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Do aprimoramento das reprimendas: criação dos tipos penais de perigo

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Agenda 25/09/2011 às 08:59

Quando o direito penal passou a ser entendido como um meio de proteção dos bens jurídicos, o embrutecimento das leis levou a proteger a possível ocorrência de um resultado danoso.

"La ampla y ambígua utilización de categorias como ‘interés Del Estado’ o ‘interés público’ han producido graves daños a los derechos individuales.". (López Calera) [01]

A partir do momento em que o direito penal passou a ser entendido como um meio de proteção dos bens jurídicos descritos na Constituição, [02] o embrutecimento das leis versou não apenas sobre lesões destes bens, mas à possível ocorrência de um resultado danoso, oportunidade em que foram originadas as figuras delitivas de mero perigo. [03]

Com efeito, há que se salientar que o exercício de prevenção de futuros delitos – antigamente consistente tão somente nas prevenções especiais e gerais – fora sempre atribuído ao sistema penal, o qual se utilizava da aplicação de reprimendas para o desempenho de sua função. [04] Tal idéia, inclusive, restou defendida por Von Liszt e Beccaria, os quais afirmavam que a finalidade precípua da legislação penal consistia, mais que punir o infrator, em prevenir crimes porvindouros. [05]

Todavia, adentrando-se os séculos, esta ideia de prevenção foi estendida [06] com a implementação dos Estados Democráticos de Direitos – Os Estados-Sociais -, o que pôde ser percebido diante da criminalização de condutas que traziam consigo tão-somente certa conotação perigosa, tipificações estas perpetradas sob o discurso de que a prática de determinadas lesões, devido a estes procedimentos legais, seria obstada - [07] fenômeno este denominado por Hassemer de "orientação voltada para as consequências. [08]

Corrobora esta posição Ângelo Roberto Ilha da Silva que, mediante tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo, entende tudo radicar em torno de valores, merecendo tutela penal um valor de considerável relevância. Para tal, apóia-se no pensamento de Francisco de Assis Toledo, para quem "bens jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas.". [09]

Destaca-se que o substrato para a alteração da perspectiva criminal, voltando-se a uma expansão da ideia de prevenção dos delitos, [10] decorreu da emergência das teorias do risco - [11] sob uma leitura equivocada -, posteriormente albergada a partir da Teoria da Imputação objetiva, que apresenta como grandes defensores os doutrinadores ROXIN [12] e JAKOBS, [13] cada um com suas visões e entendimentos, díspares entre si.

Dita doutrina resultou do período histórico ora vivenciado, demarcado pelo incremento tecnológico, responsável por introduzir no meio social circunstâncias para além do controle individual, como, vale citar, correntes elétricas, campos magnéticos, ondas energéticas, dentre outros. [14] Desse modo, envolveu-se o âmbito social, a par de seu próprio desenvolvimento, em situações temerárias, tanto quanto atualmente entendidas como indispensáveis. [15]

Assim, em virtude das mudanças perpetradas, bem como da alteração dos modelos governamentais, volvidos à composição dos estados-providência, foi-se enraizando a tendência de se regulamentar comportamentos entendidos como possivelmente lesivos, ocasionando a enxurrada de leis que hoje presenciamos. [16]

Logo, haja vista a gama de comportamentos a ocasionarem presumível lesão, entendeu-se por bem que deveriam ser submetidos à tutela penal aqueles que ensejassem riscos não permitidos pelo ordenamento jurídico, uma vez que entendidos, pelo sistema legal, como danosos à vida social, [17] o que, por óbvio, decorreu de nítida escolha política.

Inicia-se, portanto, a era preventiva, cujo ingresso nos Estados Ocidentais datou-se da Primeira Guerra Mundial, não obstante tal ideologia timidamente existir desde o final do século XIX. [18]

Cumpre salientar que, no Brasil, o fato precursor para a implantação desta sistemática punitiva consistiu na Era Vargas, posto o presidente à época, Getúlio Vargas, no intento de instaurar um Estado intervencionista, altamente nacionalista e industrial, ter implantado uma política expansionista, fazendo-o também a partir da idéia da prevenção de delitos, mediante o incremento legislativo. [19]

Evidencia-se, destarte, que em contrapartida às conquistas de um poder governamental defensor de uma intervenção mínima (onde o Estado atuaria unicamente quando necessário), passou o Estado Social a inverter este posicionamento, acreditando, no concernente ao sistema penal, poder calcular e prever resultados delitivos frente a elencados comportamentos individuais, como se a conduta humana restasse absolutamente previsível através de análises estatísticas. [20]

Inclusive, Salo de Carvalho contrapõe a presente organização social ao liberalismo anterior quanto ao poder punitivo, asseverando que "Se no liberalismo o objetivo da intimidação era privilegiado, no modelo de providência importa a reintegração do criminoso no mercado de trabalho.", [21]já que este se incumbia da tarefa de reorganizar a sociedade, de modo a aumentar a máquina estatal e, principalmente, a capacidade laboral do legislativo.

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Por oportuno, destaca-se:

"A idéia de basear uma reação estatal na periculosidade tornou-se arraigada nos sistemas legais das sociedades democráticas, mesmo quando seus argumentos preventivos acarretaram uma expansão do poder estatal.". [22]

Assim, se o controle no século XIX ocorria post factum, mediante indenização, no século XX a idéia de resguardo técnico dos riscos impôs modelo de antecipação do dano via medidas preventivas. [23]

Com o passar do tempo, a expansão do Estado tornou-se fato normal – leia-se: exime de contestações -, denotando-se o governo um ente extremamente autoritário, [24] em que pese aparentemente desvestido de características absolutistas, [25] minorando o valor de seus cidadãos mediante a intensa ingerência na vida privada, [26] com previsões baseadas em meras presunções travestidas de interesses políticos.

Com efeito, faz-se notório o contrasenso do mencionado incremento do poder estatal sob a esfera individual, [27] haja vista que para a instauração dos crimes de perigo, princípios fundamentais são negados, ponderados [28] de forma equivocada, ingressando o Estado, por meio da disseminação de suas noções de periculosidade, em um viés extremo de anti-democracia. [29]

A propósito:

"Juan Bustos Ramírez, por sua vez, refere-se a uma função dialética deslegitimadora da incriminação de condutas que não lesem bens jurídicos, que, a nosso ver, nada mais é que a por nós referida função crítica, visto que, ao auferirem-se soluções por meio da dialética, outra coisa não se faz senão se proceder à crítica.". [30]

Por derradeiro, entende Eugenio Raul Zaffaroni que "todos os perigos são ‘concretos’ e todos os perigos são abstratos, segundo o ponto de vista que se adote: ex ante são todos concretos, ex post são todos abstratos.".. [31]

Nesse passo, conforme sustentou o tributarista Roque Antonio Carrazza, antigas condutas delineadoras tão somente de infrações administrativas – haja vista seu pequeno caráter lesivo -, passaram a ser punidas mediante penas privativas de liberdade, [32] alterando por completo o sistema penal, de modo a deixá-lo tão mais imperativo quanto insuficiente. [33]

Segundo se verifica, não obstante imperar no direito penal o princípio da reserva legal, [34] consistente na idéia de limitação do ius puniendi [35] perante os indivíduos – consonante a premissa nullum crimen nulla poena sine lege -, [36] mencionada garantia constitucional passou a ser a volvida, também, em prol de uma criminalização em massa.

Isto porque, ainda que não possa haver criminalizações sem a existência de lei anterior, [37] se o legislativo sobre tudo legisla e criminaliza, sem que sejam devidamente analisadas tais iniciativas, diversas condutas consideradas socialmente normais passam a ser tipificadas hodiernamente, com incrível dinamicidade, relativizando o que outrora consistia em uma conquista social.

Assim, demonstra-se que, em virtude deste incremento desenfreado da produção legislativa, [38] de modo a conferir tipicidade a inúmeros comportamentos não ofensivos, as imputações delitivas apresentaram-se superficialmente como admitidas e inquestionáveis, posto que resguardadas e incontestes perante a premissa da reserva legal.

Sobre tal, ressalta-se o sustentado por Hassemer, o qual, em análise a presente discussão, aduziu ser o direito penal da atualidade marcado pelo desenvolvimento [negativo] e exaustão de sua parte especial, deixando a parte geral, de fato importante, a mercê de sua própria sorte. [39]

Nesta banda, Eugénio Raul Zaffaroni explica com clareza a impossibilidade de se criminalizar cada infração perpetrada pelos cidadãos, o que demonstra que, frente às atividades consideradas delituosas, consiste a escolha do legislador em algo deveras mais além que as moralidades do mundo jurídico. [40] Grifa-se:

"Na realidade, se cada cidadão fizesse um rápido exame de consciência, comprovaria que várias vezes em sua vida infringiu as normas penais: não devolveu o livro emprestado, levou a toalha de um hotel, apropriou-se de um objeto perdido etc. Em sã consciência, cada um de nós tem um "volumoso prontuário". Os juízes incrementam-no diariamente, ao subscrever falsamente declarações como aquelas prestadas em sua presença e nas quais jamais estão presentes. Os serventuários da Justiça certificam diariamente várias dessas falsidades ideológicas.". [41]

Procura-se, portanto, manter afastado da sociedade o estereótipo do "criminoso", tipificando condutas mais facilmente praticadas pelas classes desafortunadas, [42] vez que sem o devido amparo estatal para proceder de maneira diversa. [43] Sobre tal, vale citar, por exemplo, o porte ilegal de arma de fogo com o fulcro de resguardar a incolumidade pessoal e da família, haja vista que marginalizados não podem, constantemente, contar com o apoio Estatal, eis que sempre perseguidos por carregarem uma presunção de culpa.

Esta política criminal taxativa, expressa de modo veemente nos Estados Unidos, foi devidamente estudada por Jonathan Simon e Malcolm Feeley, os quais denominaram a nova tendência como "justiça atuarial", no intuito de demonstrar que a perseguição não visa aos indivíduos, mas aos considerados delinquentes, como se compusessem uma classe alheia de pessoas, pronta para ser neutralizada. [44]

Em vias do exposto, verificamos renascer, portanto, um estado policialesco. [45] Isto porque, consoante a direta exclusão social promovida pela estrutura dominante, ocasionada pela perda do status de cidadão por determinados grupos desfavorecidos economicamente, inicia-se um embate de forças entre classes destoantes, volvendo-se o aparato estatal contra um inimigo.

Voltam-se as milícias e demais poderes governamentais a perseguirem indivíduos marginalizados, estereotipados, que, segundo critica Dahrendorf, [46] não detêm utilidade para a esfera social e política, pesando economicamente, bem como denegrindo a imagem das cidades segundo seu próprio espelho.

Logo, não bastasse a atitude presunçosa do sistema penal, incumbindo para si a impossível e insubsistente tarefa de repreender as infrações geradoras de resultado, criaram-se, trazendo para sua alçada, as figuras delitivas que remeteriam a comportamentos perigosos – os crimes de perigo.

Vale salientar que em uma sociedade que detém como princípio constitucional a máxima do in dubio pro reo, punir-se por mera presunção ou por perigo consiste algo deveras paradoxal.

Isto porque, a partir do momento que se legitima a punição por atividades meramente representativas de perigo – porquanto a lesão poderia não ter ocorrido caso não obstado o comportamento do indivíduo – pondera-se negativamente sua liberdade de locomoção e dignidade em face de uma segurança social ou de outrem, cujo qual não sofreu qualquer dano real.

Nessa banda, coloca-se a abstrata, fictícia, segurança dos indivíduos como um todo frente a importantíssimas garantias fundamentais do personagem infrator, o qual nem ao menos produziu resultado danoso frente a conduta por ele praticada.

Corroboram estas elucubrações os ensinamentos de Hassemer:

"Como fato típico deve valer apenas a violação das liberdades garantidas pelo contrato social. O bem jurídico obtém um local sistemático como critério negativo de uma incriminação legítima; sem uma violação palpável a um bem jurídico, não há fato típico.". [47] (grifo meu).

Por fim, cumpre destacar que os delitos de perigo subdividem-se em duas modalidades: [48] crimes de perigo concreto [49] e delitos de perigo abstrato, [50] onde o primeiro, para existir, deve ser comprovado; ao passo que o segundo resta presumido.

Nesta banda, sugere Cirino dos Santos que crimes de perigo consistem em tipos de mera atividade, os quais "se completam com a realização da ação, sem qualquer resultado independente, como a violação de domicílio (art. 150), o falso testemunho (art. 342), etc. A distinção possui interesse prático, porque relação de causalidade (entre ação e resultado) somente existe nos tipos de resultado, não nos tipos de simples atividade.". [51]

Diferenciando-se os tipos de mera atividade, sustenta Bitencourt que:

"O perigo, nesses crimes, pode ser concreto ou abstrato. Concreto é aquele que precisa ser comprovado, isto é, deve ser demonstrada a situação de risco ocorrida pelo bem juridicamente protegido. O perigo só é reconhecível por uma valoração subjetiva da probabilidade de superveniência de um dano. O perigo abstrato é presumido júris et de jure. Não precisa ser provado, pois a lei contenta-se com a simples prática da ação que pressupõe perigosa.". [52]

Verifica-se, portanto, a transformação do ordenamento criminal em uma estrutura de aplicação de um direito penal máximo, [53] porquanto todos os comportamentos – uma vez que o princípio da lesividade e da proporcionalidade encontram-se mitigados no atual sistema punitivo – denotam-se à mercê da criminalização.


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Sobre a autora
Fernanda Guerra Drummond

Graduada na Universidade Federal do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DRUMMOND, Fernanda Guerra. Do aprimoramento das reprimendas: criação dos tipos penais de perigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3007, 25 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20073. Acesso em: 22 nov. 2024.

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