O inquérito policial pode ser conceituado, em síntese apertada, como procedimento administrativo, sigiloso, escrito, inquisitivo, dispensável, elaborado pela polícia judiciária (presidido por delegado de polícia de carreira), destinado a coligir elementos de convicção que possibilitem a deflagração de ação penal em face dos autores da infração penal investigada.
O procedimento em comento deve ser pautado pelo respeito às normas constitucionais e infraconstitucionais que o regem e o limitam. Em que pese inquisitivo por natureza e por definição, a produção de provas no seu curso deve observar as limitações impostas pelo respeito aos direitos e garantias individuais grafados com pena de ouro na Lex Legum e à forma de produção determinada pelo CPP e pela legislação processual penal extravagante.
Qualquer ação do Estado-investigação que fuja desse norte pode e deve ser entendida como ilegal e a prova dela resultante deverá ser tida como ilícita ou ilegítima (caso a violação atinja direitos individuais ou a forma prescrita para produção da prova, respectivamente). É o que prescreve o artigo 5º, LVI, da CF, corroborado pelo artigo 157, do CPP.
O destino da prova reputada ilícita é informado pela cabeça do citado artigo 157, do CPP, e pelo seu § 3º: desentranhamento do processo e posterior inutilização.
Feito esse breve intróito, cumpre-nos analisar dois casos pontuais, ambos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, com o fito de alertar para o perigoso superdimensionamento dos direitos individuais em detrimento do interesse de toda sociedade em ver responsabilizados os autores do crime, tudo com vistas a evitar a temida sensação de impunidade hoje tão presente, e que se mostra como uma das perniciosas molas propulsoras do delito.
Vejamos o primeiro caso. O STJ anulou condenação pelo crime de falsidade ideológica calcado no fato de que a autoridade policial não informou claramente à investigada do seu direito a não auto-incriminação, quando da colheita de material gráfico para realização de perícia. Trata-se do HC 107285/RJ, relatado pela Ministra Laurita Vaz. Com o fito de melhor situar o leitor, cumpre trazer à baila a decisão:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. DELITO DE FALSIDADE IDEOLÓGICA. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. "PRIVILÉGIO CONSTITUCIONAL CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO: GARANTIA BÁSICA QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. A PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO (PARLAMENTAR, POLICIAL OU JUDICIAL) NÃO SE DESPOJA DOS DIREITOS E GARANTIAS ASSEGURADOS" (STF, HC 94.082-MC/RS, REL. MIN. CELSO DE MELLO, DJ DE 25/03/2008). PRINCÍPIO "NEMO TENETUR SE DETEGERE". POSITIVAÇÃO NO ROL PETRIFICADO DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS (ART. 5.º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA): OPÇÃO DO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO BRASILEIRO DE CONSAGRAR, NA CARTA DA REPÚBLICA DE 1988, "DIRETRIZ FUNDAMENTAL PROCLAMADA, DESDE 1791, PELA QUINTA EMENDA [À CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA], QUE COMPÕE O "BILL OF RIGHTS"" NORTE-AMERICANO (STF, HC 94.082-MC/RS, REL. MIN. CELSO DE MELLO, DJ DE 25/03/2008). PRECEDENTES CITADOS DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS: ESCOBEDO V. ILLINOIS (378 U.S. 478, 1964); MIRANDA V. ARIZONA (384 U.S. 436, 1966), DICKERSON V. UNITED STATES (530 U.S. 428, 2000). CASO MIRANDA V. ARIZONA: FIXAÇÃO DAS DIRETRIZES CONHECIDAS POR "MIRANDA WARNINGS", "MIRANDA RULES" OU "MIRANDA RIGHTS". DIREITO DE QUALQUER INVESTIGADO OU ACUSADO A SER ADVERTIDO DE QUE NÃO É OBRIGADO A PRODUZIR QUAISQUER PROVAS CONTRA SI MESMO, E DE QUE PODE PERMANECER EM SILÊNCIO PERANTE A AUTORIDADE ADMINISTRATIVA, POLICIAL OU JUDICIÁRIA. INVESTIGADA NÃO COMUNICADA, NA HIPÓTESE, DE TAIS GARANTIAS FUNDAMENTAIS. FORNECIMENTO DE MATERIAL GRAFOTÉCNICO PELA PACIENTE, SEM O CONHECIMENTO DE QUE TAL FATO PODERIA, EVENTUALMENTE, VIR A SER USADO PARA FUNDAMENTAR FUTURA CONDENAÇÃO. LAUDO PERICIAL QUE EMBASOU A DENÚNCIA. PROVA ILÍCITA. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA (FRUITS OF THE POISONOUS TREE). ORDEM CONCEDIDA. 1. O direito do investigado ou do acusado de ser advertido de que não pode ser obrigado a produzir prova contra si foi positivado pela Constituição da República no rol petrificado dos direitos e garantias individuais (art. 5.º, inciso LXIII). É essa a norma que garante status constitucional ao princípio do "Nemo tenetur se detegere" (STF, HC 80.949/RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, 1.ª Turma, DJ de 14/12/2001), segundo o qual ninguém é obrigado a produzir quaisquer provas contra si. 2. A propósito, o Constituinte Originário, ao editar tal regra, "nada mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema normativo instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda [à Constituição dos Estados Unidos da América], que compõe o "Bill of Rights" norte-americano" (STF, HC 94.082-MC/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ DE 25/03/2008). 3. "Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado – ainda que convocada como testemunha (RTJ 163/626 –RTJ 176/805-806) –, possui, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si própria" (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO). 4. Nos termos do art. 5.º, inciso LXIII, da Carta Magna "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado". Tal regra, conforme jurisprudência dos Tribunais pátrios, deve ser interpretada de forma extensiva, e engloba cláusulas a serem expressamente comunicadas a quaisquer investigados ou acusados, quais sejam: o direito ao silêncio, o direito de não confessar, o direito de não produzir provas materiais ou de ceder seu corpo para produção de prova etc. 5. Na espécie, a autoridade policial, ao ouvir a Paciente durante a fase inquisitorial, já a tinha por suspeita do cometimento do delito de falsidade ideológica, tanto é que, de todas as testemunhas ouvidas, foi a única a quem foi requerido o fornecimento de padrões gráficos para realização de perícia, prova material que ensejou o oferecimento de denúncia em seu desfavor. 6. Evidenciado nos autos que a Paciente já ostentava a condição de investigada e que, em nenhum momento, foi advertida sobre seus direitos constitucionalmente garantidos, em especial, o direito de ficar em silêncio e de não produzir provas contra si mesma, resta evidenciada a ilicitude da única prova que embasou a condenação. Contaminação do processo, derivada da produção do laudo ilícito. Teoria dos frutos da árvore envenenada. 7. Apenas advirta-se que a observância de direitos fundamentais não se confunde com fomento à impunidade. É mister essencial do Judiciário garantir que o jus puniendi estatal não seja levado a efeito com máculas ao devido processo legal, para que a observância das garantias individuais tenha eficácia irradiante no seio de toda a sociedade, seja nas relações entre o Estado e cidadãos ou entre particulares (STF, RE 201.819/RS, 2.ª Turma, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Rel. p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, DJ de 27/10/2006). 8. Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia com base em outras provas.
A própria relatora do acórdão revelou a preocupação de que a decisão não fosse entendida como um fomento à impunidade (vide item 7 da decisão). Infelizmente essa é a única interpretação possível. Diuturnamente são criadas amarras que engessam cada vez mais o trabalho investigativo exercido pela polícia judiciária.
Ao meu ver, constitui evidente inversão de valores deixar de condenar a pessoa sabidamente culpada porque não lhe foi informado de maneira explícita que o material gráfico por ela fornecido poderia ser utilizado em seu desfavor (essa é, finque-se, uma interpretação óbvia – o material gráfico serve à realização de perícia que pode ser contrária ou favorável ao fornecedor).
Estamos diante de uma interpretação que incha sobremaneira os direitos individuais outorgados pela Carta da República e que findou por desmantelar investigação que custou aos cofres do Estado (investigação essa satisfatória, porque efetivamente conseguiu identificar a autora do crime e colher prova técnica que a incriminava).
A segunda decisão analisada é a que anulou a operação Boi Barrica (ou Faktor), da Polícia Federal. O Ministro Sebastião Reis Júnior, nos autos do HC 191378/DF entendeu, em linhas gerais, que relatório do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, do Ministério da Fazenda - órgão de inteligência responsável pela prevenção e pelo combate ao crime de lavagem de dinheiro), não é documento hábil para lastrear quebra de sigilo fiscal e bancário (todas as provas resultantes das quebras foram anuladas – teoria dos frutos da árvore envenenada).
Ora, o que será melhor para lastrear um afastamento de sigilo bancário ou fiscal que um relatório de inteligência fornecido por um órgão estatal especializado no combate à lavagem de dinheiro?
A quebra de sigilo fiscal e bancário e a posterior perícia realizada nos documentos por elas fornecidos é a melhor forma de identificar e lastrear o caminho percorrido pelo dinheiro em crimes contra ordem tributária, contra o sistema financeiro, de lavagem de dinheiro e os que envolvem desvios de verbas públicas.
Aliás, quanto melhor a prova técnica baseada em dados reais fornecidos por instituições creditícias que eventuais ilações acerca da origem e destino do dinheiro feitas pelo aparelho policial.
Dizer que o cidadão que dilapida o patrimônio público não pode ter seu sigilo bancário e fiscal afastados pelo Estado-juiz diante de relatório feito por órgão estatal de inteligência é sepultar qualquer possibilidade de responsabilização da criminalidade organizada (que se esconde atrás de complexas transações financeiras, utilizando-se de ‘laranjas’ para encobrir seus delitos).
Se por um lado o direito à intimidade e ao sigilo de dados é garantido constitucionalmente pela Lex Maxima, por outro é cediço que não há direito individual absoluto. Ao passo em que o cidadão se utiliza do direito à intimidade outorgado pela Carta da República para cometer atos ilícitos, esse mesmo direito merece ceder ao interesse público representado pela elucidação da prática delitiva. Essa é uma das características dos direitos fundamentais, a limitabilidade, que na lição de Pedro Lenza (in Direito Constitucional Esquematizado, editora Método, páginas 528 e 529) significa, in verbis:
.Os direitos fundamentais não são absolutos (relatividade), havendo, muitas vezes, no caso concreto, confronto, conflito de interesses. A solução ou vem discriminada na própria Constituição (ex.: direito de propriedade versus desapropriação), ou caberá ao intérprete, ou magistrado, no caso concreto, decidir qual direito deverá prevalecer, levando em consideração a regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos, conjugando-a com a sua mínima restrição
Se é certo que o Estado-juiz deve cuidar para que não sejam cometidos excessos no curso das investigações levadas a efeito pelo Estado-investigação, é igualmente fato que ele deve ser cauteloso com o fito de não superdimensionar direitos individuais em detrimento do interesse de toda sociedade, gerando, como dito supra, funesta sensação de impunidade.
Anos de investigação, dinheiro público e esmero na produção de provas robustas e técnicas não podem ser sumariamente descartados sob o argumento da proteção dos direitos individuais dos que se locupletam do erário e contribuem para o atraso do nosso país.