Preliminarmente, é necessário considerar que a culpabilidade, considerada desde um ponto de vista puramente normativo, constitui um juízo de reprovabilidade da conduta do agente, conduta esta em desconformidade com o direito, isto é, constitui certo grau de reprovação pessoal do autor pela realização do injusto penal, embora este tivesse, nas circunstâncias em que a conduta se deu, condições de se comportar conforme as normas.
Fixado esse entendimento, é possível antever que a culpabilidade possui uma aplicação graduada, conforme seja maior ou menor o grau de censurabilidade da conduta do autor do ilícito penal, de acordo a feliz conclusão de Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 525). Em última análise, a culpabilidade envolve um juízo de desaprovação da conduta do agente que demonstra uma disposição interna contrária ao direito, disposição que pode se dar em variados graus, suscitando, dessa forma, respostas igualmente diversas.
Assim sendo, o princípio da culpabilidade se constitui em verdadeiro fundamento da pena1. Inadmissível, portanto, pena imerecida. A pena, de outra parte, encontra limite também no princípio da culpabilidade, porquanto maior será em relação a aquele agente cuja conduta distanciou-se muito da norma, do direito (considerando-se a normalidade da situação fática). Dessa forma, "a medida da culpabilidade significa o limite superior da pena2". Por todo o exposto, dúvida não há de que o princípio da culpabilidade (nullum crime sine culpa) constitui uma garantia ao acusado de que somente será sancionado na medida da reprovabilidade da conduta que perpetrou no âmbito de um direito penal objetivista, isto é, no âmbito de um direito penal que promove a reprovação do comportamento que se estabelece em dissonância com a norma, ou ainda, promove a responsabilização do indivíduo que se motivou em desacordo com o direito, embora podendo comportar-se segundo os seus preceitos, erigindo-se uma resposta estatal em compasso com o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, posto que a pena passa por um critério claro de razoabilidade, afastando-se do arbítrio estatal. E assim deve ser porque a supressão da liberdade humana constitui medida extrema, cuja incidência, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, somente pode ocorrer de forma moderada: a punição deve, pois, rechaçar a conduta delituosa, e não recair sobre o homem pelo que é.
Com isso se quer dizer que o princípio da culpabilidade possui alcance bastante significativo no âmbito do direito penal, porquanto dele depende a noção de punibilidade e de delito. Ora, a condição para a incidência da pena é a existência da condição de reprovabilidade da conduta do agente que podia motivar-se conforme o direito e não o fez. Afastado esse juízo de reprovação, não há fato punível, consoante o entendimento do professor Luiz Flávio Gomes, uma vez que "o crime, entendido como fato punível, como estamos sustentando há algum tempo (...) exige cinco requisitos: conduta, tipicidade ofensiva, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade. Faltando qualquer um deles não há que se falar em fato punível3".
Juízo de reprovabilidade da conduta, fundamento e limite da pena, princípio garantidor da dignidade da pessoa humana e elemento constitutivo do conceito de crime, o princípio da culpabilidade realiza-se enquanto verdadeiro limite material do ius puniendi4. Eis o significado e alcance do princípio da culpabilidade no direito penal atual.
Passemos a uma breve análise da questão da exclusão da responsabilidade penal do agente, em seus principais tópicos.
Desde Welzel, a culpabilidade envolve a análise de três requisitos fundamentais, a saber, da imputabilidade, do potencial conhecimento da ilicitude do fato e da exigibilidade de conduta diversa. Nessa Perspectiva, a questão do afastamento da responsabilidade penal do agente, sob o enfoque da culpabilidade, depende do afastamento de quaisquer dos seus elementos constitutivos – a imputabilidade; o potencial conhecimento da ilicitude; e a exigibilidade de conduta diversa.
Do ponto de vista da imputabilidade, a exclusão da responsabilidade penal do agente pode se dar mediante a incidência de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, conforme dispõe o artigo 26 Código Penal. Tal circunstância tem o condão de afastar a imputabilidade e, consequentemente, a culpabilidade do agente. Com a menoridade (art. 27 Código Penal), há uma presunção absoluta de incapacidade penal em face de um critério cronológico ou biológico. Circunstâncias orgânicas (alterações hormonais que determinam um comportamento mais impulsivo, desafiador, potencialmente infrator), justificam tal tratamento. De igual modo, afasta-se a imputabilidade (e, portanto, a culpabilidade) a embriaguez acidental completa – a partir do uso de qualquer substância entorpecente capaz de afetar a psique do agente. Quanto ao potencial conhecimento da ilicitude do fato, ressalte-se que para que haja reprovação, culpabilidade e crime, o agente deverá conhecer a ilicitude, ou seja, o caráter proibido e contrário ao ordenamento daquilo que faz, ou então, vislumbrar a possibilidade (ou o potencial) para conhecê-lo. Finalmente, no que tange a exigibilidade de conduta diversa, a culpabilidade (e o crime) depende da possibilidade de se exigir do agente um comportamento diferente daquele por ele praticado na situação concreta, sendo que a base para esta exigibilidade será a análise da normalidade ou não das circunstâncias fáticas (respeito às normas). Se não for exigível um comportamento diferente do agente, afasta-se a culpabilidade do mesmo, isto é, quando for inexigível um comportamento diferente do agente, pela anormalidade das circunstâncias em que se encontre e que determina sua conduta, afasta-se a culpabilidade e o crime por não ser possível exigir-lhe conduta conforme o direito. Há, pois, a incidência das chamadas causas de exculpação, previstas no artigo 22 do Código Penal. A primeira hipótese refere-se à coação irresistível, que incide na moral daquele que a sofre (vis compulsiva). Não se trata, pois, da coação física (vis absoluta), posto que se assim o fosse, haveria a exclusão da própria conduta do agente, por ausência de dolo ou culpa. A coação moral, de outra sorte, incide sobre a liberdade de vontade do agente, que se torna limitada, de forma irresistível, insuportável, afastando sua culpabilidade e possibilitando a imputação do crime ao autor da coação. Por fim, como segunda hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, o Código Penal prevê a obediência hierárquica à ordem não manifestamente ilegal. Conforme se pode observar, esta segunda hipótese constitui uma espécie de erro determinado por terceiro, que afasta a culpabilidade do agente, desde que a ordem, emanada de superior hierárquico (em razão de dependência funcional do executor da ordem dentro do serviço público, em relação a quem lhe ordenou a prática do ato delituoso5), não seja manifestamente ilegal, isto é, desde que se revista de aparência de legalidade. Além disso, é preciso anotar que a doutrina aponta causas supralegais de exclusão da culpabilidade do agente no âmbito da inexigibilidade de conduta diversa, as quais possuem o condão de suprimir a culpabilidade do agente. Embora não previstas em lei, fundamentam-se em princípios norteadores do ordenamento jurídico pátrio.
REFERÊNCIAS:
AMARAL JUNOR, Culpabilidade como princípio. Disponível em www.ibccrim.org.br
GOMES, Luiz Flávio; GARÍA-PABLO DE MOLINA, Antônio. Direito Penal: parte geral. 2.ed. São Paulo: RT, 2009.
GOMES, Luiz Flávio. Filho que furta dinheiro do pai: há crime?. Publicado em 09 de out. 2004. Disponível em http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20041009135130629&mode=print
GOMES, Luiz Flávio; GARÍA-PABLO DE MOLINA, Antônio; BIACHINI, Alice. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. São Paulo:RT, 2007.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. Niterói: Impetus, 2009.
______. Código penal: comentado. Niterói: Impetus, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
RODRIGUES, Cristiano. Teorias da culpabilidade e teoria do erro. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010.
Notas
1 GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio Garcia Pablos de. Direito Penal: parte geral. 2.ed. São Paulo: RT, 2009.
2 AMARAL JUNOR, Culpabilidade como princípio. Disponível em www.ibccrim.org.br
3 GOMES, Luiz Flávio. Filho que furta dinheiro do pai: há crime? Publicado em 09 de out. 2004. Disponível em http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20041009135130629&mode=print
4 GOMES, Luiz Flávio; GARÍA-PABLO DE MOLINA, Antônio; BIACHINI, Alice. Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. São Paulo:RT, 2007.
5 GRECO, Rogério. Código penal:comentado. Niterói: Impetus, 2008.