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A Democracia no pensamento de Hans Kelsen

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Agenda 10/07/2011 às 17:53

8. A democracia em Kelsen remete a administração estatal à idéia de legalidade [83]. Liberdade, no plano teórico, é tida como ausência de domínio e inexistência do lugar do "chefe". Na realidade social, contudo, os chefes existem e Kelsen afirma a superioridade do sistema parlamentar no controle dos chefes [84]. Relaciona a separação dos poderes a democracia, mas acolhe a possibilidade de o sistema servir a Estados autocráticos [85], embora anteveja em si uma vocação democrática, já que pela "divisão do poder" a concentração autoritária pode ser impedida.

Kelsen realça que, na democracia, o (um) chefe do Executivo fica subordinado à vontade do parlamento (plural), o que torna fundamental a eleição, para garantir a composição do parlamento [86]. Essa eleição deve ser vista não como escolha de delegação, mas "método" de formação de órgãos estatais, superior à mera nomeação [87]. E, aqui, não há um chefe com natureza transcendental, mas um que decorre de racionalização organizacional, dotado não de valor absoluto, mas relativo. Na democracia substitui-se uma situação de irresponsabilidade pela possibilidade da responsabilização de um chefe que não é sobrenatural, porque "qualquer um pode ser eleito chefe" [88], já que a democracia induz uma crescente possibilidade do governado ascender às chefias [89].

O problema central é a questão dos chefes, que existem de fato [90], e que devem ser limitados pela adoção de eleições, que funcionam como seleção eficaz de chefes estatais. O método deve ser competitivo [91] e possibilitar a qualquer um pleitear a chefia [92], assegurados direitos de liberdade e igualdade formal, comprometendo-se todos com a regra do jogo, de maneira que a minoria eventualmente chegue a ser maioria [93].

Para o autor, se "o problema político-social é apenas saber de que modo o melhor ou os melhores podem chegar ao poder e mantê-lo", na democracia esse problema se resolve com ampla vantagem sobre a autocracia e sem a necessidade de se recorrer a argumento transcendental [94], porque vige o princípio de que qualquer um pode chegar a chefe [95].


9. Perceba-se que a teoria da democracia se insere no pensamento de Kelsen unida às demais áreas abrangidas pelo autor. Com efeito, sua composição é dependente de uma concepção peculiar do direito, do Estado e da moral, de corte positivista. Deriva dessa base sua concepção de democracia como técnica de produção do ordenamento jurídico, caracterizada pela divisão de trabalho racionalizada, com a entrega da produção normativa para um órgão especializado, que delibera, em geral, por maioria simples, e é composto mediante eleição pelo sistema proporcional, na qual votam o maior número de eleitores possível.

Conquanto enfatize a instrumentalidade da via parlamentar, centrada no princípio da maioria simples, acentua a importância da deliberação, o que o aproxima da teoria deliberacionista mais recente [96], ainda que sua ênfase seja no problema da liberdade e na conseqüente possibilidade de síntese entre a posição do Estado e a do cidadão, que deve ser reduzida a um nível aproximativo, motivo pelo qual o que distinguirá a democracia da autocracia não será a natureza ou a justificativa da representação, mas a sua forma de instituição.

Trata-se de uma democracia radicada na impossibilidade da participação direta e da unanimidade entre os cidadãos, razão da defesa dos métodos eleitoral e parlamentar, semelhantemente tanto à versão madisoniana quanto às teorias, por exemplo, de Schumpeter [97], Downs [98] ou Arrow [99], que, todavia, tendem a esgotar a questão democrática no processo eleitoral.

Há que se considerar a relação desse modelo minimalista de democracia com o relativismo de valores assumido pelo autor e com sua definição de liberdade e igualdade. A tensão entre autonomia da consciência individual e heteronomia oriunda da ordem jurídica estatal se assenta em um sentido de liberdade que se afirma tão-somente no indivíduo racional, e no relativismo extremo que decorre da suposição de uma verdade absoluta inacessível, a partir da qual valores a identificar o bom, o bem, e o certo, serão, necessariamente, contextualizados. Nessa democracia inorgânica a visão da minoria nem sempre é má, ruim, errada, já que não há valores fixos e independentes. Exige-se, pois, a possibilidade de decisões serem revertidas e valores serem trocados, embora o valor liberdade individual, típico da tradição liberal, permaneça como premissa inafastável, a condicionar qualquer conclusão.

Justifica-se, assim, uma noção fraca e formal de povo, apenas normativa, dada a impossibilidade, para o autor, de uma visão sociológica de cunho orgânico. Povo é um conjunto de pessoas subordinadas a uma mesma ordem estatal, e, ao contrário da posição de Schmitt, não exatamente um conjunto dos titulares de direitos políticos, de maneira que o exercício das funções de governo não se realiza exatamente pelo cidadão, por delegação ou representação, mas pela subordinação de cada indivíduo à ordem jurídica.

Nesse diapasão, o Estado será realidade jurídica, supostamente válida, que atua como sintetizador dos múltiplos atos individuais [100]. Vale a idéia de que "se devemos ser comandados, queremos sê-lo por nós mesmos" [101], na qual se inserem a precedência do parlamentarismo, como forma de organizar o trabalho jurídico-estatal, o princípio da legalidade, a guiar a ação do Estado que administra e do Estado que julga, e o controle de constitucionalidade, instrumento securitário.


10. Em Kelsen, direito, Estado e democracia se vinculam estreitamente. O autor afirma que o Direito é um sistema normativo, dotado de normas válidas e coercitivas, que compõem um "esquema de interpretação", a conferir sentido jurídico aos diversos atos [102]. Direito e Estado se fundem, levando à afirmação de que "o Estado é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a idéia à qual os indivíduos adaptam sua conduta" [103]. Assim, "o poder do estado é o poder organizado pelo direito positivo – é o poder do direito, ou seja, a eficácia do direito positivo. [104]"

O arranjo democrático kelseniano tem, todavia, importante suporte em sua noção de Constituição e no papel atribuído à Jurisdição Constitucional. Verificam-se relações de oposição e complementaridade entre o princípio majoritário e a jurisdição constitucional, a implicar uma tensão entre constitucionalismo e democracia. Essa tensão, porém, deve funcionar como garantia dos procedimentos democráticos e, por consequência, da liberdade individual e dos direitos da minoria [105].

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A noção kelseniana de controle de constitucionalidade dialoga com a posição clássica de Sieyés [106], implicando ênfase nas relações entre eficácia da Constituição e controles estatais [107], e entre poder constituinte e poder legiferante, exercido pelo parlamento [108]. Introduz-se, aqui, uma democracia a exigir procedimentos, que devem ser realizados por órgãos determinados, no seio do Estado [109], objeto de controles [110]. É um Estado dotado de certa racionalidade [111], que orbita em torno da noção de lei como expressão da vontade geral [112]. Afirma-se a supremacia da Constituição [113], assim como as dimensões oponíveis de democracia da legislação e democracia da administração [114].

À jurisdição constitucional compete racionalizar a relação entre Constituição e política [115], considerando-se Constituição não apenas expressão das forças políticas de uma sociedade, mas, essencialmente, norma jurídica primordial de um Estado que equivale à ordem jurídica. Kelsen destaca a questão da submissão dos poderes constituídos à Constituição e a necessidade lógica da existência de condições de controle [116], admitida a existência de limites para a representação parlamentar em face da Constituição [117].

A Constituição, admite Kelsen, possui princípios que provêm de fonte político-ideológica, mas isso não compromete seu caráter jurídico, inclusive porque sua abertura deixa os poderes constituídos "autorizados a preencher de forma discricionária" [118] a aplicação da regra. Tais princípios funcionam como limite jurídico, na condição de diretivas, sujeitas, entretanto, aos riscos de sua interpretação a cargo da jurisdição [119]. O autor se preocupa com a possibilidade do excesso de poder em um órgão [120], seja administrativo ou judiciário, embora deva-se considerar que a Constituição pré-define não somente procedimento na atividade legiferante, mas o próprio conteúdo das leis [121]. Adota, bem assim, a teoria do gradualismo [122], afirmando a semelhança entre lei e jurisdição, decisões que difeririam entre si pelo aspecto quantitativo apenas. Essa acepção cobriria, também, aspectos principiológicos e, especialmente, às diretivas constitucionais no campo de políticas estatais.

Observe-se, nessa seara, que Kelsen, na defesa da jurisdição constitucional como componente democrático, tangencia o problema de um tribunal, que deve emitir decisões de caráter jurídico, imiscuir-se na política, realizando, juridicamente, o controle da constitucionalidade de atos políticos [123]. Na identidade entre Estado e ordem jurídica, o autor funde direito e política ou, antes, permite uma absoluta tradução jurídica da política. Por isso, por exemplo, sua completa antinomia com a gramática schmittiana, que, ao contrário, tende a resolver a questão apenas sob o ângulo político, mantendo o direito em relação de subserviência ante a política, nos termos de esquemas próprios da organização estatal precedentes à noção de Estado de Direito. Poder-se-ia, com Luhmann, discutir o mesmo problema a partir de aspectos estruturais e funcionais, verificando o caráter da Constituição, e também da produção legislativa, como derivado de uma relação de acoplamento estrutural entre direito e política, que não perdem sua identidade (código-função), mas operam um pressupondo a ação do outro [124]. Em Kelsen, no entanto, democracia parlamentar, legalidade administrativa e jurisdição constitucional são os pilares possíveis a uma ordem jurídico-estatal que, de fato, deve conviver com o problema da discricionariedade conferida ao juiz ou ao administrador [125]. Nos termos do relativismo que abraça, essa é a versão mais consistente de Estado democrático concebível.


11. O relativismo de Kelsen em matéria de valores fica evidente ao considerar a democracia como forma de governo mais apta à realização da liberdade e, em termos, da igualdade [126]. O autor dialoga com vertentes teóricas que, a seu juízo, induzem o autoritarismo, que aparece conjugado à absolutização de valores. Opõe positivismo a jusnaturalismo, Estado a religião, democracia a autoritarismo. Em seu quadro de referência alinham-se, consoante a perspectiva positivista, um Estado como ordem jurídica, aberto a valores relativos, estabelecidos de forma jurídico-normativa em termos democráticos, observada a barreira contra-majoritária constitucional. Um tal enquadramento não alberga perspectivas de fundo religioso ou derivadas do direito natural.

Kelsen rechaça o argumento jusnaturalista de autores como Emil Bruner, Reinhold Niebuhr e Jacques Maritain, que defendem uma concepção cristã e absoluta de democracia. Para Kelsen, a justificação cristã é falha e não haveria, na realidade, uma relação necessária entre democracia e cristianismo [127]. O autor debate com essas posições político-teológicas, acentuando que o problema do autoritarismo não está no relativismo positivista, sujeito a toda sorte de utilizações, mas na metafísica própria da religião como do totalitarismo [128]. Em bases positivistas, afirma que fundar uma justiça na revelação divina não permite o estabelecimento de quaisquer princípios pois "envolve a falácia lógica que consiste em concluir, daquilo que é, aquilo que deve ser ou não deve ser".

Evidentemente que a sua própria argumentação, ao supor uma sociedade inicial composta por indivíduos livres e iguais, que realizam certas escolhas a partir de determinados valores, padece de mal assemelhado. Em sua teoria democrática, liberdade e igualdade são pressupostos para a escolha fundamental dos valores liberdade e igualdade. Há uma circularidade e nela o individualismo alcança valor absoluto, permitindo que se constate que o relativismo kelseniano, neste ponto, resta contaminado por um pressuposto absoluto [129]. Zagrebelsky nota o problema e o circunscreve na discussão sobre três modelos de democracia, que designa como sendo o dogmático, relativo à defesa filosófica do absolutismo; o cético, próprio do relativismo; e o crítico, de caráter reflexivo. Para o autor, Kelsen acerta na crítica à justificação metafísica da democracia, mas falha no diagnóstico, por desconsiderar a perspectiva crítica [130].

A perspectiva individualista de Kelsen é próxima à abordagem de Schumpeter, que também pretendeu uma teoria descritiva e neutra, despida de conteúdo ideológico. De certa forma, a perspectiva dos dois se encaixa, já que o mesmo indivíduo kantiano, realizando escolhas racionais, está presente. No plano da psicologia, Kelsen reforça suas posições ao dialogar com o pensamento de seu contemporâneo, Freud, ou com a psicologia social de Gustave Le Bon [131].


12. A contribuição de Kelsen para a teoria democrática compõe o amplo mosaico formado em torno do tema nos dois últimos séculos. Não por acaso, relaciona-se com o pensamento de outros autores e correntes doutrinárias, sejam antecessores, que desde o iluminismo tangenciam a questão, sejam os teóricos do século XX. Nessa gama de posições e perspectivas, verificamos modelos de democracia ora mais próximos, ora mais distantes, de Kelsen. Em alguma medida, vertentes como a elitista, a pluralista, a legalista, a participativa e a deliberacionista [132], com ela dialogam. Há, por exemplo, semelhanças sensíveis com Hayek e o pensamento liberal, em vista da defesa da liberdade e da instrumentalidade da democracia, ou com o modelo schumpeteriano, pelo patrocínio da competição eleitoral. Percebe-se, ainda, ecos do realismo de Weber e Schumpeter, e da racionalidade individual e elitismo presentes, por exemplo, em Downs. Distancia-se, porém da racionalidade societária e do procedimentalismo Habermasiano [133].

A discussão que promove sobre a democracia contém ponto de contato com o pensamento político produzido desde o séc. XVII. Entre outros aspectos, merecem realce a recepção kelseniana da base contratualista, assim como a problematização da representação parlamentar, da relação entre democracia, liberdade e igualdade, e da operacionalização de um sistema democrático fundado na disputa eleitoral.

Kelsen desenvolve, por exemplo, a questão do contrato social, dialogando com a perspectiva de Rousseau, na qual estão presentes também os temas da democracia, da liberdade e da igualdade [134]. Trata, ainda, dos fundamentos da representação [135], discutindo-os sob o prisma da unidade de interesses em oposição ao multilateralismo que adota.

O alicerce eleitoral da democracia, visto em Kelsen, já está presente na obra dos federalistas. Madison aborda a questão da multiplicidade de interesses existentes na sociedade, forjando a idéia de uma república de interesses [136], que tornaria menos provável uma combinação de interesses em favor de uma determinada facção [137]. O argumento se aproxima do kelseniano, conquanto esteja em estrutura epistemológica diversa. Há, também, semelhanças na técnica democrático-eleitoral minimalista que propõe, a revelar, igualmente, preocupação com a ação das maiorias contra as minorias [138]. Tem-se, neste caso, um conceito de democracia como "sociedade congregando um pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo pessoalmente", análogo à representação democrática organizada sob um princípio de divisão social do trabalho, verificada em Kelsen. Este último, contudo, demarca clara diferença quanto ao alcance da representação e à importância das facções partidárias para induzir uma democracia como diversidade.

Como já observado, a concepção de democracia em Kelsen assume alguns pressupostos da sociologia clássica, ainda que divirja em aspecto essencial, qual seja o caráter orgânico da sociedade [139]. Ainda assim, pode-se observar que a teoria absorve uma visão da modernidade racionalizada em termos weberianos [140], derivando da mesma um funcionalismo [141] assentado na divisão do trabalho social [142]. Note-se que, explicita ou implicitamente, de modo especial ao relatar aspectos da organização do Estado democrático, Kelsen admite a presença de estruturas, instituições e funções sociais que adquirem ação pelo menos parcialmente autônoma.

Como em Kelsen, autores como Hayek [143], Schumpeter [144], Downs [145] ou Arrow [146] defenderão modelos minimalistas de democracia, ora focados na instrumentalidade e eficiência da relação entre representação e sistema eleitoral, ora a enfatizar a defesa da liberdade individual. Em comum, verifica-se a perspectiva da racionalidade individual a escalonar preferências e realizar escolhas, todavia Kelsen apresenta-se mais relativista em termos de valores e tende a dissociar economia e política, o que não ocorre nos demais. Destaque-se, ainda em Arrow, em termos bastante sofisticados, o desenvolvimento da intuição presente em Kelsen acerca da impossibilidade de composição da vontade geral, e mesmo da vontade da maioria.

Acentue-se, ainda, que, no Kelsen de "Essência e Valor da Democracia" a proximidade com Schumpeter é significativa, já que em ambos prevalece a concepção de democracia como técnica, posteriormente, contudo, o autor conferirá mais realce à base popular da competição eleitoral [147] e criticará o modelo schumpeteriano [148], em especial seu traço mais formalista e sua afirmação de dúvida quanto à garantia de mais liberdade na democracia que em outros sistemas. Neste aspecto, mantém proximidade com Kelsen a concepção democrática de Bobbio [149], que, nomeadamente [150], absorve a base kelseniana, a assumir não somente o princípio da concorrência político-eleitoral, mas sobretudo sua fundamentação na defesa da liberdade e dos direitos fundamentais [151].

Autores de base jurídica positivista, como Bobbio, que expõe uma idéia de democracia procedimental, dotada de regras para assegurar a livre e pacífica convivência de indivíduos em sociedade [152], ou Carré de Malberg, que evidencia em sua obra o mesmo viés jurídico e a concepção da ordem democrática estatal como meio de organização [153], bem expressam a presença do formalismo positivista a associar concepções de direito e política análogas e regê-los como tendência que perpassou o século XX a justificar melhor o Estado, como ordem jurídica, que a democracia, procedimento enlaçado à defesa da liberdade.

Ante a obra de Kelsen, especialmente sua defesa da democracia como técnica, centrada no parlamento e resguardada pela Constituição, Schmitt se esmerou em denunciar a ausência de elementos substantivos na versão kelseniana de Estado democrático, ao opor seu individualismo contra uma noção orgânica de povo, tendo como base uma política hipostasiada no Estado e a adoção de um princípio de identidade, a amalgamar a relação entre Estado, governante e soberania popular [154]. Note-se que, apesar do debate enfrentado por Kelsen contra Schmitt, na defesa de suas posições, a crítica schmittiana à democracia parlamentar foi apropriada por importantes autores nas últimas décadas, entre os quais podem ser citados Paul Hirst [155], Chantal Mouffe [156] e Giorgio Agamben [157], os quais, em certa medida, atualizam o debate em termos contemporâneos.

Em campo próximo, a crítica marxista a modelos democráticos como o kelseniano remanesce em autores diversos, como Poulantzas e Jessop, os quais, discutindo democracia sobre pressupostos mais complexos [158], percebem no espaço estatal redes de interesses [159], alocadas não apenas na representação, e objeto de disputas [160] que a competição eleitoral, por si só, não alcança. Boaventura Santos, por seu turno, crítica o modelo kelseniano, a impugnar seus principais elementos, o formalismo, o individualismo, o monismo, com uma perspectiva que associa pluralismo jurídico, multiculturalismo e uma concepção de substantiva de democracia e direito como meios de emancipação social [161].

De concepções deliberativistas de democracia, percebida em autores como Habermas [162] ou Höffe [163], que, via de regra, fundamentam as relações político-jurídicas pressupondo a possibilidade da construção de um discurso intersubjetivo, a obra de Kelsen encontra pontos de atrito e de contato. A par da fundamental divergência epistemológica, tem-se, aqui, por exemplo, democracia como organização para a execução das decisões do poder, operando segundo a regra da maioria, admitindo-se a funcionalidade do parlamento, assim como o papel dos direitos humanos, da divisão de poderes [164], e da Constituição como aparato contramajoritário oponível às decisões tomadas por procedimentos democráticos [165].

A concepção de democracia em Kelsen, como visto, se abre a diálogo variado e apropriações diversas. Embora, em alguma medida, suas especificidades estejam sendo superadas pelas contingências que os novos contextos impõem, seu núcleo remanesce apto a contribuir com o debate político contemporâneo, notadamente nos pontos em que valoriza o procedimento, a liberdade e a prevalência do jurídico como mediação social, assim como em seu realismo e sua abertura a uma pluralidade de valores e interesses.

Sobre o autor
Wladimir Rodrigues Dias

O autor é professor universitário e advogado. É consultor da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e Professor da Escola do Legislativo, onde coordena os cursos de pós-graduação. Foi Juiz titular do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (2014-2016). Foi professor da PUC-MG e do UNIBH. É Doutor em Direito Público pela PUC/MG, com estágio doutoral na Universidade de Coimbra; Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra; Mestre em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro; Pós-Doutorando em Direito pela Universidade Nova de Lisboa e pela Universidade de Messina; É sócio-diretor e advogado do escritório Rodrigues Dias e Riani Advocacia e Consultoria Jurídica; Foi Ouvidor Eleitoral da OAB/MG; É diretor do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Wladimir Rodrigues. A Democracia no pensamento de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2930, 10 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19522. Acesso em: 5 nov. 2024.

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