3.1.1. Teoria da Proporcionalidade e prova ilícita pro reo
Na atualidade, a doutrina e a jurisprudência, majoritariamente, têm acolhido a Teoria da Proporcionalidade e aceito as provas ilícitas, mas, apenas, quando favoráveis ao réu. A justificativa encontrada é que, sopesando os interesses em conflito – de um lado os direitos e garantias fundamentais do acusado e do outro, os interesses da sociedade em ver punido o infrator – deve-se dar prevalência àqueles sob pena de se renegar as garantias mínimas dos indivíduos previstas na Constituição.
Ressalte-se que a regra é sempre o repúdio as provas ilicitamente produzidas e que, só excepcionalmente, elas deverão ser admitidas em juízo, em respeito às liberdades públicas e ao princípio da dignidade da pessoa humana na colheita de provas e na própria persecução penal do Estado.
Segundo Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho[39], pela corrente majoritária, entende que deve preponderar o interesse jurídico mais valioso, ressaltando que é mais importante o direito à liberdade e à ampla defesa do que o direito à privacidade. Posteriormente conclui que o acusado, em processo penal, pode produzir prova considerada ilícita, salientando, ainda, que, ao agir dessa maneira, estará acobertado por causas de exclusão de criminalidade, como o estado de necessidade ou a legítima defesa.
Contrariamente, Rogério Lauria Tucci[40], manifestando-se sobre o assunto aduz:
as provas obtidas por meios ilícitos, porque conseguidas ou produzidas por outros meios que não os estabelecidos em lei, por maior que seja a importância do direito individual a ser preservado, não têm como ser levadas em conta pelo órgão jurisdicional incumbido de definir a relação jurídica penal submetida à sua apreciação.
Na doutrina que trata a respeito da aplicação da Teoria da Proporcionalidade e que defende a sua aplicação favor rei sustenta-se que, nesse caso, não há que se falar em prova ilícita na medida em que, no caso, estaria a vítima acolhida por uma excludente de ilicitude que afastaria o cometimento do delito. Pode-se citar, para ilustrar essa assertiva, o caso da vítima de extorsão que grava a sua conversa com o criminoso e, posteriormente, vem usar essa gravação no processo penal.
Note-se que, no caso aventado, a legítima defesa não é usada contra possível condenação imposta pelo Estado, mas contra o injusto agressor e, diante da exclusão da antijuridicidade, a prova passa a ostentar o caráter de licitude, servindo como justa causa para a propositura da ação penal.
3.1.2. Teoria da Proporcionalidade e prova ilícita pro societate
A insegurança social que tem aumentado indiscriminadamente nos últimos tempos tem levantado vozes que defendem a extensão da aplicação dessa teoria também pro societate. Justifica esta corrente doutrinária, ressalte-se minoritária, que as liberdades públicas não podem ser interpretadas de maneira absoluta a ponto de servirem de escudo protetivo para atividades ilícitas.
Aqui também, excepcionalmente e nos casos de extrema gravidade (tráfico ilícito de entorpecentes, extorsão mediante seqüestro), se deve privilegiar o bem jurídico mais imanente, que seria o interesse social na sua segurança e na repressão ao crime.
Nesse sentido, Ana Núbia Silva de Lira[41] e Sergio Demoro Hamilton[42], defendendo a tese da aplicação da Teoria da Proporcionalidade pro societate, elegeram algumas justificativas que fundamentam tal posicionamento.
Pode-se destacar que, se a liberdade individual é protegida pela teoria da proporcionalidade em detrimento da atividade persecutória do Estado, maior razão assiste fazendo uso da aludida teoria render homenagem à liberdade de toda uma coletividade tendo em vista que, as liberdades públicas não podem servir de escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas.
Assinalam ainda que a mesma Constituição que veda a produção de prova obtida por meios ilícitos sustenta, da mesma forma e no mesmo dispositivo que são princípios constitucionais igualmente relevantes o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade que, em alguns casos, confrontarão com a norma do art. 5º, inciso LVI da CRFB/1988.
Por fim, ressalta que, se todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, nesse caso, bastaria que fosse a fundamentação feita de forma minuciosa, cumprindo de forma exaustiva o preceito inscrito no art. 93, inciso IX, da Constituição.
3.1.3. Críticas a Teoria da Proporcionalidade
Em virtude da polêmica que envolve a discussão em relação ao cotejamento da proibição do uso das provas ilícitas no processo penal e a Teoria da Proporcionalidade, a doutrina levantou algumas críticas em relação ao tema em debate.
Dentre essas críticas questionou-se em que momento e quais os direitos, interesses e valores poderiam ser postos em confronto. Todavia, a principal crítica formulada pelos autores preocupados com o uso desse instrumento de decisão é quanto ao alto grau de subjetividade tendo em vista que, na avaliação e ponderação do direito que deverá prevalecer, sempre ficará a cargo do magistrado a decisão.
Trocker[43] chegou a sustentar a necessidade de uma definição dos critérios para a sua aplicação, que segundo o autor seriam: dos valores em jogo; da ordem (normativa) das prioridades; e do cânone da proporcionalidade (entre o meio empregado e o fim a ser obtido).
É fundamental, para trazer ao ordenamento jurídico maior segurança, traçar para todo instituto as características que lhe dão forma e essência. Entretanto, a crítica em relação à subjetividade do uso dessa teoria em comento parece ser respondível de início, pela própria característica definidora da Teoria da Proporcionalidade e, depois, pelo princípio relacionado à atividade probatória, denominado Livre Convencimento Motivado do Juiz.
No primeiro caso, a própria definição doutrinária do instituto serve de sustentação para retorquir a crítica apresentada. A Teoria da Proporcionalidade deverá ser utilizada apenas naquelas hipóteses tão extraordinárias e que levariam a um resultado desproporcional, inusitado e repugnante pela exclusão da prova ilícita que, no caso concreto, justificaria a aplicação da teoria em estudo.
Num segundo momento, poderia se afastar a censura à teoria em apreço pelo Princípio da Persuasão Racional ou Livre Convencimento Motivado. Como é sabido e fora sustentado no Capítulo 1 deste estudo, embora o magistrado tenha liberdade para proferir o seu decisum, essa liberdade na atividade jurisdicional não é absoluta. Inicialmente, deverá o magistrado estar atrelado aos elementos trazidos aos autos e, depois, tem a necessidade ainda, em respeito ao que preceitua o art. 93, inciso IX, da Constituição da República, de motivar a sua decisão.
Tendo em vista que a regra é o repúdio à prova ilícita e do grau de excepcionalidade do uso da teoria sob apreço, bastaria imputar ao juiz o poder-dever de, nesse caso, fundamentar de maneira minuciosa e criteriosa toda a sua decisão.
Dessa forma, respeitados esses dois pontos abordados, se estaria tornando efetivo um importante instrumento para correção de possíveis injustiças nas decisões judiciais sem, todavia, tornar comum um instituto tão excepcional e não trazer, junto com o seu uso, um alto grau de incerteza na atividade jurisdicional.
3.1.4. Posicionamento da Suprema Corte Constitucional
Em análise do tema em questão, decidiu a Suprema Corte pela aplicação da Teoria da Proporcionalidade, mas apenas pro reo. Justifica aquele Tribunal que a própria Constituição, através do poder constituinte originário, ponderou os valores contrapostos e decidiu-se por dar prevalência aos valores fundamentais da dignidade da pessoa humana em detrimento da persecução penal.
Nesse diapasão, julgados da Corte Constitucional que aduzem decisões relativas ao tema em debate neste tópico:
PROVA – ALEGAÇÃO DE ILICITUDE DA OBTIDA MEDIANTE APREENSÃO DE DOCUMENTOS POR AGENTES FISCAIS, EM ESCRITÓRIOS DE EMPRESA – COMPREENDIDOS NO ALCANCE DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO – E DE CONTAMINAÇÃO DAS PROVAS DAQUELA DERIVADAS – TESE SUBSTANCIALMENTE CORRETA, PREJUDICADA NO CASO, ENTRETANTO, PELA AUSÊNCIA DE QUALQUER PROVA DE RESISTÊNCIA DOS ACUSADOS OU DE SEUS PREPOSTOS AO INGRESSO DOS FISCAIS NAS DEPENDÊNCIAS DA EMPRESA OU SEQUER DE PROTESTO IMEDIATO CONTRA A DILIGÊNCIA – [...] 2. Objeção de princípio – em relação à qual houve reserva de Ministros do Tribunal – à tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou – em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal – pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita: de qualquer sorte – salvo em casos extremos de necessidade inadiável e incontornável – a ponderação de quaisquer interesses constitucionais oponíveis à inviolabilidade do domicílio não compete a posteriori ao juiz do processo em que se pretenda introduzir ou valorizar a prova obtida na invasão ilícita, mas sim àquele a quem incumbe autorizar previamente a diligência. (STF – HC 79512 – RJ – TP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 16.05.2003 – p. 92).[44]
HABEAS CORPUS: CABIMENTO: PROVA ILÍCITA – 1. Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento: sempre que, da imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade: precedentes do Supremo Tribunal. II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo (CF, art. 5º, LVI): considerações gerais. 2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação. [...] (STF – HC 80949 – RJ – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 14.12.2001 – p. 26).[45]
Depreende-se dos julgados enfocados que embora haja construções doutrinárias que pretendem sustentar o uso das provas ilícitas com base na Teoria da Proporcionalidade também pro societate, o STF tem adotado uma postura garantista dando prevalência aos direitos e garantias fundamentais sobre a atividade persecutória do Estado. Aduz nas suas razões de decidir que a própria Constituição não permite que seja dado ao tema, outra interpretação que não aquela que resguarde o indivíduo de uma possível atuação ilegítima da atividade persecutória do Estado.
CAPÍTULO IV – DAS PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO E AS CONSEQÜÊNCIAS DO USO DA PROVA ILÍCITA NO PROCESSO PENAL
4.1. PROVAS ILÍCITAS POR DERIVAÇÃO
As provas ilícitas foram expressamente vedadas pela Constituição e não se pode, em regra, vislumbrar a sua admissão no processo penal. A questão que se discute nesse tópico é a extensão da ilicitude dessas provas e os efeitos que geraria sobre outras provas constantes dos autos e que, embora lícitas, daquelas sejam direta ou indiretamente derivadas.
Pode-se citar, para ilustrar a questão em debate, a apreensão de um carregamento de cocaína que, embora tenha sido feito de forma lícita, só foi possível mediante uma escuta telefônica não autorizada judicialmente. Note-se que a apreensão foi lícita, ilícita foi a escuta telefônica que, segundo a doutrina dos frutos da árvore envenenada[46] a apreensão, ainda que feita dentro da legalidade e respeitando todas as garantias constitucionais do indivíduo, restaria contaminada porque deriva da prova inicial (escuta telefônica) que é ilícita.
Originada nos Tribunais dos Estados Unidos, a doutrina das provas ilícitas por derivação[47] – fruits of the poisonous tree, ou ainda, fruit doctrine, como é conhecida na doutrina e jurisprudência norte-americanas – dita serem inadmissíveis no processo, não só as provas inicialmente ilícitas, bem como, todas aquelas que, embora colhidas licitamente, derivem da prova ilícita. O que afirma a aludida doutrina é que todas as provas que tenham uma relação direta ou indireta da prova ilícita e que a elas só se chegou através da prova ilícita, também, restariam contaminadas pela ilicitude da prova inicial.
A Suprema Corte norte-americana entende que as provas serão ilícitas quando obtidas por agentes públicos estaduais ou federais, por serem reputadas inconstitucionais consoante a IV Emenda. A Emenda Constitucional em comento tutela os direitos individuais dos cidadãos, como também dispõe acerca das garantias fundamentais contra a ingerência do Estado na esfera particular do indivíduo.
Por meio desta Emenda, não se permite que o Estado interfira no âmbito particular do cidadão, visto que a IV Emenda é considerada uma forma de proteção do particular contra atos abusivos dos agentes estaduais.
Entretanto, anota Vinícius Daniel Petry[48] que, a doutrina dos frutos da árvore envenenada não tem aplicação absoluta e apresenta, no direito americano, quatro exceções ou limitações.
A primeira, chamada Limitação da Fonte Independente (The Independent Source Limitation) dita que os fatos apurados através de uma violação constitucional não seriam, necessariamente, inacessíveis ao tribunal, desde que tivessem condições de serem provados por uma fonte independente.
Nesse caso, segundo a Suprema Corte norte-americana, caberia a acusação comprovar que a informação ilegalmente obtida seria, inevitavelmente, adquirida por outros meios legais, reclamando fatos concretos, passíveis de pronta verificação.
A segunda exceção denominada Limitação da Descoberta Inevitável (The Inevittable Discovery Limitation) refere-se a prova decorrente de uma violação constitucional, como a IV Emenda, que poderia ser aceita desde que pudesse, inevitavelmente, ser descoberta por meios jurídicos.
Aponta, a doutrina norte-americana, uma terceira exceção chamada de Limitação da Descontaminação (The Purged Taint Limitation), segundo a qual, não obstante ilícita a prova, poderá ocorrer no processo um acontecimento capaz de purgar o veneno, imunizando os respectivos frutos conquistados.
O fato aventado teria o condão de tornar secundária a ligação da prova com a violação da norma constitucional. Nessa esteira, a intervenção de um ato independente, como a posterior confissão espontânea, e em consonância com os direitos fundamentais do acusado, tornariam a prova como não sendo mais considerada obtida de uma ilegalidade, tendo em vista que houve a quebra do nexo de causalidade entre os frutos e a árvore envenenada.
Por fim, aponta ainda a jurisprudência uma quarta exceção, a Limitação da Boa-Fé (The Good Faith Exception) aplicada pela Suprema Corte Norte-Americana num caso em que os policiais acreditavam que sua diligência havia observado as disposições da IV Emenda. Neste ponto, procurou-se prestigiar a atuação dos agentes estatais que embora tenham cometido uma falha na colheita da prova, acreditavam estar agindo dentro da estrita legalidade.
No Brasil, a aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada deriva, obstante não existir uma norma que expressamente defina ilícitas e vedadas tais provas, de uma construção jurisprudencial levada a efeito pela Suprema Corte Constitucional e que foi seguida pelos demais tribunais pátrios.
Logo, o estudo deste instituto no âmbito do direito interno prender-se-á ao exame da jurisprudência do STF colacionada neste tópico e que servem de fonte norteadora do acolhimento ou não da teoria em debate.