RESUMO: A "crise do Supremo Tribunal Federal", resultante do seu volume surreal de processos, da trivialidade das causas que chegam ao seu conhecimento, da discrepância, no direito comparado, entre o número de habitantes e o número de juízes que compõem o Pretório Excelso, foi o fator histórico preponderante que ensejou a criação, através da Emenda Constitucional n.º 45/2004, da repercussão geral do recurso extraordinário. Esse filtro recursal, entretanto, não consiste numa inovação do direito brasileiro, tendo sido inspirado no writ of certiorari norte-americano. Além disso, o Brasil já havia experimentado filtro recursal parecido, nas décadas de 1970 e 1980, com a extinta arguição de relevância da questão federal, aplicável ao recurso extraordinário. No presente estudo, analisa-se o processo histórico norte-americano que moldou as características atuais do writ of certiorari e algumas particularidades do julgamento pela Suprema Corte norte-americana, inclusive à luz de seu Regimento Interno. Em seguida, é analisada a extinta arguição de relevância nacional, ressaltando as diferenças existentes nas regulamentações que tal instituto sofreu pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, através da Emenda Regimental n.º 3/75 e da Emenda Regimental n.º 7/77. Por fim, são traçadas as semelhanças e as dessemelhanças existentes entre o writ of certiorari, a arguição de relevância e a repercussão geral.
SUMÁRIO: 1 A repercussão geral como tentativa de superação da crise do STF. 2 O writ of certiorari: a inspiração norte-americana. 2.1 Surgimento do writ of certiorari. 2.2 Aspectos do julgamento do writ of certiorari. 3 A arguição de relevância da questão federal: o precursor nacional. 3.1 Emenda Regimental n.º 3/75. 3.2 Emenda Regimental n.º 2/85. 3.3 Inexistência de questão constitucional irrelevante. 3.4 Aspectos do julgamento da arguição de relevância. 4 A "transcendência" e os "reflexos gerais" do recurso de revista. 5 A repercussão geral: semelhanças e dessemelhanças. 5.1 Natureza jurídica. 5.2 Aspecto formal e aspecto material. 5.3 Presunção relativa (iuris tantum) de existência. 5.4 A publicidade do julgamento e o Plenário Virtual. 5.5 Fundamentação do juízo de repercussão geral. 6 Conclusão.
1 A repercussão geral como tentativa de superação da crise do STF
A Emenda Constitucional n.º 45/2004, conhecida como "Reforma do Judiciário", acrescentou o inciso LXXVIII ao art. 5° da Constituição Federal de 1988, consoante o qual "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".
Visando a concretizar a garantia individual da razoável duração do processo, a referida Emenda previu dois institutos relacionados à atuação do Supremo Tribunal Federal: a súmula vinculante e a repercussão geral (art. 103-A e art. 102, §3° da CF/1988).
Além da imediata finalidade de buscar uma solução para a morosidade do Poder Judiciário Brasileiro, a instituição da súmula vinculante e da repercussão geral deve ser interpretada, precipuamente, sob outro viés: superar a crise por que vem passando o Pretório Excelso.
Há de se ressaltar que tal crise não é recente, pelo contrário, pode ser observada mesmo antes da promulgação da Constituição Federal de 1988. Conforme se observa da Tabela 1 abaixo, entre os anos de 1980 e 1988 o número de processos protocolados no Supremo Tribunal Federal mais do que dobrou. Este Tribunal estava sobrecarregado, dentre outros motivos, por ser o único órgão jurisdicional de convergência na estrutura da Justiça Comum [01], encarregado das funções que hoje estão partidas ente ele e o Superior Tribunal de Justiça.
Já no ano de 1989, observa-se uma queda considerável no quantitativo de processos recebidos pelo Supremo Tribunal Federal, oriunda do reflexo direto e imediato da criação do Superior Tribunal de Justiça e do respectivo recurso especial, pela Constituição Federal de 1988. Entretanto, em poucos anos a distribuição de processos no Pretório Excelso aumentou vertiginosamente, superando a barreira dos cem mil processos distribuídos anualmente em 2000.
TABELA 1
MOVIMENTO ANUAL DE PROCESSOS
NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (1980-2009) [02]
ANO |
Processos Protocolados |
Julgamentos (monocráticos e colegiados) |
1980 |
9.555 |
9.007 |
1981 |
12.494 |
13.371 |
1982 |
13.648 |
15.117 |
1983 |
14.668 |
15.260 |
1984 |
16.386 |
17.780 |
1985 |
18.206 |
17.798 |
1986 |
22.514 |
22.158 |
1987 |
20.430 |
20.122 |
1988 |
21.328 |
16.313 |
1989 |
14.721 |
17.432 |
1990 |
18.564 |
16.449 |
1991 |
18.438 |
14.366 |
1992 |
27.447 |
18.236 |
1993 |
24.377 |
21.737 |
1994 |
24.295 |
28.221 |
1995 |
27.743 |
34.125 |
1996 |
28.134 |
30.829 |
1997 |
36.490 |
39.944 |
1998 |
52.636 |
51.307 |
1999 |
68.369 |
56.307 |
2000 |
105.307 |
86.138 |
2001 |
110.771 |
109.692 |
2002 |
160.453 |
83.097 |
2003 |
87.186 |
107.867 |
2004 |
83.667 |
101.690 |
2005 |
95.212 |
103.700 |
2006 |
127.535 |
110.284 |
2007 |
119.324 |
159.522 |
2008 |
100.781 |
130.747 |
2009 |
84.369 |
121.316 |
TABELA 2
MOVIMENTO PROCESSUAL DECENAL
NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (1970-2009)
DÉCADA |
Processos Protocolados |
Julgamentos (monocráticos e colegiados) |
1970-1979 |
72.133 |
78.945 |
1980-1989 |
163.950 |
164.359 |
1990-1999 |
326.493 |
311.521 |
2000-2009 |
1.074.605 |
1.114.053 |
Além do volume surreal de processos, a crise por que passa o Supremo Tribunal Federal também pode ser ilustrada pela trivialidade de diversas causas que chegam a seu conhecimento, como brigas de vizinho, "assassinato" de papagaio e "furto de galinhas" [03].
Sob o aspecto da trivialidade das causas, a criação do filtro recursal da repercussão geral não por fim imediato a diminuição do número de processos distribuídos àquela corte, mas o seu fortalecimento como um verdadeiro Tribunal Constitucional [04].
Mesmo sendo possível concluir que esse Tribunal tenda a se transformar numa Corte Constitucional, como resultado das mudanças levadas a cabo pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, a transmudação ainda é uma tendência e não está consolidada. A consolidação dependerá da interpretação e da aplicação que será dada aos institutos da repercussão geral e da súmula vinculante pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Tal como se depreende do excerto do voto do Ministro GILMAR MENDES, proferido no julgamento RE-QO 556.664/RS, ao se referir à nova disciplina do recurso extraordinário, possivelmente essa tendência se consolidará:
"Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segundo a qual "a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo", dotado de uma "dupla função", subjetiva e objetiva, "consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo" (Peter Häberle, O recurso de amparo no sistema germânico, Sub Judice 20/21, 2001, p. 33 (49)." [05] (grifos do autor)
É possível, ainda, esboçar outra feição da crise do Supremo Tribunal Federal: a notória discrepância existente, no direito comparado, na relação de "número de habitantes por número de Ministros".
Para ilustrar a relação entre a população e o número de juízes que compõem os Tribunais Constitucionais de diversos países, cujas competências, impende ressaltar, são muito mais restritas que a do nosso Pretório Excelso, através de dados colhidos por MACIEL [06] montou-se a Tabela 3, a seguir:
TABELA 3
RELAÇÃO ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE MEMBROS
DE TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS E DE SUPREMAS CORTES
PAÍS |
População (em milhões) |
Juízes do Tribunal Constitucional |
Relação entre População (em milhões) e Juízes do T.C. |
Áustria |
8,1 |
14 |
0,57 |
Portugal |
10,5 |
13 |
0,80 |
Espanha |
39 |
12 |
3,25 |
Itália |
57,5 |
15 |
3,83 |
Alemanha |
83 |
16 |
5,18 |
França |
58,5 |
9 |
6,50 |
Brasil |
190 |
11 |
17,27 |
E.U.A. |
302,5 [07] |
9 |
33,61 |
Logo de imediato se constata que a relação entre a população e o número de juízes da Suprema Corte norte-americana é mais elevada que a do Brasil. Naquele país, cada juiz da Suprema Corte é responsável, proporcionalmente, por cerca de 33 milhões de pessoas, ao passo que, no Brasil, cada Ministro responde por cerca de 17 milhões, quase a metade daquele.
Entretanto, é certo que tais dados devem ser interpretados consoante a realidade de cada um desses países, mormente quanto às competências distribuídas a cada uma de suas Altas Cortes.
Nos Estados Unidos a legislação penal, civil e comercial é eminentemente estadual, de modo que tais questões, normalmente, se exaurem nos respectivos tribunais de cúpula locais (dos estados-membros). Atualmente, das pouco mais de 7.000 (sete mil) petition for writ of certiorari que chegam por ano à Suprema Corte, pouco mais de 4% (quatro por cento) são conhecidas [08]. No ano específico de 2004, dos 7.542 casos que chegaram à aludida corte, apenas 80 deles, ou seja, 1,1% (um inteiro e um décimo por cento) chegaram a ter seu mérito examinado [09].
No Brasil, por outro lado, a centralização de competências (legislativas e materiais) na pessoa da União e a ampla gama de competências atribuídas ao Supremo Tribunal Federal, já imbuída na tradição constitucional pátria, naturalmente faz com que os processos atinjam este Tribunal mais facilmente. A título de exemplo, observa-se da Tabela 1 que só no ano de 2006, o Pretório Excelso recebeu 127.535 processos.
Ademais, o aumento paulatino e gradual da competência do Supremo Tribunal Federal desde sua criação em 1891, não foi acompanhado do aumento de sua composição. Em 1891, com a promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, estabeleceu-se que a composição do Tribunal seria de 15 (quinze) membros, tendo sido reduzida em 1931 para 11 (onze) membros. Em 1965, durante a ditadura militar, com vistas a obter a maioria daquela Corte, o seu número foi elevado para 16 (dezesseis) membros, retornando ao número de 11 (onze) Ministros com a Emenda Constitucional n.º 1/69 à Constituição Federal de 1967.
Não bastasse, o agravamento da crise do Supremo Tribunal Federal pode ser conjugado ao aumento populacional e ao desenvolvimento do país, o que, invariavelmente, ensejou o crescimento do número de demandas recursais àquele Tribunal [10].
Foi diante desse quadro histórico que o Congresso Nacional, através da Emenda Constitucional n.º 45/2004 e da criação do instituto da repercussão geral do recurso extraordinário, tentou solucionar a crise existencial do Supremo Tribunal Federal, sendo possível encontrar no writ of certiorari a inspiração do instituto brasileiro da repercussão geral.
Para melhor compreender o instituto da repercussão geral, portanto, nada mais adequado que analisar o writ of certiorari (a inspiração norte-americana) e a extinta arguição de relevância (o precursor nacional).