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Tortura: bases dogmáticas, excludentes de ilicitude e de culpabilidade

Não nos enganemos: a tortura é utilizada como instrumento de controle de classe. Sempre foi assim. O dominante violenta o dominado – ora, a história é escrita por vencedores, não é mesmo? – e a verdade é que nenhum torturador do passado foi punido. Por que eles seriam punidos agora?

Resumo: Este ensaio tem por finalidade propror um convite para uma primeira leitura e análise das bases dogmática-filosóficas a respeito da tortura. Busca-se delinear o seu campo, definindo-a e tratando das Fontes Internacionais de Direitos Humanos, sob aspectos teóricos e críticos da matéria. Por fim, analisa as causas excludentes de ilicitude e de culpablidade frente ao crime de tortura.

Palavras-chave:Tortura; Fontes Internacionais de Direitos Humanos; Causas Excludentes de Ilicitude; Causas Excludentes de Culpablidade

Abstract This essay’s intention is offer an invite for a first reading and parsing of the philosophical-dogmatic bases of torture. It demands to outline its ground, treating and defining the International Sources of Human Rights, underneath theoretic and critical aspects of the theme. Concluding, it makes an analysis of the exclusionary causes of culpability and illicitness against the torture’s crime.

Keywords: Torture; International Sources of Human Rights; Exclusionary Causes of Illicitness; Exclusionary Causes of Culpability


1. A pessoa e o Direito

"Caiu um homem ao mar!

... Que importa? O navio segue adiante. (...)

Não há mais homens. Onde está Deus?

Chama. Alguém! Continua a chamar.

Nada no horizonte, nada no céu. (...)

Ó impiedosa marcha das sociedades humanas,

em que não se dá atenção aos homens e as

almas que vão se perdendo! Oceano que absorve

sem remédio tudo o que a lei deixa cair. (...)

O mar é inexorável escuridão social a que a

penalidade arremessa os seus condenados.

O mar é imensa miséria!

A alma que cai nesse redemoinho pode tornar-se

cadáver.

Quem a ressuscitará?"

Lês Miserables, Victor Hugo

O tema a ser tratado neste ensaio é a tortura. Antes, porém, devemos tratar de tudo o que circunda este ato – o de torturar.

O objetivo da tortura é infligir intenso sofrimento a uma pessoa, seja sofrimento físico, seja sofrimento mental, para a obtenção de informação ou confissão. A tortura, outrossim, é feita mediante atos físicos ou psicológicos, coercitivos e extremamente cruéis, desumanos e degradantes.

A pessoa – alvo da tortura – é a finalidade maior do Direito. O Direito existe para proteger o homem, em todas as suas acepções. Mais: o Direito existe para promover o homem. O homem é fim, não meio. O Direito deve tratá-lo como fim, não como meio.

A questão maior que o quadro acima descrito nos leva a pensar é que a tortura não é feita – como faz parecer a lei – para obter confissão ou informação contrariamente à vontade do torturado. A tortura é cometida porque o torturador (uma pessoa) tem profundo sentimento de desprezo por algumas pessoas, no caso os inimigos. Se o torturador enxergar em alguém um inimigo (mesmo que nunca o tenha conhecido ou com ele interagido), este receberá o seu desprezo.

E como ele despreza aquela vida diante de seus olhos, nada o detém. Enquanto uma ideologia de dominação ainda persistir no mundo, a tortura não terminará, porque o desprezo de um homem em face do gênero humano. É como se o torturador olhasse para o torturado em não enxergasse nele uma pessoa.

Vejamos que a tortura por si só é totalmente desprovida de fundamento. Ricardo Rabinovich-Berkman faz um levantamento de que a tortura, em todos ordenamentos jurídicos inspirados no Direito Romano-Canônico, era utilizada como meio de obter confissão como meio de prova, pois, afinal, a confissão por muitos séculos foi considerada a rainha das provas; na verdade, como enfatiza Rabinovich-Berkman, "... la tortura se presentaba como una alternativa frente a la carencia de otros métodos de averiguación de la verdad" [01].*

A tortura então é um ato sem nenhum sentido humano. Não é ato de gente. Não está acobertado pelo Direito, não importa a situação, se de legalidade ordinária ou se de extraordinária. Não há regra jurídica que permita a conduta, e mesmo que esta exista, contraria a própria idéia de Direito – e aqui não há esforço hermenêutico capaz de transpassar essa barreira.

Enfim. Os seres humanos são seres espirituais (são inteligentes, tal qual também o são outros seres na natureza), mas, diferentemente de um cão, por exemplo, o homem é capaz de idealizar, de inventar, de criar e planejar [02]. Em sendo seres espirituais, o homem deve evoluir, no sentido de garantir a sua própria existência. Para evoluir, o homem precisa se realizar em sua plenitude, como indica Goffredo Telles Junior. E fará isso através dos bens espirituais, bens como o respeito à personalidade humana, o reconhecimento a uma igualdade essencial dos seres humanos, a garantia da liberdade física e de manifestar pensamento, a segurança da justiça, o reconhecimento da honestidade e o regime de legalidade das leis e do governo [03]. Estes bens espirituais são bens soberanos, porque são os únicos bens especificamente humanos e são ínsitos a todo e qualquer homem, pelo simples (por vezes banal) motivo: o de ser homem. Goffredo diz que tais bens são soberanos porque são bens do humano no homem [04].

Esses bens soberanos são positivados e recebem o nome de Direitos Humanos, que por natureza são bens subjetivos. Logo, temos permissões jurídicas para fruir bens soberanos. Tenho o DIREITO de fruir bens soberanos, tenho o DIREITO de exigir dos outros que respeitem meus bens soberanos. Tenho o DIREITO de exigir que as demais pessoas respeitem meus bens soberanos.

Obviamente entre estes bens soberanos se encontram a vida e a dignidade.

Toda pessoa – todo ser humano – tem direito à vida e à dignidade. São bens soberanos que temos o direito de fruir. Os direitos humanos nos fornecem permissões dadas por meio de normas jurídicas para usufruir bens tipicamente humanos.

Está muito claro que a proibição da tortura ocorre na legislação porque a finalidade do Direito é a preservação do homem e de todos os bens soberanos que os circundam. Como dissemos em outra oportunidade, toda norma é elaborada para atingir uma finalidade; o fim de toda expressão jurídica é o homem. O homem é o centro dos negócios, é o centro de toda emanação das três esferas de poder [05].

É o ser humano aquele que será ferido pela prática da tortura. Também é o ser humano que pode praticar a tortura. Engraçado que isso soa estranho... Porque aquele que tortura, em tese, um dia pode ser o torturado; neste dia ele entenderá a importância da proibição dessa prática desumana.


2. A prioridade da Justiça e o combate a tortura

Cícero dizia que é recorrendo à razão que a natureza aproxima o homem do homem, fazendo-os dialogar e viver em comum.

Algumas manifestações são no sentido de que Direito e Justiça são fenômenos distintos. É verdade, são diferentes. Mas se esquecem de que ambos somente podem caminhar juntos, e não separados. O Direito sem a Justiça não é nada além de um instrumento ditatorial, desumano e cruel. A Justiça sem o Direito não se instrumentaliza.

A verdade é que as Constituições, e em especial a brasileira, estão insuficientemente concretizadas juridicamente. Não é um mero problema de ineficácia de normas constitucionais, como já alertara Marcelo Neves [06]. A Constituição é tratada pelos "Donos do Poder" como uma simples promessa (que pode não ser cumprida), uma decoração, uma ficção, exatamente porque construída (e sempre foi assim) sem contato com a parte de baixo (o povo), mas somente com a parte de cima (os Donos do Poder).

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Estas são umas das razões para que a tortura ainda seja meio largamente utilizada no Brasil pelo mais forte fisicamente ou pelo que tem qualquer tipo de poder fático sobre o outro. É cristalino que nossa análise sobre o assunto é superficial – haja vista que sua ampla investigação resultaria em um compêndio – e não podemos extrair dessa conclusão o fato de que o torturador despreza o torturado.

Uma Constituição certamente trará no seu bojo um sentimento de justiça universal: irá pugnar pelo direito à vida, pela liberdade, pela igualdade, pela vida digna e pela dignidade humana... Até mesmo porque publicitariamente isso é bom para a imagem dos promulgadores ou outorgantes do texto constitucional. Mas uma constituição necessita ser implementada faticamente e isso somente ocorre com atos políticos, econômicos e sociais.

A tortura está proibida no texto constitucional brasileiro e talvez em boa parte dos textos constitucionais dos demais Estados políticos mundiais. A questão da proibição é sempre justificada sob uma perspectiva de justiça: é justo proibir, porque é injusto torturar, haja vista que todos os seres humanos – do ponto de vista constitutivo e espiritual – são iguais, mesmo que sua cultura e seus pensamentos sejam distintos.

Mas o Direito cuida do que é e do que não é moralmente condenável. Ronald Dworkin alega que pode ser errado violar uma lei porque o ato condenado por ela é errado em si mesmo, como roubar ou matar, ou pode ser errado mesmo que o ato condenado não seja errado em si mesmo, simplesmente porque a lei o proíbe [07].

Para nós não há segredo: a tortura é proibida pela razão maior de que quando os homens nascem não lhes é dado um poder inato, uma autoridade de vida e de morte sobre os demais de sua espécie. O Direito é a expressão da vontade das pessoas por meio de normas jurídicas impostas a todos. É expressão da vontade da maioria, pelo menos nos sistemas democráticos.

É justo combater a tortura porque ninguém possui autoridade suprema de vida ou de morte, de sofrimento ou de felicidade sobre os demais. Não sou eu que decido quem deverá ou não ser feliz, sofrer, ganhar ou perder. E sabemos disso sem ter que recorrer a nenhuma explicação mais detalhada, assim como sabemos que é injusto uma criança passar fome, alguém ser roubado, uma pessoa ser molestada sexualmente ou um assassino acabar com a vida de um seu semelhante. Se sabemos que tudo isso é injusto, mesmo sem a exatidão das ideias e das palavras, sabemos que a prática da tortura é injusta em si mesma porque demonstra um poder desmedido, que por natureza não temos. Não há mais o que se explicar.

A Justiça é prioritária em qualquer instrumento jurídico.

John Rawls afirma que o justo e o bem são complementares. Diz Rawls sobre a prioridade do justo e as concepções do bem:

"As instituições justas que ela exige e as virtudes políticas que encoraja não teriam razão de ser se elas se contentassem em autorizar modos de vida. É preciso igualmente que as encorajem como plenamente dignas do nosso devotamento. Ademais, é altamente desejável que a concepção política de justiça exprima a idéia de que a própria sociedade política possa ser um bem intrínseco – definido segundo a concepção política –, e isso para os cidadãos entendidos ao mesmo tempo como indivíduos e como corpo constituído" [08].

Não podemos torturar absolutamente nenhum ser humano em nenhuma hipótese simplesmente porque não estamos sós no mundo, e apesar de termos liberdade para muitas coisas, não temos liberdade para tudo, pois do contrário não haveria ordem e conseqüentemente a vida seria extinta.

Vejamos que a sociedade escolhe visões sobre as coisas; as Instituições fazem escolhas, as Universidades fazem escolhas e as pessoas individualmente consideradas fazem escolhas. Quando uma Faculdade ou um estudante faz uma escolha de um método de Direito, isso volta para a sociedade. Joaquim Falcão diz que esse vai e vem entre as ideias se chama progresso [09]. Em nenhuma dos métodos interpretativos do Direito a tortura encontra amparo. Nenhuma Instituição jurídica que se preze defende a utilização da tortura para o que quer que seja (pelo menos não de forma declaradamente aberta).

A tortura teve grande repercussão na época da Ditadura Militar ocorrido no Brasil entre 1964 e 1985. E aqui não há floreios: trata-se de uma ditadura, um governo golpista, que atinge o poder e determina tudo ao arrepio da ordem constitucional. Mas se engana quem pensa que a tortura morre com o fim do regime ditatorial. Ela ocorre ainda hoje, nos ambientes públicos e privados, perpetrada por agentes públicos e privados. A doutrina da segurança nacional da época da ditadura militar continua existindo. Marcelo Freixo alega que os inimigos do Estado antes eram os militantes de esquerda; hoje são os que sobram de uma sociedade de mercado, ou seja, os pobres [10].

Não nos enganemos: a tortura é utilizada como instrumento de controle de classe. Sempre foi assim. O dominante violenta o dominado – ora, a história é escrita por vencedores, não é mesmo? – e a verdade é que nenhum torturador do passado foi punido. Porque eles seriam punidos agora?

O co-autor deste artigo [11] é pesquisador colaborador da ONG Conectas Direitos Humanos, e em seu âmbito desenvolve juntamente com outros competentes colegas pesquisa sobre como o crime de tortura é analisado nos tribunais de justiça estaduais. Em uma visão geral, podemos afirmar que os acórdãos da grande maioria dos tribunais de justiça do país são mal redigidos, com falta de muitas informações relevantes, como por exemplo, o número de acusados pela prática de tortura quando a acusação é em face de agente público. O que vemos de forma geral, com exceções, é que agentes públicos dificilmente são punidos pela prática do crime de tortura na atualidade. As alegações são várias: a prova é difícil; é a palavra do ofensor versus a do ofendido; o crime foi de lesão corporal, não de tortura, etc. No passado não podemos confundir o crime de tortura com um crime meramente político; no presente e no futuro, não podemos confundir a tortura com a lesão corporal (esta é pressuposta na tortura física, afinal!), nem com outros crimes, como o de maus tratos ou de abuso de autoridade.

A tortura deve ser combatida porque é indigna, antijurídica e proibida expressamente em regras jurídicas e por vários princípios constitucionais, interpretados isolada ou conjuntamente.


3. Os direitos humanos não comportam relativizações

Os direitos humanos cumpriram, no nascimento do mundo moderno, uma função de legitimar as novas formas de vida burguesa, sem dúvida alguma. Porém, como bem assevera Marcelo Raffin, é inegável que abriram uma dupla via revolucionária no sentido de que cobra as promessas feitas e não cumpridas do mundo burguês [12].

Os detentores dos direitos humanos são os próprios humanos, e a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e a titularidade de direitos. Assim, os direitos humanos são universais e indivisíveis. Ademais, são interdependentes, ou seja, o seu reconhecimento é integral, pois não há direitos humanos mais ou menos válidos, haja vista que todos se equivalem e se complementam [13].

Afirmamos que os direitos humanos não são daqueles direitos passíveis de restrições, de relativizações. Não existem humanos mais humanos e menos humanos, assim como não existem raças superiores e inferiores. Isso não existe. Os direitos humanos não podem ser relativizados. A tortura, ou melhor, a proibição da tortura, é um direito humano fundamental outorgado a todos os humanos. Não há relativizações... O ser humano não pode ser torturado em absolutamente nenhuma hipótese.


4. Uma legislação simbólica

Muitos temas no Brasil são legislados de forma absolutamente simbólica. Uma legislação simbólica é aquela que tem por objetivo confirmar valores de determinados grupos inseridos na sociedade, além de assegurar a confiança nos sistemas jurídico e político de um povo.

Entretanto, como bem assevera Marcelo Neves, diante da insatisfação da sociedade, o que se cria na verdade é uma legislação-álibi, uma resposta rápida e pronta do Estado e do governo, tudo para fortificar a confiança dos cidadãos no respectivo governo ou no Estado de forma mais generalizada [14].

Nesse sentido, cria-se uma imagem de um Estado (ou um governo, dependendo da conotação política da legislação) que responde normativamente aos problemas reais da sociedade. Diz Marcelo Neves: "O legislador, muitas vezes sob pressão direta do público, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas" [15].

Essa legislação-álibi, como assevera Pedro Lenza, tem o "poder" de introduzir um sentimento de "bem-estar" na sociedade, solucionando tensões e servindo à "lealdade das massas" [16].

A Lei n. 9.455 de 1997 tem uma redação ruim (como milhares de outras leis brasileiras). Nasceu da pressão popular, especialmente das vítimas de tortura e seus familiares (já que muitas das vítimas de tortura da Ditadura Militar de 64-85 estão mortas ou "desaparecidas"), além da pressão de organismos internacionais, tais quais a ONU, a Anistia Internacional, a OEA, dentre outras. Nasceu a toque de caixa. Nasceu como uma legislação simbólica nos exatos termos descritos por Marcelo Neves.

Vejamos o que diz Marcelo Neves:

"Em face da insatisfação popular perante determinados acontecimentos ou da emergência de problemas sociais, exige-se do Estado muito freqüentemente uma reação solucionadora imediata. Embora, nesses casos, em regra, seja improvável que a regulamentação normativa possa contribuir para a solução dos respectivos problemas, a atitude legiferante serve como um álibi do legislador perante a população que exigia uma reação do Estado" [17].

Não punimos os torturadores da Ditadura Militar de 64-85; não ensinamos às nossas crianças a verdade sobre aquele regime (que parece, caiu no esquecimento da sociedade, que se preocupa mais com o próximo "paredão" do Big Brother...), não ensinamos nossas crianças na escola o valor do respeito ao próximo como valor fundamental de toda e qualquer sociedade democrática, os meios de comunicação também em nada auxiliam nesse sentido e o governo, bem, o governo se preocupa mais em se defender dos escândalos.

Na verdade, no Brasil há um bloqueio do sistema jurídico, pois falta concretização normativo-jurídica do texto de nossa Constituição, pois este texto (assim como outros textos legislados) também foi utilizado de acordo com interesses políticos, a despeito de seus inegáveis avanços sociais e democráticos.

Ao Judiciário – e é o que a sociedade espera dele – cabe a concretização e a implementação da efetividade das normas sociais.


5. Excludentes de ilicitude e de culpabilidade

Por razões ainda a serem devidamente esclarecidas, somente em 07 de abril de 1997 entrou em vigor a Lei 9.455, que definiu os crimes de tortura, regulamentado assim, o art. 5º, XLIII, da Constituição Federal de 1988. No período anterior a edição do mencionado diploma legal a prática da tortura era rotineira em unidades policiais e prisionais. Contudo, após os episódios que se sucederam no Município de Diadema, localizado na Grande São Paulo, a sociedade civil e opinião pública ficaram estarrecidas com a persistência da adoção das práticas de tortura em um período que deveria ser francamente democrático.

Como bem assinalou Antonio Lopes Monteiro:

"Os tempos mudaram; a opinião pública internacional, as entidades particulares da sociedade civil organizada, e agora, de forma intransigente, a Igreja preocupam-se sobremaneira com a violação dos direitos humanos, e dentre estes a tortura merece atenção especial" [18].

E como toda lei penal que é editada de afogadilho, a Lei 9.455 está longe de ser o ideal. Em verdade, o referido diploma legal possui sensíveis imperfeições e lacunas, que devem ser preenchidas pelo aplicador da lei penal. Dentre todas, destacamos que o legislador penal brasileiro não tratou das hipóteses excludentes de ilicitude e culpabilidade frente ao crime de tortura.

Diante desta omissão legislativa, nos socorremos do artigo 5º, da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, promulgada pelo Decreto n. 98.386, de 9 de dezembro de 1989, in verbis:

"Não se invocará nem admitirá como justificativa do delito de tortura a existência de circunstâncias tais como o estado de guerra, a ameaça de guerra, o estado de sítio ou emergência, a comoção ou conflito interno, a suspensão das garantias constitucionais, a instabilidade política interna, ou outras emergências ou calamidades públicas. Nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura".

A partir da interpretação dos tratados internacionais que versam sobre o tema, pacificou-se o entendimento na doutrina de que o direito a não ser torturado seria absoluto, sendo que nenhum interesse por parte do Estado, ou de quem quer que seja, justificaria a tomada de tal medida. Temos aqui, um direito que se sobrepõe a interesses tidos como superiores do Estado.

Ao analisar o art. 5º, da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, Pablo A. Ramella brilhantemente asseverou que: "esta norma é significativa porque destrói o falso argumento de que, em caso de guerra, instabilidade política interna ou qualquer emergência pública, podem abater-se todos os direitos. Também, que a obediência devida cobre qualquer ação desumana" [19].

Nesta linha de raciocínio fica afastada a incidência de eventual causa de exclusão da ilicitude do crime de tortura. À luz da teoria unitária, considerada a adotada por nosso Código Penal, pouco importa se o bem protegido pelo agente é de igual ou maior valor daquele sacrificado. Assim, a configuração do estado de necessidade justificante (art. 24, do Código Penal) i.e. – como excludente de ilicitude ou antijuridicidade de – é totalmente rechaçada para a hipótese pela doutrina.

Ainda que fosse adotada a teoria diferenciadora, consagrada nos arts. 39 e 43 do Código Penal Militar brasileiro e no artigo 34 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch – StGB) [20], ao efetuar a ponderação dos direitos em conflito, não existiriam interesses políticos que justificariam a prática de tortura, pelo que o cometimento deste crime, além de ferir de morte a dignidade da pessoa do torturado, atinge a própria ideia de Estado Democrático e Social de Direito.

Todavia, ao pensarmos em hipóteses de extremíssima gravidade, em que se revela efetivo perigo concreto à vida de número indeterminado de pessoas, a tarefa da ponderação de interesse se torna mais árdua. Imaginemos situações hipotéticas como aquela suscitada por Mário Coimbra, em brilhante trabalho doutrinário:

"No caso do agente que instala diversas bombas que são detonadas em tempos diversos previamente demarcados por esse que, inclusive, avisa a polícia da hora exata da explosão, sem mencionar, contudo, os locais em que se encontram instalados os explosivos, culminando por causar inúmeras mortes" [21].

O caso exemplificado levanta uma questão tormentosa e de suma importância. O direito de não ser torturado sofreria algum contorno? Em casos limites, a exemplo, da situação exposta, os agentes públicos poderiam justificadamente praticar a tortura para proteger as vidas de um número indeterminado de pessoas? O artigo 5º da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura poderia ser condicionado a hipóteses como a levantada?

Fica evidente que mesmo em casos de excepcionalidade, elencados a título exemplificativo no artigo 5º, da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a pratica de tortura não seria justificada. A mera ocorrência destas hipóteses fáticas de modo algum permite o cometimento do crime. Parece que o diploma internacional busca evitar, que a pretexto de um dos casos exemplificados no dispositivo citado, os agentes públicos se sentissem autorizados a não observância da norma que incrimina a prática de atos considerados como tortura. Neste contexto, o direito de não ser torturado deve permanecer incólume.

De modo algum é possível admitir como lícita a conduta do torturador, posto que a prática de tortura revela grave violação à dignidade da pessoa humana do torturado. A aplicação do estado de necessidade justificante estaria afastada, face ao valor dignidade da pessoa humana, que fundamenta a República Federativa do Brasil.

Não são outras as conclusões de Luiz Regis Prado, para quem:

"De conseguinte, é de todo aconselhável restringir o campo de abrangência do estado de necessidade justificante: este será uma causa de justificação quando o mal causado for menor que o evitado, desde que a conduta realizada não implique uma infração grave do respeito à dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana, como já destacado, possui significado constitucional, enquanto fundamento da ordem política e da paz social, figurando como um princípio material de justiça, de validez a priori, que representa um limite do Direito positivo" [22].

Contudo, adotando-se a teoria diferenciadora do estado de necessidade, e utilizando das técnicas de ponderação de interesses em conflito, seria possível admitir que a dignidade da pessoa do torturado cedesse lugar à preservação da vida de número indeterminado de pessoas humanas. Neste caso, se poderia admitir para a hipótese a configuração do chamado estado de necessidade exculpante – que exclui a culpabilidade do torturador. Não são outras as conclusões de Mário Coimbra, para quem: "embora não se possa admitir, na prática da tortura, a excludente de ilicitude, pela incidência do estado de necessidade justificante, em casos extremos, não pode ser afastada a excludente de culpabilidade, pela presença do estado de necessidade exculpante" [23].

Com a devida vênia, esta solução não parece a mais afinada com o valor da dignidade da pessoa humana. No problema enfrentado, caso fosse admitida a tortura, estaríamos admitindo a "coisificação" da pessoa do torturado. Ao ser submetido à tortura, o torturado deixa de ser visto como uma pessoa e passa a receber tratamento de um "meio".

Sob a ótica do valor da dignidade da pessoa humana, que proclama que a pessoa deve ser vista e tratada como um fim em si mesmo, mas nunca como um meio, admitir a pratica da tortura, ainda que a pretexto de salvar um número indeterminado de pessoas, seria aceitar como não reprovável uma grave violação dos direitos da pessoa humana.

Consoante os ensinamentos de Eugenio Raúl Zaffaroni, depreendemos que:

"Tampouco pode medir-se os males, quando se trate de vidas humanas, pelo número das mesmas, posto que ainda que se usasse uma vida para salvar mil, sempre se estaria utilizando um homem como meio, e, com isso, se violaria a sua condição de pessoa, que exige a sua consideração invariável como fim em si mesma" [24].

Conforme acima apontado, se nem mesmo em casos de legalidade extraordinária (v.g. estado de guerra) justifica-se a prática de tortura, com muito maior razão argumento algum a justificaria sob a vigência de um estado de normalidade. Não se trata de menoscabo aos casos extremos que por ventura possam surgir, mas de prestígio ao direito de não ser torturado.

Conclui-se que aos agentes públicos, mesmo diante de um caso limite como o apresentado, não seria dada a utilização de uma pessoa como um "meio", sendo que aqueles devem sempre buscar outros métodos de solução de conflitos menos gravosos, e que não importem em violação da dignidade da pessoa humana, para salvaguardar os interesses e as vidas humanas.


Notas

  1. RABINOVICH-Berkman, Ricardo David. Derechos Humanos: Una introducción a su naturaleza y a su historia. Buenos Aires: Editorial Quorum, 2007, p. 113.
  2. Tradução livre do texto em espanhol ("… a tortura se apresentava como uma alternativa frente à carência de outros métodos de averiguação da verdade").

  3. TELLES JUNIOR, Goffredo. Estudos. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2005, p. 170.
  4. Ibidem, p. 170.
  5. Ibidem, p. 170.
  6. VALVERDE, Thiago Pellegrini. Fontes do Direito, Hermenêutica Jurídica e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 115.
  7. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 1.
  8. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 15.
  9. RAULS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 327.
  10. Palestra proferida pelo Prof. Dr. Joaquim Falcão na Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo no II Encontro WMF Martins Fontes de Filosofia do Direito ocorrido em 08/10/2011.
  11. FREIXO, Marcelo. "A tortura de ontem e de hoje", in Revista Caros Amigos. São Paulo, edição especial n. 49, abril de 2010, p. 10.
  12. Co-autor Thiago Pellegrini Valverde.
  13. RAFFIN, Marcelo. La experiencia del horror: subjetividad y derechos humanos em las dictaduras y posdictaduras del Cono Sur. Buenos Aires: Editora del Puerto, 2006, p. 02.
  14. VALVERDE, Thiago Pellegrini. op. cit., p. 114.
  15. NEVES, Marcelo. op. cit. P. 36.
  16. NEVES, Marcelo. op. cit. P. 36.
  17. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 76.
  18. NEVES, Marcelo. op. cit. P. 37.
  19. MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes Hediondos. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 77
  20. RAMELLA, Pablo A. Crimes Contra a Humanidade. trad. Fernando Pinto. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 75.
  21. Código Penal alemão: direito comparado. trad. Lauro de Almeida. 1ª ed. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1974.
  22. COIMBRA, Mário. Tratamento do Injusto Penal da Tortura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 146.
  23. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, v. 1, p. 367
  24. COIMBRA, Mário. op. cit. p. 146.
  25. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 512.
Sobre os autores
David Pimentel Barbosa de Siena

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialização em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Atualmente é delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra", professor de Direito Penal e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Thiago Pellegrini Valverde

Bacharel e Mestre em Direito. Professor de Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Administrativo, Internacional e Direitos Humanos. Autor da obra "Fontes do Direito, Hermenêutica Jurídica e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIENA, David Pimentel Barbosa; VALVERDE, Thiago Pellegrini. Tortura: bases dogmáticas, excludentes de ilicitude e de culpabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3070, 27 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20466. Acesso em: 22 nov. 2024.

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