara que a contribuição de cada um deles:

[...] registra o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocas entre os Estados; visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza, transcendiam os interesses exclusivos dos Estados contratantes. Essas obrigações internacionais voltavam-se à salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados.

Do exposto, pode-se atentar para uma situação evidente, qual seja, o avanço obtido na luta pelo reconhecimento e valorização dos direitos humanos ao longo dos anos não apenas no domínio exclusivo dos Estados, mas também no âmbito internacional, especialmente no período que vai desde a primeira reunião em Genebra no ano de 1864 sobre o Direito Internacional Humanitário, passando pelo início do século XX, com as colaborações da SDN e da OIT, aportando finalmente em meados dos anos de 1940, onde os horrores de dois conflitos internacionais de grande monta fizeram eclodir uma nova forma de pensar a humanidade, rompendo com o modelo westfaliano e inaugurando um sistema internacional de proteção aos direitos humanos, tendo como elemento impulsionador o sistema contido na Carta das Nações Unidas.

Sobre o autor
Rodrigo Cogo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)<br>Professor dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. Estudos sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos.: De Westfália às Nações Unidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2923, 3 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19427. Acesso em: 20 nov. 2024.

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