5. A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DA NORMA JURÍDICA
O parágrafo seguinte ilustra de forma admirável a variação por que pode passar a construção de sentido da norma jurídica.
Sobre o sentido dos enunciados, é preciso dizer que ele é construído, produzido, elaborado, a contar das marcas gráficas percebidas pelo agente do conhecimento. Desde que se mostre como manchas gráficas de tinta sobre o papel, no caso do direito escrito, insisto, assumindo a natureza de um ente físico, não se poderia imaginar em sã consciência, que essa base empírica contivesse, dentro dela, como uma jóia, o conteúdo significativo, algo abstrato, de estrutura eminentemente ideal. Muito menos, que o teor de significação estivesse envolvendo o material empírico, ou sobre ele flutuando como nuvens que recobrem os elevados rochedos. Não, o sentido é constituído ao longo de um processo, iniciado, na hipótese, pela percepção visual das letras, dos, vocábulos e das partículas que unem os vocábulos, organizando formações mais amplas. É o ser humano que, em contacto com as manifestações expressas do direito positivo, vai produzindo as respectivas significações. Daí a asserção peremptória segundo a qual é a interpretação que faz surgir o sentido, inserido na profundidade do contexto, mas sempre impulsionada pelas formas literais do direito documentalmente objetivado. Sim, porque já foi dito e redito que não há texto sem contexto ou, de outro modo, na há plano de expressão sem plano de conteúdo e vice-versa (CARVALHO, 2008, p. 122).
Com apoio nesses ensinamentos, podemos afirmar que a mudança de entendimento havida na isenção tributária implica nova construção de sentido para a regra do § 2º do art. 179. do CTN.
Anulado o ato concessivo da isenção, deve a Fazenda Pública providenciar a constituição do crédito tributário, de modo que o prazo que não se computa não é mais o prescricional, mas sim o decadencial. Desse modo, se isenção indevida foi concedida depois de o prazo decadencial ter iniciado, não computar o tempo transcorrido entre as datas da concessão e da anulação da isenção é suspender a contagem daquele prazo entre as duas datas; se foi concedida antes de o prazo decadencial ter iniciado, não computar o tempo entre as datas da concessão e da anulação da isenção equivale a fixar a segunda data como termo inicial daquele prazo.
O § 2º do art. 179. do CTN obriga aplicar, quando cabível, o disposto no art. 155. do Código. Note-se que a remissão é ao art. 155. e não a uma ou mais de suas regras. Logo, se regra posta para a moratória fizer sentido quando adaptada ou convertida para a isenção, ela deverá ser aplicada.
Interpretação conjunta do § 2º do art. 179, da primeira parte do parágrafo único do art. 155. e do inc. I deste artigo permite concluir que, somente em caso de dolo ou simulação do beneficiado, ou de terceiro em benefício daquele, é que se suspende o prazo decadencial ou se adia o termo inicial desse prazo.
Interpretação conjunta do § 2º do art. 179, da segunda parte do parágrafo único do art. 155. e do inc. II deste artigo permite concluir que, não tendo havido dolo ou simulação do beneficiado, ou de terceiro em benefício daquele, a anulação do ato administrativo que concedeu a isenção dever ocorrer antes de extinto o direito de a Fazenda Pública do Estado proceder ao lançamento do tributo. Afinal, de nada adiantaria anular o ato concessivo da isenção, se a Fazenda Pública não mais pudesse constituir o crédito tributário por meio do lançamento.
Interpretação teleológica do parágrafo único do art. 155. revela que o legislador quis evitar que a prescrição favoreça aquele que, mediante dolo ou simulação, obtém moratória indevida, que depois é anulada. Logo, é razoável supor que também se deva evitar que a decadência favoreça aquele que, mediante dolo ou simulação, obtém isenção indevida, que depois é anulada. Assim, mesmo que a regra do § 2º do art. 179. do CTN não existisse ou não pudesse ser interpretada à luz de nova teoria de isenção, ela poderia ser construída por analogia, prevista no inc. I do art. 108. do CTN. É a aplicação do brocardo latino ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio (onde existe a mesma razão, prevalece o mesmo dispositivo legal).
Como a regra jurídica não está expressa, mas foi construída por interpretação conjunta de três regras do Código Tributário Nacional, poderíamos falar em suspensão legal tácita, com a diferença de haver circunstância impeditiva do exercício do direito8.
Como exemplo, considere-se a concessão de isenção de IPVA para 1 (um) único veículo utilizado como táxi, de propriedade de motorista profissional autônomo, por ele utilizado em sua atividade profissional, de acordo com a regra prevista no inc. IV do art. 13. da Lei Estadual 13.296/2008. A regra de isenção exclui do critério material da hipótese da regra-matriz de incidência do IPVA (ser proprietário de veículo automotor), precisamente no complemento do verbo, todo o veículo utilizado como táxi, desde que de propriedade de motorista profissional autônomo e o único por ele utilizado em sua atividade profissional.
Demonstrado posteriormente ser falsa a declaração, do proprietário, de que não possuía outro veículo com o benefício (requisito constante da al. "b" do inc. IV do art. 3º da Portaria CAT 56/1996), deve a Fazenda Pública anular a isenção, por ter o beneficiado agido com dolo, e efetuar o lançamento do imposto. Nesse caso, pela regra do § 2º do art. 179, se a isenção indevida foi concedida depois de iniciado o prazo decadencial (cujo termo inicial é dado pela regra do inc. I do art. 173. do CTN), não se computa no prazo decadencial o tempo transcorrido entre a concessão da isenção e sua anulação.
É interessante notar que o parágrafo único do art. 182. do CTN apresenta texto idêntico ao do § 2º do art. 179. do Código. O artigo 182 cuida da anistia não concedida em caráter geral. O artigo faz parte da Seção III (Anistia) do CAPÍTULO V (EXCLUSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO) do TÍTULO III (CRÉDITO TRIBUTÁRIO) do LIVRO SEGUNDO (NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO) do CTN. A anistia somente pode ser concedida limitadamente às infrações punidas com penalidades pecuniárias até determinado montante (al. "b" do inc. II do art. 181. do CTN). Para ter direito à anistia, o contribuinte deve pagar o tributo no prazo fixado pela lei que a conceder (al. "d" do mesmo inciso). Porque o crédito tributário já foi constituído pelo lançamento e porque o parágrafo único do art. 182. do CTN manda aplicar, quando cabível, o disposto na regra do art. 155. do Código, conclui-se que, tendo havido dolo ou simulação do beneficiado, ou de terceiro em benefício daquele, o tempo decorrido entre a concessão da anistia e sua anulação não se computa para efeito da prescrição do direito de a Fazenda Pública prosseguir na cobrança do crédito tributário. A suspensão, portanto, é do prazo prescricional.
6. Casos de deslocamento do termo inicial do prazo decadencial e de suspensão desse prazo
A decadência e a prescrição decorrem da inércia do credor. Na decadência, a inércia foi da Fazenda Pública em lançar o tributo ou do contribuinte em requerer a restituição do tributo que pagou indevidamente ou a maior; na prescrição, a inércia foi da Fazenda em ajuizar ação de execução fiscal ou do contribuinte em propor ação judicial para realizar seu direito de crédito.
Se, por exemplo, a Fazenda Pública for obstada por medida judicial, de lavrar o auto de infração, não será razoável computar, no prazo decadencial, o período em que esteve impedida de efetuar o lançamento. Assim, se liminar em mandado de segurança preventivo determina que a Fazenda se abstenha de efetuar o lançamento do ICMS na importação de mercadoria do exterior, é natural que o termo inicial do prazo decadencial seja deslocado para a data em que a Fazenda foi intimada da cassação da liminar. De fato, não há sentido em falar de inércia do credor durante o prazo de vigência da liminar. Da mesma forma, se liminar impeditiva do lançamento for deferida depois de iniciado o prazo decadencial, não se deve computar o intervalo em que a medida judicial esteve vigente, só se retomando a contagem do prazo quando a Fazenda for intimada da cassação da liminar (suspensão fáctica). Essas as soluções que melhor se coadunam com a natureza da decadência e com a justiça fiscal.
Conclusão
A interrupção do prazo decadencial tem previsão expressa no CTN; a suspensão desse prazo, não, mas pode ser inferida por interpretação sistemática de regras de dois artigos do Código. Em situações como as descritas neste artigo, a justiça fiscal somente é realizada quando se admite o adiamento do termo inicial do prazo decadencial ou a suspensão desse prazo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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________________. Decadência e prescrição do direito do contribuinte e a LC 118: entre regras e princípios. Salvador: Revista Diálogo Jurídico nº 15, 2007. Disponível em: <www.direitopublico.com.br/pdf_seguro/Decad%C3%AAncia%20e%20prescri%C3%A7%C3%A3o%20-%20Eurico%20Santi.pdf> Acesso em: 14/07/2011.
SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. Rio de Janeiro: Financeiras, s/ data.
Notas
1 Exemplo: suspensão do prazo decadencial, em razão de liminar em mandado de segurança que determinou que a Fazenda Pública se abstivesse de lançar o tributo. Note-se, porém, que se a liminar determinar apenas a suspensão de crédito tributário ainda não lançado ou formalizado pelo impetrante, deverá a Fazenda Pública lançar o tributo, para evitar que ocorra a decadência, ressalvando, no lançamento, que o crédito tributário já nasce com a exigibilidade suspensa.
2 Exemplo: durante o período em que se discute débito da Fazenda na esfera administrativa ou judicial, estão suspensos, respectivamente, os prazos decadencial e prescricional (vide regra do inc. II do art. 168. do CTN).
3 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto de Indústrias e Profissões. São Paulo: Max Limonad, 1964, p. 673.
4 AUGUSTO FILHO, João. Isenções e Exclusões Tributárias, São Paulo: José Bushatsky Editor, 1979, p. 61.
5 Entendemos haver contrariedade, uma vez que uma norma ordena tributar e a outra proíbe fazê-lo (BOBBIO, 1991, p. 85).
6 Conforme se vê, Borges adota o conceito de validade proposto por Pontes de Miranda, em vez do proposto por Hans Kelsen. Para este autor, a norma ser válida "significa dizer que ela pertence ao direito positivo e que os homens devem se conduzir de acordo com o que ela prescreve (obrigatoriedade)"; para Pontes de Miranda: algo somente pode valer se existir; não tem sentido falar de validade ou de invalidade de algo que não existe; pode a norma existir no sistema (porque é suficiente perante a regra que lhe fundamenta), mas não ser válida, "porque produzida em desacordo com as demais normas que regulam sua produção, isto é, porque apresenta uma deficiência perante as regras que a fundamentam" (CARVALHO, 2009, p. 669. e 670).
7 Credenciado por norma de estrutura prevista na legislação do tributo (como a do § 1º do art. 72. da Lei 6.374/1989, que dispõe sobre a instituição do ICMS no Estado de São Paulo), que retira seu fundamento de validade da norma de estrutura do caput do art. 142. do CTN.
8 Isso porque a concessão de isenção impede o lançamento do imposto ou anula o que já foi efetuado.