4. O ATO ADMINISTRATIVO
Nenhuma lei delimita o conceito jurídico positivo do ato administrativo, o que deu azo para doutrina desdobrar o tema, a par de inúmeros aspectos vislumbrados como essenciais para a tipificação da exteriorização da vontade da administração pública.
O certo é que qualquer que seja o conceito posto, a expressão ato administrativo, usado em sentido amplo ou estrito denota sempre ação praticada pelo Estado ou por quem lhe faça às vezes.
Para o fim proposto agrada o conceito de ato administrativo formulado por Celso Antônio Bandeira de Mello, assim traçado como "declaração do Estado (ou de quem lhe faça às vezes - como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional." [32]
Em acepção estrita, segundo o renomado autor, conceitua-se ato administrativo como sendo "declaração unilateral do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante comandos concretos complementares da lei (ou, excepcionalmente, a título de lhe dar cumprimento) e sujeitos a controle de legitimidade por órgão jurisdicional". [33]
Do conceito exposto extrai-se que, no sistema jurídico-positivo brasileiro, a ação administrativa encontra-se subordinada à lei, sendo vedado à Administração Pública agir praeter legem ou contra legem, atuando sempre secundum legem.
Nesta esteira, oportuna é a lição de José Sérgio Monte Alegre, extraída da RDA 139/287 - 1980, sobre o ato administrativo e a sua observância à ordem jurídica, grafada nestes termos:
É de primária ciência, que o ato administrativo, como expressão mais pura e formal da vontade da administração pública, há de conformar-se às prescrições legais que presidem a sua formação e ulterior manifestação.
Noutro dizer, o poder administrativo, ao interferir no processo de realização do direito, mediante a individualização da norma, haverá de conter-se nos limites do texto que lhe cumprir aplicar. No particular, qualquer deslize no exercício da função administrativa traduzirá exorbitância às fronteiras assinadas pela atividade legiferante, convertendo o ato eventualmente produzido em elemento de perturbação da normalidade jurídica.
E isto, pela simples mais poderosa razão, dentre outras, de que, se 'administrar é aplicar a lei de oficio' na feliz expressão do eminente M. Seabra Fagundes, resulta daí, à vista mansa, que a atuação daquele poder é dependente, para que se lhe reconheça validade, de uma estrutura normativa que necessariamente deverá antecedê-lo e à qual cumprirá fazer operar, sendo-lhe proscrito ir além ou ficar aquém do que nele se faculta ou impõe.
De efeito, não se compreenderia pudesse o administrador, ao executar a lei, separar-se dela ou contrastá-la direta ou dissimuladamente, com o que se negaria o próprio conteúdo dessa peculiar atividade estatal na preservação de fins em razão dos quais existe e se movimenta.
A juridicidade da conduta administrativa é corolária do estado de direito, dentro do qual não há vontade que se sobreponha à vontade da lei. [34]
No que tange à subsunção do ato administrativo à lei, a doutrina não tem qualquer ponto de divergência. Volve-se o debate em torno da maneira como essa submissão se realiza.
Neste particular a obra de Weida Zancaner - Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos - sintetiza bem a questão. Diz ela, com base em André Gonçalves Pereira, que são três as concepções doutrinárias sobre o tema:
A concepção restritiva do princípio da legalidade postula que a atividade exercida pela Administração Pública não visa, em última instância, à execução da lei, mas à realização do interesse público. Portanto, para poder cumprir seu objetivo primacial - o interesse público - a Administração estaria apenas proibida de infringir a lei, o que implica dizer, fora desta restrição, livre para a consecução do interesse coletivo, da mesma forma que os particulares, ao buscarem atingir os interesses que lhes são próprios.
(...) a concepção ampliativa do princípio da legalidade vê na lei um limite positivo da ação administrativa, visto que não lhe é permitido fazer, como ocorre com o particular, tudo o que a lei não proíbe. Ao contrário deste, o seu atuar está cingido aos termos previstos ou permitidos pela lei.
Todavia, alguns juristas entendem que as concepções supra-expostas não correspondem às exigências da realidade, pois, se em alguns casos a atividade administrativa encontra-se estritamente jungida à lei, em outros essa atividade é simplesmente lícita, o que os leva a adotar uma posição que visa conciliar as concepções referidas e à qual denominam eclética. [35]
Com efeito, o que é importante ressalvar neste ponto é que a completa subsunção da administração à lei não é um fim em si, mas constitui meio para que ela possa cumprir o fim ao qual se encontra adstrita: a consecução do interesse público.
Não resta dúvida que o ato administrativo é jungido pelo princípio da legalidade que, no Estado de Direito, informa toda atuação governamental. Dessa premissa ressai conseqüências jurídicas. O ordenamento, a princípio, não comporta o ato administrativo em desconformidade com a lei, quer por razões que variam desde o simples erro na apreciação de circunstâncias de fato ou de direito, até a forma mais extremada de desvio de poder. Todavia tem-se hoje o reconhecimento que nenhum princípio é absoluto. Modernamente, faz-se necessário a correção de algumas distorções do principio da legalidade da Administração Pública, resultante do esquecimento de que sua origem radica na proteção dos indivíduos contra o Estado, dentro do círculo das conquistas liberais obtidas no final do século XVIII e inicio do século XIX e decorrentes, igualmente, da ênfase excessiva no interesse do estado em manter íntegro e sem lesões o seu ordenamento jurídico. [36]
O sistema jurídico, como ordem de valores, possui uma ratio iuris atrás da ratio legis, ou seja, valores fundamentais superiores que buscam na ordem jurídica a sua proteção. Existe, portanto, uma racionalidade subjacente ao sistema jurídico que permite o recurso aos ditames da razão. O Direito positivo, dentro da concepção de Locke, é o meio de realização do Direito natural que lhe antecede, pois nesse reside a razão no seu estado ideal.
Nesse sentido, a razão no estado ideal corresponde a inúmeras possibilidades de valoração, porém pode vigorar apenas a valoração que estiver prevista ou de alguma forma for reflexo do sistema positivo de valores. Daí as controvérsias decorrentes do relacionamento entre Lei e Direito constituírem o ponto central da metodologia jurídica. [37]
A primeira premissa que se lança é que a Administração Pública está vinculada ante ao direito do que propriamente a lei. A invariável aplicação do princípio da legalidade como esteio para invalidação do ato eivado de vício, imporia a conclusão simplória de que os atos assim praticados não geram qualquer conseqüência jurídica.
Decerto isto não é verdadeiro. Assim, como não subsiste para o administrador o "dever" de sempre invalidar os atos ilegais.
Certa contemporização já é possível imaginar para as situações da espécie.
A flexibilização do dogma do dever de invalidação do ato administrativo encontra eco na doutrina mais abalizada. Muito mais agora, mutatis mutandis,quando, por exemplo, a Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, regulando o processo de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade destaca em norma inscrita em seu art. 27 que:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
A norma em tela aponta a possibilidade de flexibilização da regra e eficácia ex tunc da decisão no controle de constitucionalidade ao conferir ao Supremo Tribunal Federal - guardião da Lei Maior - plena possibilidade em não se manter indiferente às conseqüências dos seus julgados.
De fato é possível que uma norma se revele incompatível com a Constituição, mas que a sua supressão do universo jurídico, sobretudo quando realizada de forma retroativa, cause danos mais lesivos aos interesses e valores igualmente abrigados na ordem constitucional.
É interessante essa percepção para que se possa buscar à vista das peculiaridades da situação concreta, uma solução que acomode, na mesma medida do possível, os interesses em disputa, evitando muitas vezes efeitos mais nefastos em razão das pronúncias de inconstitucionalidade da lei ou de ato normativo.
Igualmente, pode o administrador ponderar os efeitos da anulação do ato administrativo inválido e em consideração a outros matizes optar pela sua manutenção ou lhe imprimir apenas efeitos ex nunc.
Com esta afirmação, no entanto, não se deseja advogar que o administrador público esteja outorgado a resolver tais conflitos com base em valorações políticas discricionárias. Pelo contrário, sua conduta deve pautar-se no ordenamento jurídico posto, e se apresentar devidamente fundamentada.
4.1 INVALIDAÇÃO E CONVALIDAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
A invalidação nada mais é do que a anulação do ato administrativo ou da relação jurídica por ele criada, com efeito ex tunc, quando o mesmo for produzido em discrepância com o ordenamento jurídico. O pressuposto da invalidação é exatamente a presença do vício de legalidade.
Nesta ótica, apropriadas são as palavras da professora da Universidade de Fortaleza, Clarissa Sampaio Silva:
O desfazimento dos atos viciados pela própria Administração ocorre mediante a invalidação, que pode ser conceituada como a eliminação de um ato administrativo, por outro ato ou por decisão judicial, em virtude de violação à ordem jurídica, com a desconstitucionalização dos efeitos por ele produzidos. A invalidação ou anulação, é, pois, feita por meio de um ato administrativo que desfaz o outro (tal técnica foi elaborada pelo Conselho de Estado Francês no início do século XX), incidindo apenas sobre o ato, na hipótese de este não ter ainda gerado efeitos, ou sobre o ato e seus efeitos. [38]
Portanto são sujeitos ativos da invalidação o Poder Judiciário e a própria Administração Pública no exercício de seu poder de autotutela, nos interessando in casu a realizada pela última. Com efeito, a Administração Pública tem o dever de zelar sempre pela lisura de seus atos e poderá invalidá-los motu proprio ou quando provocada. Porém, convém ressaltar, desde já, que o exercício desse poder-dever tem limite.
Almiro Couto e Silva afirma que não tem cariz absoluto tal dever, pois existem certos limites, verbis gratia a prescrição, que conferem relatividade, portanto, a tal invalidação. Curial destacar que na invalidação de algum ato administrativo, poderá ocorrer eventual conflito dos princípios da segurança jurídica e da legalidade. Nessa hipótese, a indisponibilidade do interesse público deve se sobrepor. [39]
Por esta senda, a primeira questão que merece abordagem é se a invalidação efetuada pela Administração constitui um dever ou uma faculdade.
Seabra Fagundes escreveu na obra O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, ao tratar de estabelecer o cotejo entre a invalidade dos atos jurídicos no direito Privado e no Direito Público: "A infringência legal no ato administrativo, se considerada abstratamente, aparecerá sempre como prejudicial ao interesse público. Mas, por outro lado, vista em face de algum dado concreto pode acontecer que a situação resulte do ato, embora nascida irregularmente, torne-se útil àquele mesmo interesse. Também as numerosas situações alcançadas e beneficiadas pelo ato vicioso podem aconselhar a subsistência dos seus efeitos". [40]
Conclui o ilustre mestre que a invalidação dos atos administrativos pela própria Administração é uma faculdade, eis que se a nulidade não for originada por ato doloso, não causar dano ao erário ou, tampouco, prejudicar direitos ou interesses legítimos dos administrados, o administrador não está obrigado a decretar a sua invalidação, ante a falta de expressa disposição legal.
Nessas situações, duas alternativas poderiam abrir-se ao administrador, conforme as circunstâncias: praticar novo ato, sem as deficiências do anterior, ou manter-se em silêncio, "renunciando tacitamente ao direito de invalidá-lo".
O problema é visto aí, como faculdade e não dever, que tem a Administração de decretar o anulamento de seus atos administrativos inválidos, faculdade a qual pode renunciar, repetindo o ato, quando isto é possível, sem os vícios que apresentava ou pela retificação tácita, a que também se reportara Jellinek, no direito alemão. Não cogitara Seabra Fagundes, ainda, da sanatória do nulo, pelo transcurso do tempo conjugado à complacência do Poder Público, o que daria ao destinatário, eventualmente pelo anulamento tardio, o direito subjetivo de rebelar-se contra esta última medida, pois seu pressuposto, ou seja, a invalidade, não mais existiria. [41]
Porém, para Weida Zancaner, trata-se de dever, pois "só poderia haver possibilidade de opção discricionária, como pretende parte da doutrina, caso houvesse norma jurídica que concedesse à Administração Pública possibilidade de agir com discrição" [42].
Explica ela ainda, refutando a tese daqueles juristas, que somente se verifica a discricionariedade quando a lei especificar algumas condições para o exercício desse poder, deixando que a Administração examine, subjetivamente, a escolha ou valorização do pressuposto fático, do conteúdo último da decisão aplicável, dentro dos limites legais impostos, ou, ainda, na presença dos conceitos jurídicos indeterminados.
No Estado de Direito todo poder emana da Lei. Se a discricionariedade é um poder, para configurá-lo é imprescindível que a lei regule alguns de seus elementos, vinculando o administrador a certos limites, sem os quais o próprio poder não existiria.
A discricionariedade encontra seu fundamento, para alguns, no objetivo legal de conferir à administração certa margem de liberdade para agir diante das singularidades e, para outros, na impossibilidade material do legislador de prever todas as situações fáticas.
A respeito do tema vale anotar os ensinamentos de Celso Antonio Bandeira de Mello, citado na obra de Weider Zancaner [43], verbis:
A esfera de liberdade administrativa pode residir na hipótese da norma jurídica a ser implementada, no mandamento dela ou, até mesmo, em sua finalidade.
Desta feita, esclarece Weida: "que a discricionariedade pode residir na hipótese da norma de duas maneiras, a saber: quando a norma confere ao administrador a faculdade de escolher o suposto de fato para seu agir, ou quando os supostos de fato enunciados na regra de direito são descritos mediante conceitos indeterminados, cabendo ao administrador precisá-los, com seu juízo subjetivo, quando da aplicação da norma". [44]
No tocante ao poder discricionário contido na finalidade da norma, que geralmente não vem expressa, hão que ser sopesados, como nos demais casos, as circunstâncias fáticas, os princípios gerais de direito e a razoabilidade na escolha do caminho a seguir, que deve ser sempre a melhor solução para o caso concreto.
Arremata a administrativista que sendo a discricionariedade um poder exercido dentro dos parâmetros da lei, não há que se falar em poder de invalidação e sim em dever, pois não encontramos em nosso sistema jurídico-positivo norma que sirva de fundamentação para tanto.
Diante da celeuma melhor conclui quem acredita que a questão da anulação do ato administrativo eivado de ilegalidade constitui, em regra, um dever daadministração orientada pela obediência ao princípio da legalidade (art. 37, Constituição Federal), podendo, entretanto, ora se apresentar como uma faculdade em razão das circunstâncias fáticas que por suas razões conduzem à manutenção do ato ilegal. Nesse caminho trilha a lição de José dos Santos Carvalho Filho:
No que se refere à anulação, surge a questão de saber se há por parte da Administração o dever ou a faculdade de anular o ato administrativo com vício de legalidade. A matéria é polêmica: para uns, haverá sempre a obrigatoriedade de fazê-lo, fundando-se o entendimento no principio da legalidade; para outros, a Administração terá a faculdade de optar pela invalidação do ato ou por sua manutenção, neste caso se houver prevalência do principio do interesse público sobre o da invalidação dos atos.
Em nosso entendimento, nenhuma das duas correntes está inteiramente correta: nem há sempre o dever de invalidar o ato, nem pode o administrador atuar discricionariamente, optando pela invalidação ou manutenção do ato.
A melhor posição consiste em considerar-se como regra geral aquela segundo a qual, em face de ato contaminado por vício de legalidade, o administrador deve realmente anulá-lo. A Administração atua sob a direção do principio da legalidade (art. 37, CF), de modo que, o ato é ilegal, cumpre proceder à sua anulação para o fim de restaurar a legalidade malferida. Não é possível, em principio, conciliar a exigência da legalidade dos atos com a complacência do administrador público em deixá-lo no mundo jurídico produzindo normalmente seus efeitos; tal omissão ofende literalmente o princípio da legalidade.
Entretanto, se essa deve ser a regra geral, há que se reconhecer que, em certas circunstâncias especiais, poderão surgir situações que acabem por conduzir a Administração a manter o ato inválido. Nesses casos, porém, não haverá escolha discricionária para o administrador, mas a única conduta juridicamente viável terá que ser a de não invalidar o ato e deixá-lo subsistir e produzir seus efeitos.
Tais situações consistem em verdadeiras limitações ao dever de invalidação dos atos e podem apresentar-se sob duas formas: 1) o decurso do tempo; 2) consolidação dos efeitos produzidos. O decurso do tempo, como é sabido, estabiliza certas situações fáticas, transformando-as em situações jurídicas. Aparece aqui a hipótese da prescrição para resguardar o princípio da estabilidade das relações jurídicas. Desse modo, se o ato é inválido e se toma ultrapassado o prazo adequado para invalidá-lo, ocorre a prescrição, como adiante veremos, e o ato deve permanecer como estava.
Haverá limitação, ainda, quando as conseqüências jurídicas do ato gerarem tal consolidação fática que a manutenção do ato atenderá mais ao interesse público do que a invalidação. Com base em tais atos certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio alguma regra específica, seja porque estarão abrigadas por algum princípio de Direito. Nesses casos, é de se considerar o surgimento de inafastável barreira ao dever de invalidar da Administração, certo que o exercício desse dever provocaria agravos maiores ao Direito do que aceitar a subsistência do ato e de seus efeitos na ordem jurídica. Nota-se, por conseguinte, a prevalência do princípio do interesse público sobre o da legalidade estrita. [45]
Em linhas conclusivas, isso significa dizer que a administração não é obrigada a invalidar todo e qualquer ato viciado, independentemente de qualquer ponderação.
Há situações em que, mesmo diante da exigência de invalidação decorrente do princípio da legalidade, deve-se recorrer a outros princípios, em um exercício de hermenêutica jurídica, uma vez que, ao contrário das normas que são aplicadas ou não, pelo critério do tudo ou nada, os princípios podem ser respeitados ou afastados pela proporcionalidade. Nesse sentido, também é a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
A administração tem, em regra, o dever de anular os atos ilegais, sob pena de cair por terra o princípio da legalidade. No entanto, poderá deixar de fazê-lo, em circunstâncias determinadas, quando o prejuízo resultante da anulação puder ser maior do que o decorrente da manutenção do ato ilegal; nesse caso é o interesse público que norteará a decisão. [46]
Nesta sorte, rompe-se com automatismo, que em nome do princípio da legalidade, obrigava em qualquer hipótese a declaração de nulidade do ato. A própria, Weida Zancaner mesmo compreendendo que o ato de invalidação é um dever, em seu precioso trabalho, lança as chamadas barreiras à invalidação, cuja lição toma-se imprescindível transcrever:
Os limites, ao dever de invalidar, surgem do próprio sistema jurídico-positivo, pois, como todos sabemos, coexiste com o princípio da legalidade outros princípios que devem ser levados em conta quando do estudo da invalidação.
Claro está que o princípio da legalidade é basilar para a atuação administrativa, mas como se disse encartado no ordenamento jurídico, estão outros princípios que devem ser respeitados, ou por se referirem ao Direito como um todo, como, por exemplo, o princípio da segurança jurídica, ou por serem protetores do comum dos cidadãos, como por exemplo, a boa fé, princípio que também visa protegê-lo quando de suas relações como Estado.
Assim, em nome da segurança jurídica, simetricamente ao que referimos quanto à convalidação, o decurso de tempo pode ser, por si mesmo, causa bastante para estabilizar certas situações fazendo-as intocáveis. Isto sucede nos casos em que se costuma falar em prescrição, a qual obstará a invalidação do ato viciado. Por sua vez, o princípio da boa-fé assume importância capital no Direito Administrativo, em razão da presunção da legitimidade dos atos administrativos, presunção esta que só cessa quando esses atos são contestados, o que coloca a Administração Pública em posição sobranceira com relação aos administrados.
Ademais, a multiplicidade das áreas de intervenção do Estado moderno na vida dos cidadãos e a tecnicização da linguagem jurídica tornaram extremamente complexo o caráter regulador do Direito e a verificação da conformidade dos atos concretos e abstratos expedidos pela Administração Pública com o direito posto.
Portanto, a boa-fé dos administrados passou a ter importância imperativa no Estado Intervencionista, constituindo, juntamente com a segurança jurídica, expediente indispensável à distribuição da justiça material. É preciso tomá-la em conta perante situações geradas por atos inválidos.
Com efeito, atos inválidos geram conseqüências jurídicas, pois se não gerassem não haveria qualquer razão para nos preocuparmos com eles. Com base em tais atos certas situações terão sido instauradas e na dinâmica da realidade podem converter-se em situações merecedoras de proteção, seja porque encontrarão em seu apoio alguma regra especifica, seja porque estarão abrigadas por algum princípio de Direito. Estes fatos posteriores à constituição da relação inválida, aliados ao tempo, podem transformar o contexto em que se originou, de modo a que fique vedado à Administração Pública o exercício do dever de invalidar, pois fazê-lo causaria ainda maiores agravos ao Direito, por afrontar à segurança jurídica e à boa-fé.
Donde, nem sempre será necessária a intenção do prazo dito prescricional para que se deva reconhecer a estabilidade de uma dada situação quando fatores outros concorrem para exigi-la. Então, a conjugação do princípio da segurança jurídica com o da boa-fé pode gerar outra barreira ao dever de invalidar. E o que sucederá, uma vez decorrido prazo razoável, perante atos ampliativos de direito dos administrados, nos casos em que haja no ordenamento jurídico alguma regra hábil para proteger a situação e que lhe teria servido de amparo se tivesse sido produzida sem vício.
À vista do exposto pode se dizer que, em princípio, toda vez que nos depararmos com atos inválidos, não passíveis de serem convalidados, a Administração Pública deverá invalidá-los. "Para fazê-lo, entretanto é mister que seu dever de invalidar possa ser exercitado ou, em outras palavras, que o dever de invalidar não esteja obstaculizado por barreiras que o paralisem e transmutem este dever de invalidar em um dever de abster-se".
Em resumo: as barreiras ou limites ao dever de invalidar ou resultam do mero decurso do tempo (a chamada prescrição) ou nos casos em que o ato inválido produziu situação jurídica ampliativa de direito ou concessiva de beneficio ainda não sanada pela completude do prazo dito prescricional, do preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: haver decorrido um certo lapso de tempo desde a instauração da relação viciada; existência de uma regra ou princípio de direito que lhe teria servido de amparo houvesse sido validamente constituída; e boa-fé por parte do beneficiário.
Partindo dessa linha de idéias, não poderemos conceber que haja meramente um poder de invalidar por parte da Administração Pública. Esta, frente a nosso sistema jurídico positivo, ora tem o dever de convalidar ora o dever de invalidar os atos por ela exarados com vício, mas ambos os deveres têm limites, isto é, barreiras impostas pelo próprio ordenamento jurídico, e quando essas barreiras são detectadas descabe à administração Pública convalidar ou invalidar seus atos viciados.
Note-se que a existência das "barreiras" referidas não indica de maneira alguma que a Administração exerça discrição administrativa. Uma coisa é dizer que, em alguns casos, a Administração Pública vê-se frente à mera impossibilidade de invalidar ou convalidar, por razões ditadas pelo próprio sistema jurídico; outra é dizer que ela tem poder de discrição, isto é, que através da utilização de juízo subjetivo chegará à conclusão se deve ou não invalidar, ou deve ou não convalidar seus atos maculados por vícios. [47]