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O conceito de deficiência para fins do benefício assistencial do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988

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3. O Benefício de Prestação Continuada como um direito da pessoa portadora de deficiência viver com dignidade

De tudo que se expôs no tópico anterior, verifica-se que, não obstante não haja univocidade legislativa acerca do conteúdo conceitual da deficiência, os conceitos mais modernos trazem a avaliação da deficiência considerada não só no aspecto técnico/médico individual, mas inserida no contexto social. Trata-se de uma hermenêutica mais ampla que atende mais largamente o cumprimento do que estabelece a Constituição Federal como fundamento do Estado Democrático de Direito, ou seja, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, que representa o desejo de toda pessoa portadora de deficiência: ser cidadão com dignidade.

A respeito do tema, não se olvide que, independemente da nomenclatura que se utiliza a determinado grupo social, os direitos fundamentais devem ocupar papel basilar no ordenamento jurídico pátrio, se configurando como parâmetro dentro do qual devem ser interpretadas todas as normas legais. A Constituição Federal prevê garantias, a exemplo de documentos internacionais e mesmo de legislação anterior à sua promulgação, no sentido de que os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana devem preponderar sobre os demais enunciados normativos.

Assim, o conceito de deficiência previsto no parágrafo 2º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS equipara a deficiência à incapacidade para a vida independente e para o trabalho, in verbis:

§ 2º. Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.

O critério adotado pelo legislador distancia-se da previsão constitucional acerca desse benefício, e encerra uma concepção de dependência que não está adequada nem ao espírito da Constituição, nem às modernas concepções de deficiência.

O sistema constitucional de proteção às pessoas portadoras de deficiência começa pela inquestionável essencialidade do labor na vida do ser humano, não só por se tratar da forma como o homem obtém o necessário à sua subsistência e assegura o direito à dignidade da pessoa humana, mas por ser instrumento de realização pessoal do indivíduo, tornando-o respeitável perante a sociedade e, principalmente, o incluindo no seio desta, como cidadão, possuidor de direitos e obrigações, em face do princípio da igualdade.

Segundo a Constituição da República Federativa do Brasil, a qual se constitui em Estado Democrático de Direito, seus fundamentos são, entre outros: a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político, constantes do artigo 1º, incisos III, IV e V. Igualmente, a Constituição reconhece como direitos sociais, previstos no artigo 6º, a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a assistência aos desamparados. Ainda, proclama que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros princípios, o da redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego, conforme disposto no artigo 170, incisos VII e VIII. No que tange à ordem social, a Carta Magna assevera que ela tem como base o primado do trabalho e como objetivos o bem-estar e a justiça social (artigo 193), além de "promover o bem de todos", sem qualquer tipo de preconceito ou quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, incisos I, III e IV). [13]

Constata-se, com efeito, que a Constituição, ao lado de vedar discriminações, vem a trazer diversas determinações com a finalidade de impedi-las e de reduzir as desvantagens vividas pelos deficientes, buscando, mais e mais, integrá-los na vida social. Assim, a Constituição reconhece a existência de desvantagens e da exclusão na experiência da deficiência, determinando, conscientemente, medidas que visam à integração do deficiente. [14]

Seguindo esse encadeamento de idéias, o texto constitucional, no que tange à deficiência, longe de tratá-la como uma tragédia individual, procura não isolar o portador de deficiência; antes pelo contrário, procura integrá-lo nos mais diversos aspectos. [15] Essa linha, meritoriamente adotada no texto constitucional, infelizmente não foi seguida pelo legislador infraconstitucional.

Desta feita, na tentativa de evitar com que as pessoas portadoras de deficiência sejam marginalizadas e excluídas do contexto social, é necessário examinar o conceito legal à luz dos ditames constitucionais, estabelecendo mecanismos que melhor assegurem e garantam a dignidade da pessoa humana e a efetividade da igualdade.

O critério adotado pelo legislador, ainda que tenha o mérito de buscar a objetividade, é bastante discutível, posto que a incapacidade laborativa já faz nascer, implícita ou explicitamente, a incapacidade para a vida independente, como se observa do referido por Simone Barbisan Fortes e Leandro Paulsen:

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O conceito de ‘pessoa portadora de deficiência’ contido no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, não pode ser o daquela que ostente incapacidade para o trabalho e para a vida independente, enquanto impossibilidade de exercício de qualquer ato da vida diária, como vestir-se, alimentar-se e higienizar-se. A incapacidade demandada é a incapacidade laborativa, pois daí também advém, subsidiariamente, a incapacidade para os atos da vida independente: o só-fato de alguém não dispor de capacidade para o trabalho já o afasta da possibilidade de viver só, uma vez que dependerá, para sua sobrevivência, do auxílio de outras pessoas.

De fato, outra não é a teleologia do citado dispositivo constitucional, que não a de garantir uma renda mínima às pessoas que, encontrando-se em situação de miserabilidade, não conseguem prover o próprio sustento, seja pela presunção de incapacidade para o trabalho, no caso do benefício assistencial devido aos idosos, seja pela efetiva presença desta incapacidade, no caso do benefício assistencial devido aos deficientes. [16]

À legislação infraconstitucional não cabe restringir excessivamente o público a ser favorecido pelo benefício, mas sim defini-lo de acordo com os limites estabelecidos pelo ditame maior.

Assim, apesar da determinação objetiva da lei, o critério da deficiência deve ser examinado de forma mais ampla, sendo adequado, no mínimo, que se seja atrelado à incapacidade laborativa, que, de per si, denota a insuficiência de meios para a subsistência do indivíduo.

Considere-se que o benefício assistencial constitui uma política pública de distribuição de renda, bem como uma garantia de renda mínima para o público que pretende atingir, assumindo grande relevância em uma sociedade de profunda desigualdade social, como a brasileira, visto que tal distribuição funcionará como pressuposto para o alcance da dignidade da pessoa humana.

Assim, o benefício de prestação continuada deve ser interpretado como um instituto que procura, dentro de suas limitações, a integração social do portador de deficiência permitindo, consequentemente, o acesso às condições mínimas de uma vida digna.

De outra forma, o Estado estará se isentando indevidamente de uma responsabilidade assumida constitucionalmente, qual seja, a de resguardar os direitos de subsistência daqueles que, individualmente, não conseguem suprir suas necessidades. Esta é a mínima realização que se espera dos direitos sociais, com vistas ao aprimoramento da democracia, da cidadania e da dignidade humana.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

No curso deste trabalho, procurou-se examinar a caracterização de deficiência como requisito para concessão do benefício assistencial de prestação continuada, tendo-se como pressuposto que a abordagem do tema requer um enfoque jurídico que priorize a efetivação plena e assegure a força normativa do arcabouço de proteção dos direitos fundamentais inserido na Constituição Federal de 1988.

Dentre os direitos fundamentais, os direitos sociais necessitam de garantias que lhes assegurem eficácia e efetividade, de forma mais ampla. Considere-se a peculiaridade da realidade social brasileira, em que é marcada por profundas desigualdades sociais, agravadas pelo modelo econômico e pela inexistência de um padrão mínimo de qualidade de vida e cidadania. Nesse contexto, a construção de uma sociedade com garantia de padrões aceitáveis de vida e existência digna perpassa necessariamente pela instituição de um sistema amplo e abrangente de proteção social, inclusive na vertente da assistência social.

No que toca à conceituação da pessoa portadora de deficiência, como requisito do benefício assistencial de prestação continuada do art. 203, V, da Constituição, dentre as múltiplas concepções de deficiência, devem ser selecionadas aquelas propostas que impliquem em maior garantia do direito fundamental à assistência social, promovendo a preservação da dignidade da vida humana e a realização do bem comum.

Atualmente, a condição de pessoa portadora de deficiência não pode ser compreendida exclusivamente no aspecto da restrição clínico-biológica individual, mas sim ter sua apreciação valorada numa abordagem mais ampla, sob o enfoque da dificuldade de condições de interação e de inclusão na sociedade, em decorrência das limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais que acometem a pessoa portadora de deficiência. Vale dizer, a deficiência deve ser ponderada em sua dimensão social, na privação de capacidades e de oportunidades e na desigualdade de condições de inclusão social.

Assim, pessoa portadora de deficiência, para fins de concessão do benefício de prestação continuada da Lei nº 8.742/93, deve ser considerada aquela que por sua condição individual, tenha restringidas de forma significativa, as suas opções de acesso aos espaços, oportunidades e bens sociais.

Nessa linha, a incapacidade de provimento do próprio sustento pelo trabalho constitui elemento suficiente à caracterização da incapacidade para a vida independente, a autorizar a concessão do benefício de prestação continuada da Lei nº 8.742/93.

Pelas mesmas razões, a deficiência traduzida na incapacidade de prover o próprio sustento pode estar fundamentada em lesões não irreversíveis. A possibilidade de reversão da condição de deficiência não impede a concessão do benefício de prestação continuada, dado que a definitividade não é elemento típico do conceito de deficiência. De outro modo, sequer se justificaria a previsão legal de revisão bianual das condições que ensejaram a concessão do benefício (caput do artigo 21 da Lei nº 8.742/93).

De tudo, verifica-se que somente com uma hermenêutica concretizadora se conseguirá progredir na implantação de um Estado Democrático de Direito que busque garantir o bem-estar, a justiça social e o respeito à dignidade da pessoa humana, de forma que se transporte à realidade social o horizonte de sentido posto na Constituição da República de 1988.


REFERÊNCIAS

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Sobre as autoras
Michelle Dias Bublitz

Mestranda em Direito no Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Bolsista CNPq (março/2013 até fevereiro/2014). Bolsista CAPES (de março/2012 até fevereiro/2013). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade IDC - Instituto de Desenvolvimento Cultural (2009). Graduada pela Universidade Luterana do Brasil ULBRA campus Canoas/RS (2008). Integrante qualificada como Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas (CNPq) intitulado Novas Tecnologias e Relações de Trabalho sob coordenação da Dra. Profa. Denise Pires Fincato, sediado na PUCRS. Integrante qualificada como Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas (CNPq) intitulado “Direitos Fundamentais Civis: A Ampliação dos Direitos Subjetivos”, sob coordenação da Profa. Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella, sediado na Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC. Associada do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Advogada.

Carla Evelise Justino Hendges

Juíza Federal. Graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (1993). Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC (2002). Professora da Escola da Magistratura Federal da ESMAFE-RS e do Instituto de Desenvolvimento Cultural – IDC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUBLITZ, Michelle Dias; HENDGES, Carla Evelise Justino. O conceito de deficiência para fins do benefício assistencial do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2948, 28 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19651. Acesso em: 23 dez. 2024.

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