No início da Filosofia, o foco era na origem da natureza, do mundo e, por reflexo, as relações entre os homens. Porém, com o movimento dos sofistas no século V antes de Cristo, houve uma ruptura, no qual o homem é colocado no centro das discussões filosóficas. Os sofistas – sábios – foram os primeiros professores, mas não formaram uma escola propriamente dita, já que vários dos seus pensamentos divergiam entre si.
Com uma relativa estabilização política da Grécia Antiga (século V a.C.), no chamado Século de Péricles, não havia tanta necessidade de cultivar as virtudes (arete) dos guerreiros. Nessa época, floresceram as artes, a mitologia, a filosofia, a literatura, a história e a política. Os fatores que contribuíram para isso, segundo Bittar e Almeida (p. 92), foram a participação popular nos instrumentos de poder, principalmente com a estruturação da democracia de Atenas, a expansão das fronteiras gregas, acúmulo de riquezas e intensificação do comércio, inclusive com outros povos, e a utilização do "falar bem" para assemblear, além de se ter conhecimentos gerais.
Os sofistas e a democracia grega
Foram os sofistas uma resposta às necessidades da democracia grega, ou seja, exercer a cidadania por meio do discurso. "Isso não há que se negar como dado comum a todos os sofistas: são eles homens dotados de domínio da palavra, e que ensinam a seus auditórios (auditórios abertos ou círculos de iniciados) a arte da retórica, com vista no incremento da arte persuasiva (peitho)", escrevem Bittar e Assis (p. 93).
O domínio da arte retórica, por parte de homens dotados da técnica (techné) da utilização das palavras, explicam Bittar e Almeida (p. 94), era necessário não somente na praça pública (agora), mas também para atuar perante os magistrados, na tribuna: "As palavras tornaram-se o elemento primordial para a definição do justo e do injusto. A técnica argumentativa faculta ao orador, por mais difícil que seja sua causa jurídica, suplantar as barreiras dos preconceitos sobre o justo e o injusto e demonstrar aquilo que aos olhos vulgares não é imediatamente visível."
Talvez se tenha noção, vulgarmente, de que os sofistas – muitos deles estrangeiros - formaram uma única escola, por estarem no cenário das polêmicas com Sócrates (469-399 a.C) e seu discípulo Platão (427-347 a.C.). "Os sofistas sempre foram mal interpretados por causa das críticas que a eles fizeram Sócrates e Platão. A imagem de certa forma caricatural da sofística tem sido reelaborada na tentativa de resgatar a sua verdadeira importância", assinalam Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (p. 120)
Sócrates acusou os sofistas de "prostituição" simplesmente porque estes ensinavam para aqueles que pudessem pagá-los, sendo os primeiros "professores", na concepção atual da palavra, ensinam Aranha e Martins (p. 120): "Cabe aqui um reparo: na Grécia Antiga, apenas a aristocracia se ocupava com o trabalho intelectual, pois gozava do ócio, ou seja, da disponibilidade de tempo, já que o trabalho manual, de subsistência, era ocupação de escravos. Ora, os sofistas, geralmente pertencentes à classe média, fazem das aulas seu ofício, por não serem suficientemente ricos para se darem ao luxo de filosofarem."
No entanto, os sofistas sistematizaram o ensino, formando um currículo, explicam Aranha e Martins (p. 120): "gramática (da qual são iniciadores), retórica e dialética; por influência dos pitagóricos, desenvolvem a aritmética, a geometria, a astronomia e a música."
"O homem é a medida de todas as coisas", disse o sofista Protágoras de Abdera (485-411 a.C.). Assim, o ser humano passa a ser o centro das atenções, como explicam Carlos Eduardo Bianca Bittar e Guilherme de Assis Almeida (p. 90): "É esse o contexto de florescimento do movimento sofístico, muito mais ligado que está, portanto, à discussão de interesses comunitários, a discursos e elocuções públicas, à manifestação e à deliberação em audiências políticas, ao convencimento dos pares, ao alcance da notoriedade no espaço da praça pública, à demonstração pelo raciocínio dos ardis do homem em interação social."
Os sofistas foram os primeiros a estabelecer uma diferença entre natureza (physis) e lei humana (nomos), sem, no entanto, contrapô-las, explica Flamarion Tavares Leite (p. 23), na etapa original. O justo e o injusto, para os sofistas, não se originará na natureza das coisas, mas nas opiniões e convenções humanas, na forma da lei (nomos), oriunda da sua opinião (doxa). Em semelhança ao que versa o positivismo jurídico atual, segundo eles, o justo é o que está segundo a lei, e injusto o que a contraria. Numa segunda etapa, os sofistas afirmariam que a natureza se opõe à lei humana. "Nesta, encontra-se fundada a igualdade natural de todos os homens; naquela, sua desigualdade antinatural", ensina Leite (p. 23).
Com os sofistas, opositores radicais da tradição, surgia o relativo, o provável, o possível, o instável, o convencional, afirmam Bittar e Almeida (p. 94) Nessa segunda etapa, de predomínio da lei humana (nomos) sobre a natureza, os sofistas optaram pela prevalência desta, que libertaria os humanos dos laços de barbárie. A deliberação sobre o conteúdo das leis não teria origem na natureza ou na divindade (nem mesmo com base nas deusas da justiça, Thémis e Diké), mas na vontade humana. A justiça é definida por critérios humanos, e não naturais. Se fossem naturais, todas as leis seriam iguais. Pode parecer democrático tudo isso. Mas atenção. Alguns cultores da sofística assinalavam, conforme Bittar e Almeida (p. 96), que "os homens deveriam submeter-se ao poder daquele que ascendesse ao controle da cidade por meio da força; a justiça é vantagem para aquele que domina e não para aquele que é dominado (Trasímaco)".
O conceito de justiça, para os sofistas, é igualado ao de lei. Justo é o que está na lei, o que foi dito pelo legislador. "Em outras palavras, a mesma inconstância da legalidade (o que é lei hoje poderá não ser amanhã) passa a ser aplicada à justiça (o que é justo hoje poderá não ser amanhã). Nada do que se pode dizer absoluto (imutável, perene, eterno, incontestável...) é aceito pela sofística. Está aberto campo para o relativismo da justiça", falam Bittar e Almeida (p. 96).
Sócrates e o nascimento da ética
"Só sei que nada sei". O autor da frase, Sócrates – um opositor ferrenho aos sofistas - deixou uma marca indiscutível no modo de se pensar no Ocidente. Figura polêmica, por não ter deixado escritos, muitos dizem, inclusive, que não existiu, foi apenas um personagem que teria sido inventado por seus supostos alunos Platão e Xenofonte. Foi, então, principalmente por meio dos escritos desses dois, que o legado de Sócrates não pereceu. Convivendo na Era de Péricles (século V a.C.), de apogeu da Grécia, junto ao povo nas praças públicas (agorá), da cidade (pólis) de Atenas, Sócrates situou sua doutrina na natureza humana e seus desdobramentos ético-sociais. Via na prudência (phónesis) uma virtude essencial para a ordem social, visando uma educação cidadã.
De origem simples, Sócrates era filho de um escultor e de uma parteira. Estudou literatura, música, ginástica, retórica, geometria e astronomia, tal como as obras dos outros filósofos e também dos sofistas, conta Andreas Drosdek (p. 15). Enquanto conscrito no serviço militar, lutou com bravura pela sua cidade. Participou por muito tempo da Assembléia de Atenas, mas não apoiava normas que considerava injustas. "Não apoiou, por exemplo, o governo dos Trinta Tiranos, no ano 404, que mandava para a prisão, por simples capricho, vítimas inocentes. Provavelmente, só foi salvo da fúria dos tiranos graças à contrarrevolução, ocorrida pouco tempo depois", salienta Drosdek (p. 16).
Sócrates tinha um método baseado na ironia e na maiêutica. Na primeira fase do método, a ironia, Sócrates – diante de outra pessoa que dizia conhecer um assunto – dizia que nada sabia. Ele só fazia perguntas, até desmontar o outro, que acabava por demonstrar, na verdade, sua ignorância. Na segunda fase, a maiêutica (parto em grego, em homenagem à sua mãe Fenareta), Sócrates dava luz às novas idéias, construindo novos conceitos, mesmo que não se chegasse a conclusões definitivas. Indagava sobre o sentido dos costumes e as disposições de caráter dos atenienses, dirigindo-se à sociedade e ao indivíduo.
A professora Marilena Chauí (p. 311) é contundente sobre o método de Sócrates: "As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, quando um grupo conversava com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas alternativas: ou zangar-se com a impertinência do filósofo perguntador e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia de Sócrates, a busca filosófica da virtude e do bem."
Devido a essa atitude, ao mesmo tempo em que arregimentava seguidores, Sócrates teve um grande número de inimigos, que, posteriormente, conseguiram articular politicamente a sua condenação à morte, com respaldo popular, sob a acusação de negar as divindades (criando outras) e de corromper a juventude. Condenado ao suicídio, Sócrates bebeu um veneno chamado cicuta. Poderia ter optado pelo exílio de Atenas ou apelado por misericórdia, mas não o fez. "No entanto, a ética de respeito às leis, e, portanto, à coletividade, não permitia que assim agisse", narram Bittar e Almeida (p. 102). "A fuga, portanto, era impensável para ele, pois se assim agisse não estaria mais servindo a Atenas", completa Drosdek (p. 17).
Sócrates desafiava a ordem vigente nos círculos sociais da sua época, pois questionava o relativismo dos sofistas, pregando uma verdade perene, que influenciaria sistemas filosóficos posteriores como o platonismo, o aristotelismo e o estoicismo.
Desse modo, para Sócrates, erro é fruto da ignorância, e toda virtude é conhecimento. O filósofo, assim, tinha como missão "parir" o conhecimento que está dentro das pessoas. "Daí a importância de reconhecer que a maior luta humana deve ser pela educação (paidéia), e que a maior das virtudes (areté) é a de saber que nada se sabe", escrevem Bittar e Almeida (p. 99) De onde será que os partidos e os políticos tiraram a bandeira da "educação" acima de tudo?
A Sócrates pode ser atribuída a origem da ética (ou filosofia moral), tendo como ponto de partida a consciência do agente moral, arremata Chauí (p. 311): "É sujeito ético ou moral somente aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que o é bem não poderá deixar de agir virtuosamente."
A ética de Sócrates reside no conhecimento e na felicidade. Como assim conhecimento? Aquele que comete o mal crê praticar algo que o leve à felicidade, por ter seu juízo enganado por meros "achismos". Por isso é preciso, antes, conhecer a si mesmo. Depois de dotado de conhecimento, aí, sim, valorar acerca do bem e do mal. A felicidade, para ele, não se resumia a bens materiais, riquezas, conforto ou status perante os demais homens. Conforme Bittar e Almeida (p. 101): "O cultivo da verdadeira virtude, consistente no controle efetivo das paixões e na condução das forças humanas para a realização do saber, é o que conduz o homem à felicidade." Sua ética é, portanto, teleológica, ou seja, tem como fim da ação a felicidade.
Para Sócrates o coletivo tinha primazia sobre o individual, mas se opunha à concepção de que Direito é a expressão dos mais fortes, sendo melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la. A filosofia, de acordo com Sócrates, é buscar a maior perfeição possível seja na vida, quanto na morte. "Para ele, a cidade e suas leis são necessárias e respondem às exigências da natureza humana. A obediência às leis da cidade é um dever sempre e para todos. Por isso Sócrates submete-se à condenação da cidade, ainda que reconhecendo a injustiça de que é vítima", disserta Leite (p. 24-25). Complementam Bittar e Almeida (p. 102): "E isso porque a ética socrática não se aferra somente à lei e ao respeito dos deveres humanos em si e por si. Transcende a isso tudo: inscreve-se como uma ética que se atrela ao porvir (post mortem). (...) Isso ainda significa dizer que a verdade e a justiça devem ser buscadas com vista em um fim maior, o bem viver post mortem. E não há outra razão pela qual se deseje filosofar senão a de preparar-se para a morte."
Embora tivesse conhecimento de que a lei humana (nomos) – artifício humano e não da natureza – poderia ser justa ou injusta, Sócrates pregava a irrestrita obediência à lei. O Direito – conjunto de leis, em termos simplistas – seria um instrumento de coesão social que levaria à realização do bem comum, entendido como o "desenvolvimento integral de todas as potencialidades humanas, alcançadas por meio do cultivo das virtudes", ensinam Bittar e Almeida (p. 104). A lei seria elemento de ordem no todo da cidade (pólis) e, por isso, não deveria ser contrariada, mesmo que se voltasse contra si mesmo, sob pena de se instalar a desordem social. "O homem integrado enquanto integrado ao modo político de vida deve zelar pelo respeito absoluto, mesmo em detrimento da própria vida, às leis comuns a todos, às normas políticas (nómos póleos)", completam Bittar e Almeida (p. 106-107).
O indivíduo nas suas elucubrações poderia questionar os critérios de justiça de uma lei positiva (externa), mas somente criticá-la, sem desobedecê-la, evitando, assim, o caos por levar outras pessoas a desobedecê-la. Dizem Bittar e Almeida (p. 108): "Em outras palavras, para Sócrates, com base num juízo moral, não se podem derrogar leis positivas. O foro interior e individual deveria submeter-se ao exterior e geral em benefício da coletividade." Prossegue Leite (p. 25): "Efetivamente, a justiça, para Sócrates, consiste no conhecimento e, portanto, na observância das verdadeiras leis que regem as relações entre os homens, tanto das leis da cidade como das leis não-escritas. Segundo Sócrates, que propugna pela obediência incondicional às leis da cidade, o justo não se esgota no legal, posto que acima da justiça humana existe uma justiça natural e divina."
Bittar e Almeida (p. 109) enumeram os motivos que levaram Sócrates a optar pelo suicídio: "concatenação da lei moral com a legislação cívica; o respeito às normas e à religião que governavam a comunidade, no sentido do sacrifício da parte pela subsistência do todo; a importância e imperatividade da lei em favor da coletividade e da ordem do todo; a substituição do princípio da reciprocidade, segundo o qual se respondia ao injusto com injustiça, pelo princípio da anulação de um mal com o seu contrário, assim, da injustiça com um ato de justiça; o reconhecimento da sobrevivência da alma, para um julgamento definitivo pelos deuses, responsável pelo verdadeiro veredito dos atos humanos."
Platão, as idéias e a hierarquia social
Platão, o mais famoso dos discípulos de Sócrates, nasceu no seio de uma das mais tradicionais famílias da aristocracia política de Atenas. Ao completar 20 anos, conheceu seu mentor, que mudaria para sempre o rumo da sua vida. "Platão era de família aristocrática, o que torna notável o fato de ele acreditar que os governantes não deveriam ser escolhidos por sua origem, e sim pela inteligência e força de caráter. Acima de tudo, o oportunismo dos políticos atenienses, que acabou culminando no julgamento e na sentença de morte de Sócrates, convencera Platão a considerar com muita seriedade as qualidades necessárias a um bom líder", explica Drosdek (p. 26).
Em 387 a.C. Platão criou a Academia, o primeiro centro de ensino superior do Ocidente, afirma Leite (p. 27): "Até então, a educação superior nunca havia assumido essa forma corporativa, organizada, sedentária, com distribuição de cursos e matérias, que imprimiu Platão à Academia." Seus principais livros são "A República", "O político" e "As leis".
Com relação à sua doutrina, é interessante recorrer ao "mito da caverna", incluído no livro VII de "A República", recomendam Aranha e Martins (p. 121): "Platão imagina uma caverna onde pessoas estão acorrentadas desde a infância, de tal forma que, não podendo ver a entrada dela, apenas enxergam o seu fundo, no qual são projetadas as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira. Se um desses indivíduos conseguisse se soltar das correntes para contemplar à luz do dia os verdadeiros objetos, ao regressar, relatando o que viu aos seus antigos companheiros, esse o tomariam por louco e não acreditariam em suas palavras."
Aqui, em termos relacionados ao conhecimento (epistemologia), faz uma separação entre mundo sensível (dos fenômenos) e mundo inteligível (das idéias gerais). O mundo sensível é percebido pelos sentidos, sendo ilusório, múltiplo, com réplicas imperfeitas do verdadeiro. Para Platão, o mundo das idéias gerais refletia a doutrina de Parmênides, nos quais o ser é imóvel, enquanto o mundo sensível se espelhava em Heráclito, que afirmava a mutabilidade essencial do ser. Na vida terrena, se experimenta a mutabilidade; no Hades (além-vida), a permanência. "As almas cumprem seus ciclos num longo período de provas, durante o qual permanecem indo e vindo entre duas realidades", asseveram Bittar e Almeida (p. 121).
Aliando o arsenal teórico de Parmênides e de Sócrates, Platão cria a palavra "idéia", para denominar as intuições intelectuais, superiores às sensíveis. O mundo real, para Platão, seria o mundo das idéias gerais (as únicas verdades), que seria atingido pela contemplação e depuração dos enganos dos sentidos. Asseveram Aranha e Martins (p. 122): "Para Platão há uma dialética que fará a alma elevar-se das coisas múltiplas e mutáveis às idéias unas e imutáveis. As idéias gerais são hierarquizadas, e no topo delas está a idéia do Bem, a mais alta em perfeição e a mais geral de todas: os seres e as coisas não existem senão enquanto participam do Bem. E o Bem supremo é também a Suprema Beleza. É o Deus de Platão."
A alma humana recupera, as idéias que lhes estão latentes, por reminiscência. O esquecimento se deu na passagem do pós-vida (Hades) para a Terra. No pós-vida, as almas escolheriam um reencontro próximo com um corpo carnal, com base em experiências e hábitos de vida anteriores, explicam Bittar e Almeida (p. 119): "Nesse sentido, tendo em vista a liberdade de escolha de cada alma, podiam ser escolhidas vidas animais ou humanas; após a escolha, cada alma recebia seu demônio, que lhes encaminharia nas dificuldades da vida."
Passa-se, agora, à interpretação política do "mito da caverna". O filósofo (semelhante ao homem que conseguiu sair da caverna) contempla a verdadeira realidade, passando da opinião (doxa) à ciência (episteme). Aí, comentam Aranha e Martins (p. 122), deve "retornar ao meio dos outros indivíduos, para orientá-los (...), ensiná-los e governá-los". Platão idealiza o sábio (filósofo) como rei para que o Estado seja bem governado, sendo preciso que "os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos". Como se lerá, a partir do parágrafo seguinte, isso norteou a teoria ético-política de Platão.
A justiça, escreve Platão em "A República", é a virtude do cidadão e do filósofo que tem predominância sobre as outras (sabedoria, coragem e temperança). É a justiça que ordena as virtudes que regem cada uma das três partes (ou potências) da alma humana, a racional (possibilita o conhecimento das idéias), a irrascibilidade (impulsos e afetos) e a concupiscente (necessidades mais elementares). A razão seria governada pela sabedoria ou prudência (sophia ou phrónesis), a irrascível pela coragem (andreia). Tanto a irrascibilidade e a concupisciência deveriam submeter-se à razão, por meio da temperança ou moderação (sophrosyne).
As virtudes, para Platão, dependem de aperfeiçoamento constante por parte dos humanos, com a predominância – é claro, da alma racional sobre as tendências irascíveis e concupiscíveis. Existe harmonia (armonía) ao se dominar os instintos ferozes, o descontrole sexual e a fúria dos sentimentos, versam Bittar e Almeida (p. 114), permitindo que a alma frua dos prazeres espirituais e intelectuais: "O vício, ao contrário da virtude, está onde reina o caos entre as partes da alma. De fato, onde predomina o levante das partes inferiores com relação à alma racional, aí está implantado o reino do desgoverno, isso porque ora manda o peito, e suas ordens e mandamentos são torrentes incontroláveis (ódio, rancor, inveja, ganância...), ora manda a paixão ligada ao baixo ventre (sexualidade, gula...)." O recado, completam Bittar e Almeida (p. 115), é claro: "Sacrificar-se pela causa da verdade significa abandonar os desejos do corpo, e fazer da alma o fulcro de condenação da conduta em si e por si."
Essa teoria da alma seria associada, por Platão, à teoria da cidade. Platão dividiu a sociedade em três classes, cada qual com uma função. No topo da sociedade estariam os governantes filósofos, guiados pela sabedoria (sophia), em seguida, os guerreiros imiscuídos da coragem (andreia) e, abaixo, os artesãos e agricultores, a base econômica. Os guerreiros e os artesãos e agricultores aceitariam o governo dos que têm sabedoria, e a temperança, que lhes é peculiar, lhes castraria o ímpeto de tomar o poder. Em suma, os filósofos seriam a cabeça; os guerreiros, o peito; e os artesãos e comerciantes o baixo ventre do corpo político.
A doutrina política de Platão é aristocrática: "Nesse contexto, a justiça corresponde: aos magistrados (filósofos) devem governar; os guardiões, defender a cidade das desordens internas e dos ataques externos; os artesãos e agricultores, produzir. Devem fazer apenas isso, sem intromissão naquilo que não lhes compete pelo ofício ou classe. Justiça, pois, é cada um fazer o que lhe é cometido, sem intrometer-se na seara dos demais. Isto significa que nenhuma das virtudes poderia existir sem a justiça. A injustiça seria a ruptura desta ordem, a sedição das potências inferiores contra a razão", escreve Leite (p. 29).
Justiça para Platão é manter essa ordem original, ou as formas de governo (cinco, em "A República") degenerariam. Para ele, a única forma de governo legítima e justa seria o governo dos sábios, que poderia ter a forma de monarquia. As demais seriam formas degeneradas da pura, nas quais não se efetivaria justiça. Com os guerreiros no poder, haveria a timocracia, o governo que preza honrarias. Caso os ricos ficassem no comando, seria uma oligarquia, que dividiria os cidadãos entre os mais abastados e os pobres. A oligarquia provocaria maior acumulação de bens para os ricos, desequilibrando e dividindo a cidade em duas, abrindo caminho para a democracia (a desordem). Com a desordem da democracia, um único homem tiraria proveito da situação para sagrar-se no poder, inaugurando a tirania, a forma que mais se opõe à justiça.
Já, em "O Político", Platão descreve três formas legítimas de governo (monarquia, aristocracia e democracia moderada, em ordem decrescente de preferência) e três formas ilegítimas de governo (democracia turbulenta, oligarquia e tirania, da menos para a mais corrupta). "Em "As Leis", Platão acrescenta uma forma à classificação exposta em ‘O Político’: a forma mista de governo, que é uma mescla de monarquia e democracia", narra Leite (p. 32).
.Aliás, havendo uma realidade divina (mundo das idéias gerais), além desta realidade (mundo sensível), implica-se, igualmente, na existência de uma justiça divina, superior à justiça falha e imperfeita dos homens. Se é inteligível, perfeita, absoluta e imutável essa justiça pode ser contemplada para, daí, extrair princípios para governar e manter a saúde do corpo social.
Não se trata, pois, de uma justiça apenas dos homens, mas de uma outra, metafísica, presente no Hades (além-vida), no qual a justiça universal se dá pela doutrina da paga (punição para o mal cometido, recompensa para o bem realizado. "A conduta ética e seu regramento possuem raízes no Além (Hades), de modo que o sucesso terreno (homicidas, tiranos, libertinos...) e o insucesso terreno (Sócrates...) não podem representar critérios de mensurabilidade do caráter de um homem (se justo ou injusto). No reino das aparências (mundo terreno, sensível), o que parece ser justo, em verdade, não o é; o que parece ser injusto, em verdade, não o é", comentam Bittar e Almeida (p. 121).
Em Platão, se viu que a alma racional deve controlar as outras partes da alma, para que haja a harmonia da virtude. Caso isso não ocorra, prevalece o vício. Porém, esse plano é metafísico, e não terreno. A paidéia (formação) da alma deveria prepará-la para atingir o Bem Absoluto. Esta seria uma tarefa do Estado, para que o cidadão pudesse melhor aproveitá-lo e também melhor servi-lo. Essa visão de Platão sobre o papel do Estado na vida do cidadão pode ser vista como paternalista. Para o filósofo Karl Popper, a filosofia política de Platão é autoritária. Assunto para mais polêmicas, enfim, que podem ser assunto para outro texto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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