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A doutrina do Direito de Emmanuel Kant

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Agenda 08/10/2011 às 15:00

4. O sujeito, a sociedade civil e o Estado de direito no pensamento kantiano

Os conceitos de pessoa, sujeito e coisa estão intimamente relacionados à idéia de imputação. Para Kant, a pessoa é o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação. A pessoa, dotada de personalidade moral, é um ser livre, racional e responsável, que somente encontra-se submetida às leis que ela mesma se dá [31]. É um ser livre no sentido de que somente obedece às leis da razão, protegido contra o arbítrio das outras pessoas, que por suas ações não podem ferir a sua liberdade.

Uma coisa, inversamente à pessoa, é aquilo que se mostra insuscetível de qualquer imputação, que não possui liberdade, no sentido positivo, um objeto do livre-arbítrio. Nesse sentido, os servos e os escravos não são pessoas, são seres humanos sem personalidade, porquanto não possuem direito algum.

Outro ponto relevante na doutrina do Direito de Kant é o seu modelo de contratualismo. A doutrina contratualista pode ser dividida, no que toca ao conteúdo do contrato social, em duas posições distintas: uma teoria contratualista que considera o contrato como um ato de total alienação dos direitos naturais em favor do Estado, com a extinção do estado de natureza, como no pensamento de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau; em contraposição, para outra corrente há uma limitação recíproca dos direitos naturais, com a correção e não a extinção do estado de natureza, constituindo-se um poder coercitivo capaz de garantir o livre exercício desses direitos, como no modelo descrito por John Locke [32].

No que concerne à instituição do contrato social, no pensamento kantiano o estado natural é aquele em que não há nenhuma justiça distributiva, em que não existe um tribunal incumbido de decidir o que é de direito, ou seja, o estado não-jurídico. Ninguém está seguro do "seu" contra a violência, quando da inexistência de um juiz imparcial com poderes para legitimamente dizer o que é de direito. A este estado opõe-se o estado civil, submetido à justiça distributiva [33].

Não se pode dizer, entretanto, que o estado de natureza kantiano aproxima-se do modelo descrito por Thomas Hobbes [34], onde os homens aderem ao contrato para garantir suas vidas, fugindo da insegurança e do constante estado de guerra de todos contra todos a que estão expostos. Segundo Kant, os homens não têm por máxima a violência e o estado de guerra. Por outro lado, é certo que o estado não-jurídico sugere uma situação de constante insegurança e de justiça negativa, uma vez que não existe um juiz competente para decidir de forma legítima um caso cujo direito se mostra controvertido [35].

O primeiro princípio que deve ser decretado, a fim de manter as noções de Direito, é o seguinte: "É preciso sair do estado natural, no qual cada um age em função de seus próprios caprichos, e convencionar com todos os demais (cujo comércio é inevitável) em submeter-se a uma limitação exterior, publicamente acordada, e por conseguinte entrar num estado em que tudo o que deve ser reconhecido como o Seu de cada qual é determinado pela lei e atribuído a cada um por um poder suficiente, que não é o do indivíduo e sim um poder exterior" [36].

No estado civil há uma relação mútua dos particulares submetidos ao estado jurídico. O contrato social é ato originário, constitutivo da sociedade. O contrato é fruto da razão prática e o sujeito que a ele adere não renuncia à liberdade, pelo contrário, tem na obediência à lei consubstanciada no pacto a expressão máxima da sua liberdade, uma vez que somente obedece à lei que ele mesmo se dá.

Em Kant, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil (estado civil) assemelha-se ao pensamento de John Locke [37]. A idéia kantiana de contrato social é sustentada, até certo ponto, no modelo liberal de defesa do direito à propriedade. Assim prescreve o autor: "Entra num estado em que cada um possa conservar o seu contra os demais (lex justitiae)" [38].

Nada obstante, o direito à propriedade que em John Locke é um direito natural, no modelo kantiano somente existe de forma plena e oponível a todos no contrato, não se constituindo em direito natural. Para Kant, somente há um único direito natural (a liberdade), na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal da razão.

A concepção de defesa da liberdade aproxima o pensamento kantiano acerca do contrato social do modelo defendido por Jean-Jacques Rousseau [39]. Ainda que existam diferenças na forma de pensar a passagem do estado de natureza para o estado civil, tanto em Kant como em Rousseau, o homem não perde sua liberdade com o contrato, apenas abandona sua liberdade natural e selvagem para receber a liberdade civil, a liberdade positiva de somente obedecer à lei decorrente de sua própria vontade de legislar. O homem é livre porque está limitado apenas pela lei que ele deu a si mesmo.

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O Estado de direito kantiano tem um traço marcadamente jurídico. O que caracteriza a atividade do Estado é a atividade jurídica, a instituição e manutenção de um ordenamento jurídico como condição para a coexistência das liberdades externas. Não se fala em Estado de direito como o Estado regulado ou limitado pelo Direito. Trata-se, sim, de uma idéia de Estado em que haja a possibilidade de coexistência mútua entre os indivíduos, segundo uma lei universal de liberdade [40].

Pode-se buscar, ainda, no pensamento kantiano um modelo de Estado de direito que assegura "o seu" de cada um, em decorrência do princípio jurídico da liberdade que pode ser assim exposto: "Lesa-me qualquer um que aja conforme uma máxima segundo a qual é impossível ter como meu um objeto de meu arbítrio"; porque uma constituição civil é tão-somente o estado de direito que assegura a cada um o Seu; mas sem que esse estado o constitua nem o determine, propriamente falando" [41].

A idéia de liberdade é a marca distintiva do Estado de direito kantiano. Um estado de coisas em que o arbítrio de cada um é limitado pelo arbítrio dos demais, segundo um imperativo da razão. O Estado de direito que garante as liberdades externas dos indivíduos, segundo uma lei universal de liberdade, na doutrina kantiana constitui-se em um Estado paulatinamente mais igualitário, vez que a idéia de liberdade em Kant encerra um postulado igualitário, a liberdade como princípio que deve valer para todos.


5. Formas de governo, divisão de poderes e Constituição

Antes de apresentar o modelo kantiano de divisão de poderes, importa analisar, ainda que sucintamente, as formas de governo em Kant. Tomando por critério de distinção a diferença numérica dos detentores do poder soberano, quando apenas um homem manda há a autocracia; quando alguns iguais entre si mandam em todos os demais há a aristocracia; e quando todos mandam em cada um e cada um em si mesmo há a democracia [42].

A forma mais simples é o governo autocrático, consistente na relação única do rei com o povo. Na aristocracia, há primeiramente a relação dos governantes entre si para constituir o soberano e deste com o povo. A democracia é a mais complexa de todas as formas de governo, já que exige a vontade de todos para formar o povo; posteriormente, a vontade dos cidadãos para formar a república e, finalmente, a vontade da república para formar o governante, que resulta dessa vontade coletiva [43].

Outro critério de distinção refere-se à diferença no modo de governar. Para Kant, o soberano pode nortear seu governo de maneira despótica ou republicana. O despotismo representa o exercício arbitrário do poder. A república, no pensamento kantiano, consubstancia-se no exercício do poder nos termos da lei que fora produzida por todos os indivíduos, o tratamento do povo segundo princípios relacionados às leis de liberdade. Não é tomada como a forma de governo contraposta à monarquia. Tanto que, no pensamento kantiano, a melhor forma de governo seria uma república governada por um só, que no Estado moderno ficou conhecida como monarquia constitucional.

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O que se constitui em traço distintivo entre o governo despótico e o governo republicano é o princípio político da divisão de poderes. Tão mais próximo está do despotismo o Estado quanto mais é gerido pelas leis que este Estado deu a si mesmo, onde a vontade pública sucumbe à vontade particular do soberano.

Seguindo o modelo traçado por Montesquieu [44], Kant estabelece sua idéia de divisão de poderes do Estado nos seguintes termos: "o poder soberano (soberania) na pessoa do legislador, o poder executivo (segundo a lei) na pessoa do governo e o poder judicial (como reconhecimento de o Meu de cada qual segundo a lei) na pessoa do juiz..." [45]. Neste sentido, com base em um raciocínio silogístico, do legislativo advém a premissa maior que é a norma geral e abstrata; do executivo, a premissa menor de conformar as ações segundo a norma geral; do judiciário, a conclusão que decide o direito no caso concreto.

A relação que se pode dizer de unidade entre os poderes deve ser estabelecida em três parâmetros. Primeiramente, os poderes devem atuar de forma coordenada, sendo um o complemento do outro para a organização perfeita da constituição do Estado. Em segundo lugar, deve haver uma relação de subordinação entre os poderes, no sentido de que um não pode usurpar a função do outro. Finalmente, a reunião dos poderes, uma vez que o direito da cada sujeito depende da relação de coordenação e subordinação entre os poderes [46].

Ainda que sustente a relação de subordinação entre os Poderes, no pensamento kantiano o poder legislativo é o poder soberano, contra o qual não há possibilidade de nenhuma resistência legítima da parte do povo. O poder legislativo somente pode pertencer à vontade coletiva do povo. Se a lei decorre do próprio povo, então dela não pode surgir injustiça, sendo que só a vontade pública pode ser legisladora. A vontade do legislador é a lei jurídica que decorre da lei moral, que se pode chamar de vontade do sujeito [47].

Um dos traços constitutivos da idéia de Estado em Kant é a defesa do povo como o legislador soberano. Ao povo pertence o poder de dar a si a sua lei, de ser autor e destinatário da lei, segundo um imperativo da razão.

Para Kant, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil (estado jurídico) faz parte de uma espécie de progresso ético, de evolução, a que está impelida a sociedade humana, impelida "por dever" à realização plena da liberdade, um deve de todos os seres racionais. A organização da sociedade civil é dada pela Constituição, que estrutura o Estado e estabelece o "seu" de cada um conforme uma lei universal da razão.

Dessa forma, a Constituição é a expressão da vontade de todo o povo, vontade de se dar uma lei de liberdade. Se o poder legislativo pertence à vontade coletiva do povo, a evolução ética da sociedade deve estabelecer uma Constituição republicana, onde o poder de dar a norma geral e abstrata esteja separado do poder executivo. A paz perpétua [48], estado possível de progresso ético da sociedade humana, somente pode ser garantida pela Constituição republicana, enquanto expressão da vontade coletiva do povo.

Ante um Estado republicano, estruturado com base em uma Constituição republicana, não existe a possibilidade de resistência legítima do povo. Não há direito à desobediência civil ou direito de resistência da parte do povo. Este deve suportar até o abuso do poder soberano, uma vez que qualquer "sublevação contra o poder legislativo soberano deve sempre ser considerada como contrária à lei, e mesmo como subversiva de toda constituição legal. (...) Por conseguinte, a alteração de uma constituição pública (viciosa), que algumas vezes poderia ser necessária, só pode ocorrer através do próprio soberano, por meio de uma reforma e não por meio do povo; não deve ser feita, pois, pela revolução" [49].

Kant nega o direito de resistência do povo contra o soberano até como forma de garantir e fortalecer a Constituição republicana, uma Constituição legal fundada em princípios de liberdade, única Constituição legítima, perene e capaz de garantir o estado de paz perpétua entre os povos.


Considerações finais

Um dos traços distintivos do pensamento kantiano acerca da moral e do Direito é o caráter propositivo de sua metafísica dos costumes. Não há preocupação com o ser (o que é), mas sim com o que pode ser (o dever ser). A doutrina de Kant acerca do Direito e da moral é prescritiva (propositiva). Não é a realidade que se constitui em fator de modificação e transformação do homem enquanto ser racional; pelo contrário, o homem enquanto ser dotado de razão é que pode agir na realidade, no mundo do ser.

E nesse contexto ganha corpo o cerne da filosofia kantiana: a liberdade (bem supremo), o ideal de vida racional da humanidade. O homem nasce para ser livre. Liberdade enquanto livre uso do arbítrio segundo uma lei geral e universal da razão. A liberdade de somente estar limitado por uma lei da razão dada pelo próprio indivíduo e de estar protegido contra o arbítrio dos demais, que devem agir segundo a lei universal por todos convencionada.

A base do liberalismo político que marca o modelo liberal de Estado é a noção kantiana de liberdade positiva, a liberdade que o indivíduo somente alcança quando aceita deixar o estado natural e pactuar a sociedade civil, a constituição de um estado jurídico, pautado por leis de liberdade das quais o legislador é a vontade coletiva do povo.

A influência do pensamento kantiano no modelo jurídico e político liberal é marcante, também, por sua contribuição para uma nova concepção de justiça, ligada à noção de liberdade. O indivíduo é um ser livre e racional, que deve agir segundo um imperativo da razão, segundo as leis de liberdade.

Somente é justa uma ação que possa se conciliar com a liberdade do arbítrio dos demais, segundo uma lei universal. Somente é justo um sistema jurídico que garanta a possibilidade de todos os indivíduos livremente desenvolverem sua personalidade, potencialidades e talentos. É justa e igualitária uma sociedade onde as necessidades básicas dos indivíduos sejam garantidas pelo Estado, mas que, por outro lado, os indivíduos sejam livres para o exercício de seus talentos e o alcance da riqueza por seus méritos.

A teoria kantiana da justiça como liberdade marca profundamente a teoria liberal do Estado. Na base do modelo de Estado liberal estão as contribuições de Kant acerca da liberdade, justiça, legalidade e moralidade. O estudo do modelo jurídico liberal e do nosso modelo jurídico atual passa, certamente, pelo estudo do pensamento kantiano.

Nunca se deve esquecer, por outro lado, que Kant é um homem de seu tempo, um pensador do século XVIII, cuja obra sofre sensivelmente as influências do contexto histórico ocidental, a Revolução Francesa, o movimento iluminista, as lutas contra o despotismo; não há preocupação com uma visão social do Direito e do Estado, que marca os séculos XIX e XX.

As críticas ao pensamento jurídico, político e filosófico de Kant são as mais diversas e vêm sendo feitas desde o século XIX. O presente estudo não se preocupou em explorá-las, ainda que muitas delas sejam de profundo acerto e pertinência. O certo é que, ou para criticá-lo, ou para superá-lo, ou para reinterpretá-lo e engrossar as fileiras de seu pensamento, Kant é um autor que se mostra extremamente atual e impossível de ser esquecido, qualidades realmente privativas dos verdadeiros clássicos.

Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. A doutrina do Direito de Emmanuel Kant. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3020, 8 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20165. Acesso em: 23 dez. 2024.

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