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O alcance do conceito de família para fins de concessão de benefício assistencial

Agenda 20/08/2011 às 11:11

I-Introdução.

Ao prever o pagamento do benefício assistencial a deficientes e a idosos, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS – Lei nº 8.742/93) estabeleceu um critério objetivo de determinação da carência econômica que enseja o pagamento do aludido benefício.

Segundo o art. 20, caput, dessa Lei, o benefício prestação continuada é devido ao idoso e à pessoa portadora de deficiência que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. O § 3º do citado dispositivo, por sua vez, estabelece que é incapaz de prover a manutenção daqueles beneficiários a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

Não obstante o art. 20, § 1º, indicar o conceito de família para os fins da Lei, conforme será visto, tal preceito não pode ser interpretado de forma literal, sob pena de causar injustiça, exatamente o que a previsão do benefício pretende evitar.


II-Fundamentos constitucionais e legais do amparo assistencial.

A Constituição Federal de 1988, denominada "Cidadã" em razão de consagrar abrangente rol de direitos e garantias individuais, sociais, coletivos e políticos, dedicou ao princípio da dignidade da pessoa humana especial tratamento.

Tal princípio, considerado fundamental, nos termos do art. 1º, III, da Carta Magna, é o pressuposto de vários outros direitos nela previstos e na legislação infraconstitucional.

Com fulcro em tal princípio, o art. 203 da Constituição Federal estabelece, in verbis:

"Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

(...)

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei."

A lei a que se refere o dispositivo constitucional é a de número 8.742, de 7 de dezembro de 1993, também denominada Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).

O salário mínimo, não obstante ter sua quantificação dada por lei ordinária, ou ato normativo equivalente, também possui base constitucional fixada no art. 7º, IV, e corresponde, em tese, ao numerário capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.

Dos vários grupos que se encontram em explícito estado de vulnerabilidade social, percebe-se que o Constituinte conferiu a dois - idosos e pessoas com deficiência - uma especial proteção, consistente no pagamento da remuneração mínima do trabalhador, com o fim de lhes assegurar o mínimo existencial.

Num país em que a população pobre ainda ocupa um alto percentual demográfico, o benefício em questão, em particular, deve manter relação inseparável com o princípio da seletividade da seguridade social, constante do art. 194, parágrafo único, III, da Constituição Federal.

Em se tratando de assistência social, apenas pode ser deferido o benefício da LOAS ao idoso ou à pessoa portadora de deficiência que se encontre em estado de miserabilidade, sendo vedado que o numerário pago se transforme numa mera complementação de renda, dissociada da garantia do mínimo existencial.

Na tentativa de dar contornos de objetividade ao conceito aberto de miserabilidade, o art. 20, § 3º, da LOAS dispôs ser incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita fosse inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo [01].

A realidade brasileira, cujos lares possuem formação bastante heterogênea, também impôs à Lei a conceituação de família, para fins de apuração da fração de renda acima referida. Tal conceituação se encontra prevista no art. 20, § 1º, da LOAS e será melhor analisado no tópico seguinte.


III-Abrangência do conceito de família, para fins de concessão do benefício assistencial.

Em sua redação original, o art 20, § 1º, da Lei nº 8.742/93 assim definia família:

"§ 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se por família a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes."

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Percebe-se que o conceito acima estava dissociado das relações biológicas, normalmente associadas à idéia de família. Utilizando uma perspectiva sociológica, muito útil à realidade brasileira, a norma contemplou uma perspectiva abrangente em relação à família.

Ocorre que, em 30 de novembro de 1998, foi promulgada a Lei nº 9.720 que deu a seguinte redação àquele dispositivo:

"§ 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se como família o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto."

O art. 16 da Lei nº. 8.213/91 (Lei de Benefícios da Previdência Social), por sua vez, possui a seguinte redação:

"Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

II - os pais;

III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;

(...)

§ 2º .O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento."

Da interpretação literal de tais regras, pode-se inferir a exclusão de alguns parentes do conceito de família para fins de apuração da renda mensal per capita, não obstante coabitarem. São eles: filhos maiores de vinte um anos, desde que não sejam inválidos; netos; genros e noras; cunhados etc.

Isso posto, numa residência em que uma idosa sem renda coabitasse com dois filhos não portadores de invalidez, maiores de vinte um anos e inseridos no mercado de trabalho, com ganhos suficientes para custear a manutenção da residência e de seus moradores, a remuneração destes não poderia ser utilizada para o cálculo da renda per capita para fins de pagamento do benefício assistencial.

À míngua de ser bastante utilizada, é sabido que a interpretação gramatical, quando dissociada das outras formas de exegese, muitas vezes leva a resultados que contrariam o objetivo da norma. É o que se verifica do caso em análise, no qual se demanda a interpretação sistemática das regras acima com outras do ordenamento.

O benefício da assistência social, orientada pelos princípios da seletividade e da distributividade na prestação dos benefícios e serviços (art. 94, parágrafo único, III, da CF/88) só deve ser prestado, nos termos do acima transcrito art. 203, V, da Constituição Federal: quando a manutenção das pessoas a que se refere não pode ser provida por elas ou por sua família.

O conceito consagrado e família, por sua vez, corresponde ao conjunto de pessoas ligadas entre si por relações de parentesco. Sobre essas últimas, dispõe o Código Civil no art. 1591 e seguintes [02].

Percebe-se, portanto, que a assistência social a ser prestada pelo Poder Público possui caráter subsidiário, ou seja, apenas na impossibilidade de manutenção própria ou por meio da família, deverá ser deferido o benefício de prestação continuada prevista na LOAS.

Nesse contexto, é relevante trazer à colação o seguinte excerto do Código Civil:

"Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

§ 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.

(...)

Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.

Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.

Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.

Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide."

Pode-se inferir, desse modo, que há a obrigação entre os membros da família em relação ao sustento um do outro. Apenas em caso da impossibilidade dos parentes em arcar com as despesas pela manutenção do necessitado poderá ser demandado o Poder Público que, em nenhuma hipótese, deve ser considerado segurador universal.

Atendendo ao mandamento constitucional, cujas disposições não podem ser contrariadas por regras ordinárias e considerando o sistema normativo de forma harmônica, no qual se deve buscar interpretações que não importem derrogações, quando possível, não é possível interpretar o art. 20, § 3, da Lei nº 8.742/93 de forma restritiva.

Ora, mesmo não tendo renda própria, se uma mãe ou um pai coabitam com filhos maiores de vinte um anos e aptos para o trabalho e esses, por imperativos jurídicos e morais, têm condições materiais de prover com dignidade a manutenção daqueles, não há como se concluir pela miserabilidade para se deferir o benefício assistencial.

Seria, aliás, um contrassenso, no caso acima, permitir a contagem da renda do filho quando este tivesse, por exemplo, dezoito anos de idade, e excluí-la no dia em que este completasse vinte um anos, mas continuasse a coabitar com os pais.

Como já vêm decidindo os Tribunais, não se pode conceber que a mãe faz parte do núcleo familiar do filho, porém o filho não pertence ao da mãe. Tal ocorre porque, segundo o princípio do terceiro excluído, algo é ou não é, não podendo sê-lo em certos casos e não o ser em outros.

Nesse sentido, já decidiu a Turma Nacional de Unificação dos Juizados Especiais Federais (TNU):

"EMENTA PROCESSO CIVIL - ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO DA PRESTAÇÃO CONTINUADA. REQUISITOS LEGAIS. CONCEITO DE FAMÍLIA. 1. Ao apurar o grupo familiar do requerente, o juiz não está adstrito ao rol do art. 16 da Lei n. 8.213/91, que, neste caso, é meramente exemplificativo, podendo, diante do caso concreto, ser alargado ou diminuído, de acordo com a sua eqüitativa apreciação, e tendo em visto o art. 5º da Lei n. 11.340/2006. 2. Caso de retorno dos autos ao juízo de origem para, diante do caso concreto, fazer a adequação do julgado. 3. Recurso conhecido e provido em parte." (PEDILEF 200770950064928, JUÍZA FEDERAL MARIA DIVINA VITÓRIA, TNU - Turma Nacional de Uniformização, 19/08/2009).


IV-Conclusão.

A concessão do benefício assistencial, por todos os princípios que a norteiam, é deferida em caráter restrito às pessoas idosas e portadoras de deficiência, incapazes de prover o próprio sustento ou de tê-lo provido pelos familiares.

Vê-se, portanto, que o pagamento do benefício de prestação continuada previsto na Constituição Federal e na LOAS pelo Poder Público se faz de forma subsidiária, apenas sendo devido quando não há parente cujas condições econômicas sejam aptas a fazê-lo.

Todas as pessoas que guardam relação de parentesco e coabitam compõem um dado núcleo familiar reciprocamente. Assim ocorre porque, ao se fazer menção a "pai", está-se aí incluindo o filho, já que um dado alguém só é pai em relação a um filho, sendo o conceito de "pai", portanto, vinculado à existência de um filho.

Em face disso, não se pode dar ao conceito de família uma interpretação restritiva o suficiente para descaracterizá-la ao ponto de afastar dos filhos e de outros membros do núcleo o dever jurídico e moral de prover a subsistência dos pais ou avós.

Tem-se, pois, que tal interpretação restritiva, além de não se justificar juridicamente, contraria os princípios que nortearam o sistema de assistência social no Brasil, não podendo, portanto, ser adotado.


Notas

01 Atualmente, muitos juízes e tribunais consideram a renda per capita do grupo familiar apenas um dos elementos de convencimento para apurar a existência da miserabilidadee não o único. Vide súmula nº. 11 da Turma Nacional de Unificação dos Juizados Especiais Federais.

02 Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes.

Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra.

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.

Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.

§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro.

Sobre a autora
Marina dos Anjos Pontual

Procuradora federal. Pós graduada em Direito Processual. Bacharel em Direito pela UFPE. Pós graduanda em Direito do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTUAL, Marina Anjos. O alcance do conceito de família para fins de concessão de benefício assistencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2971, 20 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19817. Acesso em: 5 nov. 2024.

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