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Sobre a ilegal atribuição do foro de competência diverso do foro consumerista

A questão das lides judiciais que têm sua origem em uma típica relação de consumo, em que o consumidor, mesmo figurando no polo passivo de demandas promovidas pelos respectivos fornecedores, possui o lídimo direito de escolha do foro competente.

Este artigo pretende abordar a questão das lides judiciais que têm sua origem em uma típica relação de consumo, em que o consumidor, mesmo figurando no polo passivo de demandas promovidas pelos respectivos fornecedores, possuem o lídimo direito de escolha do foro competente.

Isso porque, por ser parte hipossuficiente na sobredita relação jurídica de consumo, o consumidor possui a faculdade de escolher o foro competente para conhecimento da demanda consumerista, quer o foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quer o do seu próprio domicílio, conforme a norma jurídica disposta nos artigos 93, inciso I e 101, inciso I, do CDC, litteris:

"Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:

I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;

II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente."

"Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:

I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor;

II - o réu que houver contratado seguro de responsabilidade poderá chamar ao processo o segurador, vedada a integração do contraditório pelo Instituto de Resseguros do Brasil. Nesta hipótese, a sentença que julgar procedente o pedido condenará o réu nos termos do art. 80 do Código de Processo Civil. Se o réu houver sido declarado falido, o síndico será intimado a informar a existência de seguro de responsabilidade, facultando-se, em caso afirmativo, o ajuizamento de ação de indenização diretamente contra o segurador, vedada a denunciação da lide ao Instituto de Resseguros do Brasil e dispensado o litisconsórcio obrigatório com este."

(grifos acrescidos)

Não restam dúvidas de que se a lei confere a prerrogativa de o consumidor ingressar com a ação judicial em face do fornecedor no foro de seu domicílio, quando a ação é contraposta, o fornecedor tem a obrigação de propor a demanda no foro do domicílio do consumidor, já que, se assim não fosse, estar-se-ia violando o próprio sistema amplo de proteção, além da própria lógica normativa de facilitação da defesa consumerista, consoante artigo 6.º, inciso VIII, do CDC [01].

O legislador, ao definir regras de competência relativas ao local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, por exemplo, guiou-se abertamente pelo critério do local do resultado, que vai coincidir, em muitos casos, com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso ao Poder Judiciário e a produção de provas, por parte do consumidor.

Evidentemente que a regra legal somente protegerá o consumidor se coincidirem o local do dano com seus domicílios, razão pela qual caberá a escolha do foro ao próprio consumidor, na verdade, qualquer dos legitimados do artigo 82, do CDC [02], nos exatos termos da precisa lição do doutrinador Rizzatto Nunes, ipsis verbis:

"Não vemos em que possa estar havendo proteção ao consumidor, por exemplo, num acidente de avião, que caindo no meio da floresta amazônica fere e mata dezenas de passageiros. Propor a ação coletiva no local do fato não beneficia nenhum consumidor que sobreviver, nenhum parente dos que faleceram e, aliás, nem a associação das vítimas ou o próprio fornecedor responsável. Não beneficia ninguém e não tem sentido algum. As questões de âmbito local somente beneficiam os consumidores que tenham domicílio no local do evento, o que nos parece óbvio. (...) O próprio CDC permite a solução para o problema acima apontado. Ela está na interpretação sistemática a ser feita com utilização do regramento previsto no inciso I do art. 101." (NUNES, Rizzatto. "Comentários ao Código de Defesa do Consumidor". 4.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 812)

(grifos acrescidos)

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Assim, na relação de consumo opta-se por proteger o consumidor como parte contratual mais débil, a proteger suas expectativas legítimas, então nascidas da confiança no vínculo contratual e na proteção do Direito, razão pela qual, no âmbito da tutela especial reparatória, o que o Código se prontifica a fazer é dotar o consumidor – presumivelmente a parte mais fraca na relação jurídica com o fornecedor (art. 4.º, inciso I, CDC) – de instrumentos mais eficazes para que possa exercer os direitos que a lei especial lhe assegura.

Esse também tem sido o posicionamento jurisprudencial adotado pelo C. Superior Tribunal de Justiça e demais tribunais pátrios, no sentido de definir, em caso de conflito de competência, o foro competente como o do domicílio do consumidor, inclusive porque a jurisprudência do C. STJ reconhece que o critério determinativo da competência nas ações derivadas de relações de consumo é de ordem pública, caracterizando-se como regra de competência absoluta, in verbis:

"DIREITO CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. CONTRATO DE ADESÃO. ARTIGO 535, II, CPC. VIOLAÇÃO. NÃO-OCORRÊNCIA. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA. POSSIBILIDADE DE DECLINAÇÃO DE COMPETÊNCIA. AJUIZAMENTO DA AÇÃO. PRINCÍPIO DA FACILITAÇÃO DA DEFESA DOS DIREITOS. COMPETÊNCIA. FORO DO DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR.

(...)

3. O magistrado pode, de ofício, declinar de sua competência para o juízo do domicílio do consumidor, porquanto a Jurisprudência do STJ reconheceu que o critério determinativo da competência nas ações derivadas de relações de consumo é de ordem pública, caracterizando-se como regra de competência absoluta.

4. O microssistema jurídico criado pela legislação consumerista busca dotar o consumidor de instrumentos que permitam um real exercício dos direitos a ele assegurados e, entre os direitos básicos do consumidor, previstos no art. 6º, VIII, está a facilitação da defesa dos direitos privados.

5. A possibilidade da propositura de demanda no foro do domicílio do consumidor decorre de sua condição pessoal de hipossuficiência e vulnerabilidade.

6. Não há respaldo legal para deslocar a competência de foro em favor de interesse de representante do consumidor sediado em local diverso ao do  domicílio do autor.

7. Recurso especial não-conhecido." (STJ, 4.ª T, Resp n.º 1.049.639, Min. João Otávio, j. 16.12.2008, DJ 2.2.09)

"PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE CONSÓRCIO. CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. NULIDADE. DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR. PARTE HIPOSSUFICIENTE DA RELAÇÃO. FORO ELEITO.

1. A jurisprudência do STJ firmou-se, seguindo os ditames do Código de Defesa do Consumidor, no sentido de que a cláusula de eleição de foro estipulada em contrato de consórcio há que ser tida como nula, devendo ser eleito o foro do domicílio do consumidor a fim de facilitar a defesa da parte hipossuficiente da relação.

2. Agravo regimental desprovido." (STJ, AgRg no Ag 1070671/SC, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2010, DJe 10/05/2010)

"DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. DEFEITO NO SERVIÇO PRESTADO PELA EMPRESA. USUÁRIO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. Sendo reconhecida a qualidade de consumidor ao recorrente, deve a legitimidade ativa ser considerada em abstrato, com fulcro na teoria da asserção, levando-se em linha de conta, prima facie, por verídicas as assertivas aduzidas pelo autor quanto à titularidade do direito material. O fato de existir demanda tramitando em outro Juízo com fundamento no mesmo vício no serviço prestado através da referida linha telefônica de n.º 3279-0820, ajuizada por outro usuário (fls. 71/121), não justifica a extinção prematura do presente feito, cumprindo ao Juiz da causa, antes de apreciar o mérito, tomar as providências cabíveis a fim de se evitar decisões conflitantes. Provimento do recurso para anular a sentença e determinar o prosseguimento do feito." (TJRJ, 2.ª Câm. Cív., Ap. Cível 2007.001.32664,– Rel. Jds. Des. Heleno Ribeiro P. Nunes, Julgamento: 4.7.2007)

(grifos acrescidos)

Na execução individual, por exemplo, facilita-se o acesso do consumidor aos órgãos judiciários com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais (art. 6.º, inciso VII, CDC), facultando-se, com isso, a propositura da ação reparatória em uma Vara Cível ou no Juizado Especial, no foro de seu domicílio, segundo as normas pertinentes à matéria, consoante a lição da doutrinadora Cláudia Lima Marques, litteris:

"Ao garantir aos consumidores a sua defesa pelo Estado criou a Constituição uma antinomia necessária em relação a muitas de suas próprias normas, flexibilizando-as, impondo em última análise uma interpretação relativada dos princípios em conflito, que não mais podem ser interpretados de forma absoluta ou estaríamos ignorando o texto constitucional." (MARQUES, Cláudia Lima. "Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais." 4.ª ed., São Paulo: RT, 2002, p. 745)

Nesse sentido, não restam dúvidas de que o ato judicial praticado pela autoridade coatora viola a competência territorial estipulada pela lei especial protetiva em favor do consumidor, que, portanto, deve prevalecer, nos termos da doutrina sustentada por Kazuo Watanabe, verbis:

"O foro do domicílio do autor é uma regra que beneficia o consumidor, dentro da orientação fixada no inc. VII do art. 6.º do Código, de facilitar o acesso aos órgãos judiciários. Cuida-se, porém, de opção dada ao consumidor, que dela poderá abrir mão para, em benefício do réu, eleger a regra geral, que é a do domicílio do demandado (art. 94, CPC)." (WATANABE, Kazuo. Comentários ao artigo 101. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; [Et alli]. "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto". 7.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 827)

Ademais, as decisões judiciais proferidas em sede de juizados especiais, devem observar o conteúdo jurídico disposto no artigo 4.º, da Lei n.º 9.099/95, que também levam em conta, à evidência, a obrigação de prestar serviços das empresas numa típica relação de consumo, que, eventualmente, não venha a ser satisfeita a contento:

"Art. 4º É competente, para as causas previstas nesta Lei, o Juizado do foro:

I - do domicílio do réu ou, a critério do autor, do local onde aquele exerça atividades profissionais ou econômicas ou mantenha estabelecimento, filial, agência, sucursal ou escritório;

II - do lugar onde a obrigação deva ser satisfeita;"

Calha à fiveleta que, mesmo admitindo, ad argumentandum tantum, a regra de competência subsidiariamente proposta pelo CPC, em seu artigo 94 [03], deve-se respeitar a regra estatuída pelo microssistema especial próprio estabelecido pelo CDC.

Portanto, dúvida não pode haver a respeito de que, estando sob o pálio de uma típica relação de consumo, ainda que figurando no polo passivo processual, o consumidor brasileiro possui o livre direito de escolha do foro competente, dada a especial regra de competência definida pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990).


Notas

  1. CDC – Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...)  VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
  2. CDC – Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I - o Ministério Público, II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código; IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.
  3. CPC - Art. 94. A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu. § 1º Tendo mais de um domicílio, o réu será demandado no foro de qualquer deles. § 2º Sendo incerto ou desconhecido o domicílio do réu, ele será demandado onde for encontrado ou no foro do domicílio do autor. § 3º Quando o réu não tiver domicílio nem residência no Brasil, a ação será proposta no foro do domicílio do autor. Se este também residir fora do Brasil, a ação será proposta em qualquer foro. § 4º Havendo dois ou mais réus, com diferentes domicílios, serão demandados no foro de qualquer deles, à escolha do autor.
Sobre os autores
André Antonio Araújo de Medeiros

Mestre pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL/BA, Especialista em Direito Tributário pelo IBET, Professor de Direito Financeiro e Tributário (Graduação e Pós-Graduação) e Sócio-Fundador do Escritório André Medeiros Advogados Associados, especializado em Direito Empresarial e Tributário

Luisiana Lima de Medeiros

Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia - UFBA e Advogada especializada em Direito Civil e do Consumidor. Sócia do Escritório André Medeiros Advogados Associados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, André Antonio Araújo; MEDEIROS, Luisiana Lima. Sobre a ilegal atribuição do foro de competência diverso do foro consumerista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3038, 26 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20294. Acesso em: 22 nov. 2024.

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