Artigo Destaque dos editores

Marxismo e a crítica do Direito Penal

Exibindo página 1 de 5
02/12/2011 às 13:06
Leia nesta página:

O artigo apresenta os principais conceitos de Marx, da noção de classe social, alienação e ideologia, até idéias mais esparsas como a perspectiva de Direito e de Estado. O objetivo é trazer uma visão do materialismo histórico para imaginar as possibilidades de Teoria Crítica ao Direito Penal a partir da Teoria Marxiana.

RESUMO: O artigo apresenta os principais conceitos de Marx, da noção de classe social, alienação e ideologia, até idéias mais esparsas como a perspectiva de Direito e de Estado. O objetivo é trazer uma visão ampla do materialismo histórico para a partir de sua totalidade imaginar as possibilidades de Teoria Crítica ao Direito Penal a partir da Teoria Marxiana.

Palavras-Chave: Karl Marx; Criminalidade; Teoria Crítica.


1. Considerações iniciais

O Marxismo sempre esteve associado aos movimentos sociais e políticos de reivindicação por direitos. O que de um lado gera um grande impacto positivo por representar uma teoria que não permanece só na abstração, mas tenta transformar o mundo. Como dizia o próprio Marx “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos diferentes; o que importa, porém, é transformá-lo”. (MARX; ENGELS, 1974, p.11). Por outro lado, esse envolvimento político direto faz com que muitas pessoas se afastem do debate em torno da teoria marxista, um receio que pode virar medo e, no limite, chegar até o temor pré-concebido sobre uma teoria.

Mas realmente, pior que ler Marx e não o compreender ou distorcer suas idéias, é não ler Marx! Seu humanismo entusiasta e radical é um exemplo ao menos de vontade humana da busca por um mundo melhor. Os erros cometidos em nome de Marx não podem se confundir com suas idéias ou sua perspectiva de mundo. Em nome do marxismo muitos agiram de forma muito diversa da pensada por Marx. E o próprio Marx já alertava sobre isso, num relato escrito por Engels.

Precisamente como Marx disse sobre os “marxistas” franceses do fim dos anos 70: “Tout ce que je sais, c’est que je ne suis pas marxiste” (EvM. Tudo o que sei é que não sou marxista).” (ENGELS, 2011)

De qualquer sorte, Engels, em discurso de despedida no enterro de Marx, soube expressar com grande eloqüência os sentimentos que Marx gerava em outros seres humanos:

(...) Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Cooperar, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições políticas por ela criadas, contribuir para a emancipação do proletariado moderno, a quem ele havia infundido pela primeira vez a consciência de sua própria situação e de suas necessidades, a consciência das condições de sua emancipação: tal era a verdadeira missão de sua vida. A luta era o seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade e um êxito como poucos. (...) Marx, por isso, era o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo. Os governos, tanto os absolutistas como os republicanos, o expulsavam. Os burgueses, tanto os conservadores como os ultra-democratas, competiam em lançar difamações contra ele. Marx punha de lado tudo isso como se fossem teias de aranha, não fazia caso; só respondia quando isso era exigido por uma necessidade imperiosa. E morreu venerado, querido, pranteado por milhões de operários da causa revolucionária, como ele, espalhados por toda a Europa e a América, desde as minas da Sibéria até a Califórnia. E posso atrever-me a dizer que se pôde ter muitos adversários, não teve sequer um inimigo pessoal. (MARX; ENGELS, 1976, p.214)

Enfim, Marx é um pensador clássico, por isso sua leitura é fundamental. Quer se odeie, quer se idolatre, Marx como um clássico desperta paixões e por isso vale a leitura. Sua leitura ilumina muita coisa, em especial o conflito na sociedade, o que se opôs frontalmente às teorias consensuais da sociedade de sua época. Esse artigo, provavelmente extremamente criticável em diversos aspectos, representa um esforço de organização e divulgação das idéias de marxianas.


1.1 Cuidados ao ler Marx

O marxismo é minoritário na atualidade, bem como na Academia. Em geral é visto com preconceito, motivado por visões distorcidas de marxismo. A história do Marxismo na universidade é recheada de desentendimentos. Isso ocorre devido a diversas formas equivocadas de interpretar Marx. Observem-se alguns importantes alertas do historiador Eric Hobsbawn, sobre o que ele chama de “marxismo vulgar”. A citação é longa, mas vale pela importante síntese:

Chamaremos a esse tipo de influência de "marxista vulgar", e o problema central da análise é separar o componente marxista vulgar do componente marxista na análise histórica. Tomemos alguns exemplos. Parece claro que o "marxismo vulgar" abarcava principalmente os seguintes elementos:

1. A "interpretação econômica da história", ou seja, a crença de que "o fator econômico é o fator fundamental do qual dependem os demais" (para usar a frase de R. Stammler): e, mais especificamente, do qual dependiam fenômenos até então não considerados com muita relação com questões econômicas. Nesse sentido essa interpretação se superpunha ao

2. Modelo da "base e superestrutura" (utilizado mais amplamente para explicar a história das idéias). A despeito das próprias advertências de Marx e Engels e das observações sofisticadas de alguns marxistas iniciais como Labriola, esse modelo era usualmente interpretado como uma simples relação de dominância e dependência entre a "base econômica" e a "superestrutura", na maioria das vezes mediada pelo

3. "Interesse de classe e a luta de classes". Tem-se a impressão de que diversos historiadores marxistas vulgares não liam muito além da primeira página do Manifesto Comunista, e da frase: "a história [escrita] de todas as sociedades até agora existentes é a história das lutas de classes".

4. "Leis históricas e inevitabilidade histórica." Acreditava-se, acertadamente, que Marx insistira sobre um desenvolvimento sistemático e necessário da sociedade humana na história, a partir do qual o contingente era em grande parte excluído, de qualquer maneira, ao nível de generalização sobre os movimentos de longo prazo. Daí a constante preocupação nos escritos históricos dos primeiros marxistas com problemas como o papel do indivíduo ou do acidente na história. Por outro lado, isso podia ser — e em grande parte era — interpretado como uma regularidade rígida e imposta, como, por exemplo, na sucessão das formações socioeconômicas, ou mesmo como um determinismo mecânico que às vezes se aproximava da sugestão de que não havia alternativas na história.

5. Temas específicos de investigações históricas derivavam dos próprios interesses de Marx, por exemplo, na história do desenvolvimento capitalista e da industrialização, mas também, por vezes, de comentários mais ou menos casuais.

6. Temas específicos de investigação não derivavam tanto de Marx quanto do interesse dos movimentos associados a sua teoria, por exemplo, nas agitações das classes oprimidas (camponeses, operários), ou nas revoluções.

7. Várias observações sobre a natureza e limites da historiografia derivavam principalmente do elemento número 2 e serviam para explicar as motivações e métodos de historiadores que afirmavam não estarem fazendo mais que a busca imparcial da verdade e se orgulhavam de simplesmente estabelecer wie es eigentlich gewesen.

Desde logo ficará evidente que isso representava, na melhor das hipóteses, uma seleção das concepções de Marx sobre a história e, na pior (como tantas vezes aconteceu com Kautsky), uma assimilação das mesmas a concepções contemporâneas não marxistas — por exemplo, as evolucionistas e positivistas. (HOBSBAWN, 1998, p. 159-60)

Resumindo as Idéias dogmáticas do pensamento marxista “vulgar” pode-se enumerar: a) economicismo rígido; b) rígido olhar sobre as leis da história (evolucionista); c) limitação das temáticas históricas.

Em relação ao primeiro vale a pena reiterar a idéia de Economicismo rígido é equivocada porque não existe um esquema fixo de dominância absoluta da economia sobre as demais áreas da vida, mas uma preeminência ontológica da infra-estrutura sobre superestrutura. Assim “(...) existe uma preeminência ontológica da esfera econômica (aquela que constitui o ‘ser social’, a base material, a ‘infraestrutura’) sobre a esfera das ‘formas de consciência’ (a que engloba a esfera das idéias, da religião, da política, enfim, das ‘superestruturas’)” (FONSECA, 2004, p.15). Não há em Marx uma dependência absoluta da Economia, um determinismo rígido, o que impediria qualquer mudança histórica, mas uma interdependência entre a infra-estrutura e a superestrutura que, enquanto o sistema econômico não demonstra fragilidades, terá como preponderante a infra-estrutura econômica.

Em relação ao segundo problema, a interpretação evolucionista/positivista que marcou o século XIX e que aparece em alguns esparsos elementos nos textos de Marx, não está ligado a sua concepção ampla de sociedade. Marcar sua teoria com modelos históricos absolutos é transpor a linguagem de Marx sobre as teorias evolucionistas. Além de incorreto, tal idéia é redutora da complexidade de sua teoria.

Por fim, em relação ao terceiro problema, vale destacar que Marx não limita sua análise a Economia, mesmo sabendo de sua importância Em seus textos Marx trabalhou diversos temas. Por isso, não é absurdo debater temas diversos a Economia em Marx. Porém, de outro lado, não é também simples debatê-los. É necessária uma leitura mediada pelo total da teoria.

Nesse sentido, para ler o debate do Direito em Marx é necessário, portanto, enfrentar diversos obstáculos. Nesse aspecto vale lembrar a reflexão de Roberto Lyra Filho (LYRA FILHO, 1983, p.10-50). Tal autor destaca seis obstáculos (problemas) para abordagem do Direito em Marx:

1) Filológicos: A obra de Marx foi escrita em Alemão e Russo. Quase sempre de forma incompleta e com tentativas de manipulações de traduções. É difícil encontrar traduções fiéis, e até mesmo, algumas traduções de textos apareceram apenas no século XX, com o Grundisse. O alemão tem palavras muito específicas que são de difícil tradução. Um bom exemplo é a palavra Aufheben, traduzida como salto dialético, mas que vai além dessa expressão em português. Nesse sentido, é difícil ser plenamente fiel à obra de Marx e, no limite, tal pretensão talvez sequer tenha sentido.

2) Psicológicos: Marx foi acadêmico de Direito e filho de advogado. Ele sempre tenta esclarecer as palavras Direito e Justiça em seus textos para demonstrar o quanto se enojou de uma teoria tradicional. Apesar disso, a busca pela justiça sempre foi o seu mote principal. Porém, nunca se iludiu com as possibilidades do sistema jurídico atual.

3) Lógicos: A teoria marxista está fundamentada na história, mas não é uma "teoria da história". Sua principal função não é e nem jamais foi apresentar uma explicação geral, mecânica, e com caráter de panacéia do desenvolvimento histórico das sociedades humanas em sua cronologia concreta. As noções de “modo de produção” e a sucessão sugerida por Marx não são verdades absolutas. Tanto que é possível verificar no texto traduzido ao português como “Formações Econômicas pré-capitalistas” que o próprio Marx sugeria a existência de outros modos de produção além dos quatro clássicos que aparecem no Manifesto Comunista. Assim também, hoje é reconhecido não existir uma teoria geral do Estado ou do Direito na obra de Marx. Pelo menos de forma estruturada. Assim, passagens de uma época não vão se encaixar com passagens de outra. Outro problema também é a inexistência de uma teoria marxiana da dialética. Por isso, um grande erro, comum a muitos teóricos marxistas, principalmente do final de XIX e início do XX, foi de seguir a teoria de Comte (positivismo) dos estágios de evolução social adaptadas com o rótulo do modo de produção, mudando a noção de estágios (teológico, metafísico, positivo) para modo de produção (antigo, feudal, capitalismo, socialismo). “(...) Marx rejeitou todo e qualquer positivismo, opondo ao que chamou cruamente de ‘merda’ comteana (...)” (LYRA FILHO, 1983, p. 14).

4) Cronológicos: A obra de Marx foi escrita em algo em torno de 30 a 35 anos. A famosa divisão, feita por Althusser em “Guia para ler o capital”, entre a obra do Jovem Marx em oposição à obra do Velho Marx não tem uma consistência real. Seria algo parecido como dividir o trabalho de Marx em Velho Testamento e Novo testamento. Sendo que o velho testamento começaria em 1844 em diante, esquecendo-se de qualquer texto “idealista” anterior, enfatizando que tais obras ainda eram confusas, entre elas se encontrariam a “A Ideologia Alemã” e os “Manuscritos econômicos filosóficos”, para somente após 1850, com o amadurecimento da obra “Capital”, Marx teria um sentido teórico definitivo e significativo. É interessante notar que Marx defende a liberdade de expressão na fase inicial de sua obra, assim como também defende o sufrágio universal na sua fase final, de igual sorte também vai negar os direitos humanos na fase inicial como abstração, assim como vai negar o Direito Estatal como um todo na sua última fase. Essas diferenças que se aproximam, não se explicam pela cronologia, mas pelo complemento do pensamento. Mesmo que tenha superado algumas idéias iniciais, vale a pena ler os textos do jovem Marx.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

5) Parologismos: São os falsos raciocínios, mas que derivam que uma boa-fé, ao contrário dos sofismas, fundados em citações truncadas e mal relacionadas ao todo da obra. Um exemplo seria, a abordagem do texto “Crítica ao programa Gotha”, no qual Marx crítica o direito a igualdade em prol do direito dos oprimidos. Marx não era contra a igualdade, mas como se expressava em seu momento, como uma ideologia abstrata. Outra análise errada é acreditar que Marx idolatrava o Estado e o seu uso como solução da luta de classes. Marx não aponta o Estado como solução para a luta de classes. De igual sorte a interpretação que ao ligar o conceito de “luta de classes” a História, identifica as classes em todo acontecimento histórico, sem abrir espaço para nada além da luta de classes.

6) Metodológicos: Talvez seja a maior dificuldade de todas, afinal qual atitude deve-se tomar perante os escritos de Marx? Às vezes definem-se objetivos estritos para interpretar Marx, e se esquece que entender certos objetos pressupõe entendê-lo num contexto total. Não se pode mutilar o pensamento de um autor para não cair num mar de elucubrações.

Esses desafios são encarados como um norte significativo para o objeto desse estudo.


1.2 Algumas notas biográficas e quadros de referência teóricos

Marx Nasce em 5 de maio de 1818 (Tréveris, Alemanha) e morre em 1883 em Londres. (GADOTTI, 1989, p.11-25; KONDER,1999). Com dificuldades na escolha da profissão, começou a estudar na Universidade de Bonn 1835, estudando Direito, mas acabou sendo influenciado pela filosofia de Hegel e terminou por formar-se em filosofia em Berlim. Casou-se com uma jovem rica, Jenny Westphalen, 4 anos mais velha e o grande amor da vida de Marx, esposa que ao se casar com Marx foi abandonada pelo pai Ludwig Von Westphalen. Teve 5 filhos, sendo que 2 morreram na infância de fome. Não conseguiu seguir carreira acadêmica, vivendo de textos esparsos comprados por jornais ou de ajuda de amigos, em especial Friedrich Engels. Dentre seus principais escritos encontram-se: Crítica a Filosofia do Direito de Hegel (1842); A Questão Judaica (1843); Manuscritos econômicos-filosóficos (1844); A sagrada Família (1845); A ideologia Alemã (em parceria com Engels) (1846); Miséria da Filosofia (1847); Manifesto do Partido comunista (em parceria com Engels) (1848); Trabalho assalariado e Capital (1849) O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1851); O capital (1867).

Um autor que soube expor de forma interessante e didática suas principais influências teóricas foi Lênin. Segundo Lênin (LENIN, 2011) as origens de seu pensamento de Marx devem-se a três grandes vertentes: a) Socialismo Utópico Francês, nos quais poderíamos incluir em especial Fourier (com a perspectiva dos Falanstérios) e Saint Simon, e no limite, apesar de escocês, Robert Owen; b) Idealismo Filosófico Alemão, em especial da dialética de Hegel; c) Economia política inglesa, em especial Adam Smith e David Ricardo. Apesar de ser influenciado por essas três correntes, Marx constitui uma teoria inteiramente nova, desconstituindo pontos centrais dessas três influências. Portanto, superando tais visões.


2. Alguns conceitos importantes

Nem classe social, nem ideologia, nem dialética foram conceitos inventados por Marx. Eram conceitos que existiam antes de Marx, mas que depois de sua obra ganharam novos sentidos e significados. Abordar alguns desses conceitos é fundamental para entender o Direito e o Direito criminal a partir da noção do todo.


2.1 Classe Social

O conceito de classe social já existia antes de Marx o ligar a concepção econômica da sociedade.

Marx não inventou a luta de classes: limitou-se a reconhecer que ela existia e procurou extrair as conseqüências da sua existência. Antes de Marx, diversos autores já tinham enxergado a questão. James Madison, ex-Presidente dos Estados Unidos, por exemplo, escreveu, em 1787: "Proprietários e não proprietários sempre formaram interesses diversos dentro da sociedade". Marx, porém, foi mais longe do que Madison; com a ajuda de Friedrich Engels (1820-1895), Marx reexaminou a história social da humanidade e concluiu, em 1848, no Manifesto Comunista, que toda a história transcorrida até então tinha sido uma história de lutas de classes. (KONDER, 1987, p.31-2).

A luta de classes existe dentro da história e pela História. Classe social e luta de classes estão ligadas à análise da sociedade em sua perspectiva concreta.

As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois verificáveis por via puramente empírica. A primeira condição de toda a história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da natureza. Não podemos, naturalmente, fazer aqui um estudo mais profundo da própria constituição física do homem, nem das condições

naturais, que os homens encontraram já prontas, condições geológicas, orográficas, hidrográficas, climáticas e outras. Toda historiografia deve partir dessas bases naturais e de sua transformação pela ação dos homens, no curso da história. Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse passo à frente é a própria conseqüência de sua organização corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material. A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção. (MARX; ENGELS, 1998, p.10-1).

São as condições reais de vida e que determinam a existência dos indivíduos que os organizam em diversas classes. Assim, na História é possível visualizar as classes sociais. E Marx assim o percebe que "A história de todas as sociedades que já existiram é a história de luta de classes" (MARX; ENGELS, 1999, p.9). Em síntese, pode-se entender que:

As classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de idéias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais. (CHAUÍ, 1980, p.53)

No capitalismo a luta de classes ganha uma dimensão econômica mais imediata no momento que a sociedade fundamenta-se na competição e na lei de oferta e procura. "A condição essencial para a existência e para o poder da classe burguesa é a formação e o crescimento de capital. A condição para o capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado fundamenta-se exclusivamente na competição entre os trabalhadores". (MARX; ENGELS, 1999, p. 28).

"[o trabalho] cria capital, ou seja, aquele tipo de propriedade que explora o trabalho assalariado e que não pode aumentar exceto na condição de gerar um novo suprimento de trabalho assalariado para nova exploração. Propriedade na sua forma atual, é baseada no antagonismo de capital e trabalho assalariado." (MARX; ENGELS, 1999, p. 31)

As lutas de classes assumem formas extraordinariamente variadas: às vezes são fáceis de ser reconhecidas, são mais ou menos diretas; às vezes, contudo, elas se tornam extremamente complexas e não cabem em interpretações simplistas. Nas sociedades capitalistas, as lutas de classes tendem a assumir formas políticas cada vez mais complicadas. (KONDER, 1987, p.32)

Assim, uma análise simplista da luta de classes não contempla toda a questão diversa das classes no capitalismo, bem como suas possíveis determinações. Nesse sentido algumas observações do historiador E. P. Thompson, quando analisa as possibilidades do conceito “classe operária” auxiliam:

A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se. Classe, e não classes, (...) "Classes trabalhadoras" é um termo descritivo, tão esclarecedor quanto evasivo. Reúne vagamente um amontoado de fenômenos descontínuos. Ali estavam alfaiates e acolá tecelãos, e juntos constituem as classes trabalhadoras. (...) Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma "estrutura", nem mesmo como uma "categoria", mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. (...) a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. A mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram — ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma. Existe atualmente uma tentação generalizada em se supor que a classe é uma coisa. Não era esse o significado em Marx, em seus escritos históricos, mas o erro deturpa muitos textos "marxistas" contemporâneos. "Ela", a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente — uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se possível deduzir a consciência de classe que "ela" deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua própria posição e interesses reais. Há uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas "defasagens" e distorções culturais constituem um incômodo, de modo que é mais fácil passar para alguma teoria substitutiva: o partido, a seita ou o teórico que desvenda a consciência de classe, não como ela é, mas como deveria ser. Mas um erro semelhante é diariamente cometido do outro lado da divisória ideológica. Sob uma Forma, é uma negação pura e simples. Como a tosca noção de classe atribuída a Marx pode ser criticada sem dificuldades, assume-se que qualquer noção de classe é uma construção teórica pejorativa, imposta às evidências. Nega-se absolutamente a existência da classe. Sob outra forma, e por uma inversão curiosa, é possível passar de uma visão dinâmica para uma visão estática de classe. "Ela" — a classe operária — existe, e pode ser definida com alguma precisão como componente da estrutura social. A consciência de classe, porém, é algo daninho, inventado por intelectuais deslocados, visto que tudo o que perturba a coexistência harmoniosa de grupos que desempenham diferentes "papéis sociais" (assim retardando o crescimento econômico) deve ser lamentado como um "sintoma de distúrbio injustificado". O problema consiste em determinar a melhor forma de condicioná-"la", para que aceite seu papel social, e de melhor "tratar e canalizar" suas queixas. Se lembramos que a classe é uma relação, e não uma coisa, não podemos pensar dessa maneira. "Ela" não existe, nem para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de operações de ajuste. Tampouco podemos inverter as questões, tal como fez uma autoridade no assunto que (num estudo de classe obsessivamente preocupado com questões metodológicas, excluindo o exame de qualquer situação real de classe num contexto histórico real) nos informou: ‘As classes se baseiam nas diferenças de poder legítimo associado a certas posições, i.é, na estrutura de papéis sociais em relação a suas expectativas de autoridade. . . . Um indivíduo torna-se membro de uma classe ao desempenhar um papel social relevante do ponto de vista da autoridade. ... Ele pertence a uma classe porque ocupa uma posição numa organização social; i.é, o pertencimento a uma classe é derivado da incumbência de um papel social.’ (R. Dahrendorf, Class and Class Cnnflict in Industrial Society, 1959, p. 148-9). a questão é como o indivíduo veio a ocupar esse "papel social" e como a organização social específica (com seus direitos de propriedade e estrutura de autoridade) aí chegou. Estas são questões históricas. Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas idéias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição. (THOMPSON, 1987, prefácio, passim).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Marxismo e a crítica do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3075, 2 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20556. Acesso em: 5 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos