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Marxismo e a crítica do Direito Penal

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Agenda 02/12/2011 às 13:06

2.2 Alienação (Exteriorização do Trabalho)

Outro conceito central para entender a teoria de Marx é o conceito de alienação. Muitas vezes os analistas de Marx deixam o conceito de alienação de Marx de lado por sua repercussão econômica mais imediata. Porém, sem tal conceito a centralidade da Economia perde o seu sentido mais profundo. Pois nesse conceito o homem torna-se coisa e perde o sentido total de sua vida em prol de necessidades vitais básicas. Observe-se o que Marx descreve como fenômeno nas sociedades capitalistas, texto que traz inúmeras idéias interessantes:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschemvelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. (...) O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador. Ele

não é o que é o produto do seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo é. A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele (äusser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha (...) Em que consiste, então, a exteriorização (Entäusserung) do trabalho? Primeiro, que o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruina o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza (Fremdheit) evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Äusserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim como na religião a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo. Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se toma humano, e o humano, animal. Comer, beber e procriar etc, são também, é verdade, funções genuína [mente] humanas. Porém na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana, e faz delas finalidades últimas e exclusivas, são [funções] animais”. (MARX, 2008, p.80, 81, 82-3)

Primeiramente, vale enumerar as idéias contidas na citação acima: a) no sistema capitalista o trabalho do trabalhador é incorporado aos objetos; b) os trabalhadores assim tornam-se mercadorias e se desvalorizam; c) os trabalhadores tornam-se mercadorias "O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral". (MARX, 1985, p. 148); d) o fruto do trabalho do trabalhador não pertence mais a ele e sim ao comprador do trabalho, ou seja, o burguês (capitalista); e) o trabalho (como potência) torna-se hostil e estranho ao trabalhador "O capital é, portanto, não um poder pessoal, mas um poder social". (MARX; ENGELS, 1999, p. 32); f) quando está trabalhando o trabalhador se nega, torna-se infeliz, morre aos poucos; g) trabalhador só se realiza em atividades exteriores ao trabalho, em geral consumindo os produtos do trabalho de outros trabalhadores que foram objetificados enquanto mercadoria; h) por fim, o homem perde sua capacidade de expressar-se como ser humano no trabalho, nas atividades espirituais de mudar o mundo. Por que alienação é um conceito chave para entender Marx? Porque serve de premissa de analise, pensar a sociedade e a produção social de bens está diretamente ligada a idéia de uma sociedade que retira do ser humano a possibilidade de viver como um ser humano. A exploração e a pobreza são conseqüências do sistema. Marx não parte das conseqüências, mas da estrutura que as geram.

É preciso reconhecer que nosso trabalhador sai do processo de produção diferente do que nele entrou. No mercado ele, como possuidor da mercadoria “força de trabalho”, se defrontou com outros possuidores de mercadorias, possuidor de mercadoria diante de possuidores de mercadorias. O contrato pelo qual ele vendeu sua força de trabalho ao capitalista comprovou, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Depois de concluído o negócio, descobre-se que ele não era “nenhum agente livre”, de que o tempo de que dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, de que, em verdade, seu explorador não o deixa, “enquanto houver ainda um músculo, um tendão, uma gota de sangue para explorar”. Como “proteção” contra a serpente de seus martírios, os trabalhadores têm de reunir suas cabeças e como classe conquistar uma lei estatal, uma barreira social intransponível, que os impeça a si mesmos de venderem a si e à sua descendência, por meio de contrato voluntário com o capital, à noite e à escravidão! No lugar do pomposo catálogo dos “direitos inalienáveis do homem” entra a modesta Magna Charta de uma jornada de trabalho legalmente limitada que “finalmente esclarece quando termina o tempo que o trabalhador vende e quando começa o tempo que a ele mesmo pertence”. (MARX, 1996, p.414-5)

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Importante destacar que existem debates sobre a melhor tradução para a palavra Entäusserung, isso porque, ao que parece mais adequado, a noção de alienação é ampla e valeria em outros modelos econômicos.

(...) é preciso destacar a distinção sugerida, nesta tradução, entre alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), pois são termos que ocupam lugares distintos no sistema de Marx. É muito comum compreender-se por alienação um estado marcado pela negatividade, situação essa que só poderia ser corrigida pela oposição de um estado determinado pela positividade emancipadora, cuja dimensão seria, por sua vez, completamente compreendida a partir da supressão do estágio alienado, esse sim aglutinador tanto de Entäusserung quanto de Entfremdung. No capitalismo, os dois conceitos estariam identificados com formas de apropriação do excedente de trabalho e, conseqüentemente, com a desigualdade social, que aparece também nas manifestações tanto materiais quanto espirituais da vida do ser humano. Assim, a categoria alienação cumpriria satisfatoriamente o papel de categoria universal que serve de instrumento para a crítica de conjunto do sistema capitalista. Na reflexão desenvolvida por Marx não é tão evidente, no entanto, que esse pressuposto seja levado às suas últimas conseqüências, pois os referidos conceitos aparecem com conteúdos distintos, e a vinculação entre eles, geralmente sempre presente, não garante que sejam sinônimos. E é muito menos evidente ainda que sejam pensados somente para a análise do sistema capitalista. Entäusserung significa remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto. Significa, igualmente, despojamento, realização de uma ação de transferência, carregando consigo, portanto, o sentido da exteriorização (que, no texto ora traduzido, é uma alternativa amplamente incorporada, uma vez que sintetiza o movimento de transposição de um estágio a outro de esferas da existência), momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação. Entfremdung, ao contrário, é objeção socioeconómica à realização humana, na medida em que veio, historicamente, determinar o conteúdo do conjunto das exteriorizações - ou seja, o próprio conjunto de nossa socialidade – através da apropriação do trabalho, assim como da determinação dessa apropriação pelo advento da propriedade privada. Ao que tudo indica, a unidade Entäusserung-Entfremdung diz respeito à determinação do poder do estranhamento sobre o conjunto das alienações (ou exteriorizações) humanas, o que, em Marx, é possível perceber pela relação de concentricidade entre as duas categorias: invariavelmente as exteriorizações (Entäusserungen) aparecem no interior do estranhamento, ainda que sejam inelimináveis da existência social fundada no trabalho humano. (RANIERI, 2008, p.15-16).

Esse conceito, portanto, explica que no capitalismo existe uma desconexão do homem com a existência material. Isso gerará uma perda da visão total de mundo e a desumanização do homem. Nesse contexto vale relembrar outro conceito importante em Marx: ideologia.


2.3 Ideologia

A expressão ideologia foi formulada, em termos modernos, pelos chamados ideólogos franceses do período napoleônico (CHAUI, 1980, p.22 e ss.). Estes, inicialmente aliados de Napoleão, acabam se opondo ao regime autoritário do ditador e, por isso, foram criticados pelo mesmo. Tal fato acabou tornando o termo ideologia pejorativo, “o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as idéias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das idéias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de idéias condenadas a desconhecer sua relação real com o real”. (CHAUI, 1980, p. 25). Marx recupera o sentido do termo ideologia a partida da perspectiva de alienação. A premissa continua sendo partir do real:

(...) não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital. (MARX; ENGELS, 1998, p. 19).

Assim, a famosa frase de Marx de que "Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência". (MARX; ENGELS, 1998, p. 20) encaixa-se perfeitamente a perspectiva de alienação.

A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação. E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as idéias tomadas como anteriores a práxis como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens. (CHAUÍ, 1980, p. 65).

Ideologia, portanto, em seu olhar inicial pode ser entendida como formas de pensamento estritamente ligadas a realidade material. “A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos”. (CHAUÍ, 1980, p. 78).

O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. (MARX, 1985, p. 233).

A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E, se, em toda a ideologia, os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmera escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico. (MARX; ENGELS, 1998, p. 19).

Essa primeira perspectiva não esgota o conceito de ideologia. Marx utilizou o conceito em outros sentidos. Resumindo algumas das possibilidades:

Marx utiliza a palavra ideologia no sentido de mentira, interesse, ocultação e mistificação. No entanto esses não são os únicos significados do termo. Ideologia também pode ser entendida como: a) a doutrina de um partido político ou do governo; b) sistema de idéias que motivam para a ação (por exemplo: a ideologia liberal, que influenciou a Revolução Francesa); c) "ilusão", "fantasmagoria". Aqui, a ideologia é usada para enganar os outros e tirar proveito da sua ignorância (por exemplo: algumas religiões dizem que são bons o sofrimento nesta vida e a exploração que o causa, porque fazem merecer o céu); d) — conjunto de idéias referentes a uma interpretação da História e do mundo, como é e como deveria ser. Dizemos freqüentemente que existem ideologias conservadoras e ideologias progressistas, de direita e de esquerda. Neste sentido, segundo o pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937), a ideologia é a própria filosofia. Gramsci dá à ideologia o significado de "coesão social": é através da ideologia que as pessoas se agrupam na sociedade, se "cimentam". (GADOTTI, 1989, p.49-50).

A ideologia como interpretação de mundo em geral coincide com a interpretação da classe dominante. Nesse caso, "As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante". (MARX; ENGELS, 1999, p. 40). A ideologia

(...) prossegue tornando-se aquilo que Gramsci denomina de senso comum, isto é, ela se populariza, torna-se um conjunto de idéias e de valores concatenados e coerentes, aceitos por todos os que são contrários à dominação existente e que imaginam uma nova sociedade que realize essas idéias e esses valores (...) o momento essencial de consolidação social da ideologia ocorre quando as idéias e valores da classe emergente são interiorizados pela consciência de todos os membros não dominantes da sociedade. (CHAUÍ, 1980, p. 108).

Vale, por fim, ressaltar que a Ideologia nunca poderá ser constituída por um ato de escolha livre e ética do indivíduo. Leandro Konder alerta sobre a impossibilidade de fuga absoluta da ideologia de seu tempo.

O papel da razão na ética deve ser desempenhado com extrema prudência. A razão deve se reconhecer comprometida com a cultura em que ela se engendra, mesmo quando a critica com maior radicalidade. O sujeito da razão deve se saber enraizado no universo do capitalismo, mesmo quando denuncia com maior vigor as suas contradições. Façamos o que fizermos, estaremos nos movendo inevitavelmente dentro dos limites desse quadro presente contra o qual nos insurgimos (KONDER, 2000, p.33).

Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Marxismo e a crítica do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3075, 2 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20556. Acesso em: 23 dez. 2024.

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