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A flexibilização da pretensão anulatória ex officio dos atos administrativos frente ao princípio da proporcionalidade

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06/01/2012 às 15:13
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É absolutamente possível que se reconheça a existência de outro interesse, tão público como o princípio da legalidade capaz de acobertar a decisão administrativa de manter o ato contaminado por vício de legalidade.

1. INTRODUÇÃO

Constitui este trabalho uma tentativa de enfrentar o dogma da imprescritibilidade da nulidade do ato administrativo eivado de ilegalidade.

Com efeito, assentou-se no direito brasileiro que o princípio da autotutela consubstanciado nas súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal confere à administração pública o dever de invalidar a qualquer tempo os atos ilegais sem consideração de outros matizes já que a autoridade pública está jungidas em toda a sua atuação à estrita observância do basilar princípio da legalidade, inscrito no art. 37 da CF.

Pretende-se no estudo cravado neste trabalho romper com este automatismo, propondo-se a partir da análise do caso concreto e dos valores jurídicos envolvidos, proceder ao balanceamento/ponderação dos interesses em colisão, a fim de encontrar solução que melhor se harmonize com a idéia de justiça: ou a invalidação do ato ou a sua conservação.

Intentar-se-á fazer uma análise, sobretudo à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores, do emprego do princípio da proporcionalidade como critério para solução de conflitos, através de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto. Postula-se que a Administração Pública ao deparar-se com algum ato eivado de ilegalidade, em excepcional circunstância, ao invés de invalidá-lo em homenagem ao axioma da legalidade, deve utilizar-se do princípio da proporcionalidade o qual garante a unidade e a coerência de ponderação axiológica em cada caso concreto.

Em linhas sumárias o que se deseja é demonstrar que é perfeitamente possível postular a aplicação do princípio da proporcionalidade na invalidação ex officio do ato administrativo, a partir da configuração de situações que envolvam conflitos de princípios.

Não se ousa com isso, absolutamente, advogar que o administrador público esteja autorizado a resolver tais conflitos com base em valorações políticas e discricionárias. Pelo contrário, sua conduta deve pautar-se no ordenamento jurídico posto e se apresentar devidamente fundamentada.

Sem dúvida o trabalho propõe um verdadeiro exercício de hermenêutica à mercê da visão da importância dos princípios como instrumento balizador na concretização do direito.

Para um melhor entendimento do exposto acima, faz-se mister deixar assente uma noção acerca dos princípios, revelando-os como valores fundamentais do sistema jurídico ao orientar e condicionar a aplicação do direito, bem como do ato administrativo, desde a sua concepção doutrinária até a possibilidade do seu desfazimento em virtude de vício de legalidade. Nesse tocante, urge-se saber se há por parte da Administração o dever ou a faculdade de anular o ato administrativo constituído sem a necessária observância à lei, ou, ainda, se haverá na espécie escolha discricionária para o administrador.

Ainda, em conexão direta com o tema, se faz necessário uma incursão sobre a influência do tempo nas relações jurídicas afloradas no seio da sociedade, procurando comprovar primeiramente que o tempo, às vezes, consome o direito. Ao lado dessa ilação, procura-se, ainda, demonstrar que não há prescrição, na pretensão anulatória da própria administração invalidar seus atos, e sim decadência.

A par, então, da irradiação do princípio da proporcionalidade desenvolve-se o tema proposto, para, ao final, apresentaremos as conclusões a que o desenvolvimento do assunto inevitavelmente nos conduziu, como conseqüência lógíco-jurídica das premissas assentadas.


2. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE OU DA RAZOABILIDADE

Não se desconhece que o direito é uma criação humana, um fenômeno histórico e cultural concebido como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social [01].

O direito a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre direito e norma e sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civilizatório e as ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade'.

O pós-positivismo marca o início da superação da tradicional distinção entre regras e princípios, à medida que se avança no reconhecimento da densidade normativa de ambos.

Essa era não corresponde a uma volta à escola jusnaturalista, mas sim uma superação do conhecimento técnico convencional para reintroduzir e coordenar as idéias de justiça e legitimidade, reaproximando ética e direito.

As constituições mais recentes relativas ao chamado "Novo Estado de Direito" passaram a se apresentar como observa J. J. Canotilho [02], como "sistemas abertos de regras e princípios. Os princípios impõem otimização, variando sua concretização conforme o condicionalismo fático-jurídico; as regras prescrevem exigências que se cumprem ou não; a convivência dos princípios é conflitual; das regras é antinômica (os princípios coexistem, as regras excluem-se; os princípios permitem o balanceamento de valores e interesses, consoante peso e ponderação de outros princípios; as regras, ao revés obedecem à lógica do tudo ou nada" [03].

De fato, a evolução da teoria material da Constituição faz prevalecer o entendimento de que um sistema de valores é que faz a unidade normativa da Lei Maior de tal forma que, como concluiu Paulo Bonavides, "todo princípio fundamental é norma de normas, e a Constituição é a soma de todos os princípios fundamentais" [04].

Catalisando essa idéia Luis Roberto Barroso afirma que:

A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada no sistema. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isto não impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento. A distinção qualitativa entre regra e princípio é um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos superpositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. (...)

O novo século se inicia fundado na percepção de que o direito é um sistema aberto de valores. A Constituição, por sua vez, é um conjunto de princípios e regras destinados a realizá-los, a despeito de se reconhecer nos valores uma dimensão suprapositrva. [05]

Portanto, o papel dos princípios passa a ser, como aponta Juarez Freitas [06], o de:

(...) critério ou diretriz basilar do sistema jurídico, que se traduz numa disposição hierarquicamente superior, do ponto de vista axiológico, em relação às normas e aos próprios valores, sendo linhas mestras de acordo com as quais se deverá guardar o intérprete quando se defrontar com antinomias jurídicas.

Os princípios são assim condicionantes da interpretação constitucional, porquanto espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. [07]

Em passagem que já se tornou clássica, escreve Celso Antonio Bandeira de Mello:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

(...)

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais. [08]

Todavia, o texto constitucional contém valores expressos nos princípios que podem no caso concreto, conflitar, eis que os mesmos revestem-se do atributo da relatividade. Não há princípio absoluto, como bem observara NORBETO BOBBIO, em feliz exemplo:

Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, execrado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro. Nesses casos que são maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não pode ser estabelecida de uma vez por todas. [09]

Na convivência principiológica, nenhum princípio tem validade absoluta, no sentindo de que possa se impor com sacrifício total do outro. Assim, como instrumento de interpretação, o princípio da proporcionalidade parte da idéia de igual "valor dos bens constitucionais que impede como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens." [10]

Utilizado, de ordinário, para superar as possíveis contradições de valores admitidos pela ordem jurídica o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, "consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, eqüidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito serve de regra de interpretação para todo o ordenamento Jurídico". [11]

O conteúdo significativo do princípio da proporcionalidade revela-se na resolução dos problemas em que surgem aparentes conflitos de princípios, igualmente, habilitados a uma proteção do ordenamento jurídico, cujo deslinde exige métodos legítimos de interpretação e de concretização do direito.

A necessária harmonização dos valores, presentes no ordenamento jurídico, vincula o princípio da proporcionalidade ao Direito Constitucional. Nesse contexto, ele pode ser fundamentado na necessária proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais que decorre do caráter de não definitividade de suas normas, ou no princípio do Estado de Direito, por conter uma exigência de justiça concreta que advém do próprio conceito de justiça e que deve, necessariamente, estar presente na prática judicial, ou ainda, no princípio do devido processo legal, na sua ênfase substantiva". [12]

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A localização do princípio da proporcionalidade no nosso sistema deriva da concretização do princípio do Estado de Direito, dos Direitos Fundamentais e do Devido Processo Legal. Flui do espírito que anima em toda sua extensão e profundidade o §2° do art. 5°, o qual abrange a parte não escrita ou não expressa dos direitos e garantias da Constituição, a saber, aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da natureza do regime, da essência impostergável do Estado de Direito e dos princípios que este consagra e que fazem inviolável a unidade da Constituição. [13]

A intersecção desses princípios constitucionais constitui a sede material do princípio da proporcionalidade.

Nessa trilha, assentou Raquel Denise Stumm que a exigência da observância da proporcionalidade abrange toda a atuação estatal, inclusive a legislativa. Constitui, principalmente após a II Guerra mundial, um imperativo substancial do Estado de Direito, que impõe o "exercício moderado de seu poder". De grande utilização no Estado Social, devido principalmente ao seu caráter intervencionista, visa proteger os direitos individuais do cidadão [14].

Enquanto manifestação do Princípio do Estado de Direito, deve ser o princípio da proporcionalidade, além de material, procedimental, pois deve o Estado de Direito atender ao princípio da unidade e ao da concordância prática ao concretizar o conteúdo da Constituição. A exigência de respeito ao conteúdo constitucional implica no dever que tem o intérprete-aplicador de atender a especificidade (conteúdo, extensão e alcance) própria de cada princípio, (não podendo exigir) o sacrifício unilateral de um princípio em relação aos outros, antes aponta para a harmonia dos mesmos, de forma a obter-se a máxima efetividade de todos eles [15].

É forçoso perceber que os ordenamentos jurídicos são, no entanto, compostos de pontos de diferentes épocas, inspirados por valores diversos. Logo, é preciso ver cada fonte de modo sistemático, em relação ao inteiro ordenamento, tendo em conta, acima de tudo, os valores e princípios fundamentais expressos na Constituição. Por isso, a solução para um caso concreto não pode ser buscada num singular dispositivo legal, mas deve ser encontrada à luz do ordenamento jurídico como um todo.

O conflito entre princípios não se resolve com a supressão de um em favor do outro, no sistema do tudo ou nada utilizado no conflito de regras.

Em palavras de Alexy, resolve-se o conflito estabelecendo, entre os princípios concorrentes, uma relação de precedência condicionada, na qual se diz – sempre diante das peculiaridades do caso - em que condições um princípio prevalece sobre o outro, sendo certo que, noutras circunstâncias, a questão da precedência poderá resolver-se de maneira inversa. [16]

Isto porque, entre os princípios não há uma hierarquia fixada, a preponderância de um princípio sobre outro somente é aferível quando da análise do caso concreto, levando sempre em consideração os deveres de proporcionalidade e razoabilidade, para que a adoção de um princípio não signifique a anulação total do outro.

Assim, não se pode pinçar um normativo constitucional e exigir a sua implementação sem uma análise e interpretação sistemática do dispositivo frente aos demais mandamentos da carta magna, notadamente os seus princípios e os seus fundamentos.

A ponderação de interesses consiste justamente no método utilizado para a resolução destes conflitos constitucionais. No dizer do constitucionalista Daniel Sarmento [17]:

Tal método caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois a variáveis fáticas presentes no problema enfrentado afiguram-se determinante para atribuição do peso específico a cada princípio em confronto, sendo, por conseqüência, essenciais à definição do resultado da ponderação.

A relevância conferida às dimensões fáticas do problema concreto, porém, não pode jamais implicar na desconsideração do dado normativo, que também se revela absolutamente vital para a resolução das tensões entre princípios constitucionais. Afinal, a constituição é antes de tudo norma jurídica, e desprezar sua força normativa é desproteger o cidadão da sua garantia mais fundamental. (...)

Por outro lado, a ponderação de interesses constitucionais não representa uma técnica amorfa e adjetiva, já que está orientada em direção a valores substantivos. Estes valores, que não são criados mas apenas reconhecidos e concretizados pela ordem constitucional (dignidade humana, liberdade, igualdade, segurança, etc. ) guiam o processo de ponderação imprimindo-lhe uma irrecusável dimensão axiológica.

À luz destes ensinamentos, pode-se dizer que diante de interesses contrapostos na Constituição, compete ao operador do direito estudar como solucionar estes conflitos adotando-se o critério da proporcionalidade como permeador do processo de ponderação levando em conta que a Lei Maior é uma (princípio da unidade constitucional) e que cabe ao intérprete harmonizar os conflitos, compatibilizando os interesses reconhecidos no próprio texto da Constituição Federal.

O princípio da proporcionalidade é o que há de mais novo, abrangente e relevante em toda a teoria do constitucionalismo contemporâneo, princípio cuja vocação se move no sentido de compatibilizar a consideração das realidades não captadas pelo formalismo jurídico, ou por este marginalizada com as necessidades atualizadoras de um Direito Constitucional projetado sobre a vida concreta e datado da mais larga esfera possível de incidência fora das regiões teóricas, puramente formais e abstratas [18].


3. O DIREITO E O TEMPO COMO FATO JURÍDICO

O direito sempre se preocupou com o tempo: pensá-lo significa ocupar-se da fugacidade das condutas, da efemeridade dos fatos e da inexorabilidade da linguagem que os cristaliza, por meio das provas jurídicas que propiciam o conhecimento e a manipulação dos acontecimentos relevantes para o direito. Há tempo nos suportes fáticos do direito (...). O tempo consome os fatos e o direito que deles advém. No tempo nascem os fatos; no tempo nasce o direito, no tempo morrem os fatos, pelo tempo o direito extingue o direito. Tal qual Chronos (Saturno), o tempo, implacável devora o direito que de sua seiva surge. [19]

Em texto lapidar sobre a consolidação das relações jurídicas, o insigne mestre Silvio Rodrigues escreveu:

Mister que as relações jurídicas se consolidem no tempo. Há um interesse social em que situações de fato que o tempo consagrou adquiram juridicidade, para que sobre 'a comunidade não paire, indefinidamente, a ameaça de desequilíbrio representada pela demanda. Que esta seja proposta enquanto os contendores contam com elementos de defesa, pois é do interesse da ordem e da paz social liquidar o passado e evitar litígios sobre atos cujos títulos se perderam e cuja lembrança se foi. [20]

ANÍBAL BRUNO em notável magistério consagra a influência do tempo nas relações jurídicas afloradas no seio da sociedade:

O tempo que passa contínuo vai alterando os fatos e com estes as relações jurídicas que neles se apóiam. E o direito, com seu senso realista não pode deixar de atender a essa natural transmutação de coisas (...). Além disso, o fato cometido foi se perdendo no passado, apagando-se os seus sinais físicos e as suas circunstâncias na memória dos homens; escasseiam-se e tornam-se incertas as provas materiais e os testemunhos e assim crescem os riscos de que o juízo que se venha a emitir sobre ele se extravie, com grave perigo para segurança do direito. Umas e outras razões fazem da decadência e da prescrição um fato de reconhecimento jurídico legítimo e necessário. Em todo o caso, um fato que um motivo de interesse público justifica. [21]

Esta influência do tempo, consumindo o direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais, cuja relevância foi destacada por Almiro do Couto e Silva, em texto assim gizado:

(...) um dos temas mais fascinantes do Direito Público neste século é o do crescimento da importância do princípio da segurança jurídica, entendido como princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção da confiança. A ele está visceralmente ligada a exigência de maior estabilidade das situações jurídicas, mesmo daquelas que na origem apresentam vícios de ilegalidade. A segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma das vigas mestras do Estado de Direito. É ela, ao lado da legalidade, um dos sub-princípios integradores do próprio conceito de Estado de Direito. [22]

Com efeito, onde houver ordenamento jurídico, haverá sempre a decadência ou a prescrição, ambos os mecanismos criados pelo sistema normativo para abstração de incertezas à sua positivação, seja mediante a limitação do exercício do próprio direito - decadência - ou da limitação do exercício da ação a ele correspondente - prescrição.

Desse modo, sem nenhuma controvérsia, pacifica a doutrina no sentido de que a decadência consiste na extinção do próprio direito, pelo escoamento do prazo legal estabelecido para seu próprio exercício, assim como a prescrição corresponde à perda da ação judicial para a administração ou para o administrado defender sua pretensão em juízo.

Para uma melhor compreensão dos institutos, distingui-los é necessário. Quem o faz com autoridade é a professora Maria Helena Diniz com arrimo na doutrina do mestre processualista José Manoel de Arruda Alvim Neto, verbis:

A decadência é um prazo estabelecido pela norma para exercício de um direito. Não usado dentro do prazo, ter-se-á a extinção do direito. A prescrição é um prazo dentro do qual se pode ajuizar a ação. Se o não for a ação prescreve, embora o direito desmunido de ação exista, sendo, todavia, em termos práticos, muito difícil prosperar a pretensão. [23]

A Administração Pública, diferentemente do particular em razão do princípio da autotutela, pode rever seus atos sem que precise para tanto acionar o Poder Judiciário, consoante traduz a lição de Alexandre de Moraes:

A Administração Pública tem o dever de zelar pela legalidade, moralidade, e eficiência de seus atos, condutas e decisões, bem como por sua adequação ao interesse público, e pode anulá-los se considerá-los ilegais ou imorais e revogá-los caso entenda que os mesmos são inoportunos e inconvenientes independentemente da atuação do Poder Judiciário. [24]

Nesse viés, cingindo-nos à aplicação desses institutos à Administração Pública, podemos afirmar que a decadência se coloca, em certas situações, como obstáculo à invalidação dos atos administrativos eivados de ilegalidade, em homenagem ao axioma da segurança jurídica.

Assim em se tratando da impossibilidade da administração invalidar, ela própria, seus atos, diante do transcorrer do tempo, estamos diante do instituto da decadência e não da prescrição. O que ocorre em tal situação é o não exercício, em tempo hábil, de um poder-dever da administração anular ex officio seus atos.

É comum autores renomados enunciarem a questão posta como "prescrição" da pretensão anulatória da administração pública, pertinente aos atos administrativos por ela praticados, por ser mais fácil o emprego da analogia com a Lei n° 4.717/65 (Ação Popular).

Por exemplo, Lúcia Val1e de Figueiredo, sustenta a "prescrição quinquenária' da pretensão da administração pública invalidar seus próprios atos administrativos. Diz a eminente administrativista:

O Direito repele, sem dúvida, situações pendentes. Deveras, o instituto da prescrição visa, exatamente, à estabilidade das situações constituídas pelo decurso do tempo. Entretanto será de cinco anos o prazo prescricional para se atacar as relações travadas pela Administração Pública. Não endossamos, pois, com todo respeito pela opinião de outros conceituados autores, o prazo prescricional de vinte anos. Temos afirmado que as situações jamais são de 'mão única '. Assim, como a Administração Pública deve respeitar o prazo prescricional de cinco anos, também entendemos que a invalidação do ato não se possa dar em prazo maior. [25]

Já Celso Antônio Bandeira de Mello, na sua conceituada obra Curso de Direito Administrativo, corrobora nosso pensar, defendendo que in casu está em pauta situação de "decadência" e não de "prescrição". Eis a sua lição:

Em face do que se apontou sobre a diferença entre prescrição e decadência, verifica-se facilmente que a perda da possibilidade de a Administração prover sobre dada matéria em decorrência do transcurso do prazo dentro do qual poderia se manifestar não se assemelha à prescrição. Com efeito, não se trata, como nesta, do não exercício tempestivo de um meio, de uma via, previsto para defesa de um direito que se entenda ameaçado ou violado.

Trata-se, pura e simplesmente, da omissão do tempestivo exercício da própria pretensão substantiva (não adjetiva) da Administração, isto é, de seu dever-poder; logo, o que estará em pauta, in casu, é o não exercício, a bom tempo, do que corresponderia, no Direito Privado, ao próprio exercício do direito. Donde, configura-se situação de decadência, antes que de prescrição.

Isto pode ocorrer tanto em relação ao provimento administrativo inicial relacionado a uma dada situação quanto em relação à possibilidade de reincidir sobre uma dada situação (provimento secundário), para rever anterior decisão, ou seja, revogá-la ou anulá-la.

Nas hipóteses em que se trate de rever uma anterior decisão sua, haver-se-á de entender, caso não haja outro prazo estabelecido, que o prazo decadencial jamais excederá àquele correspondente ao da prescrição da ação judicial de que disporia.
Pois é óbvio que o termo prescrito da ação destina-se precisamente a propiciar a estabilização das situações jurídicas. [26]

Encarando também a questão, a professora Weida Zancaner leciona que:

(...) no Direito Privado a prescrição basta para garantir a segurança jurídica, mas o mesmo não se dá no Direito Público, pois o principio da segurança jurídica só fica resguardado através do instituto da decadência, em se tratando de atos inconvalidáveis, devido ao fato da Administração Pública não precisar valer-se da ação, ao contrário do que se passa com os particulares, para exercitar o seu poder- dever de invalidar. Assim, muito embora a doutrina tenha utilizado o prazo prescricional como forma de sanação dos atos inválidos, este consiste em prazo decadencial, para poder surtir os efeitos em razão dos quais é invocado. [27]

Feitas essas digressões, é fácil concluir que, como a prescrição pressupõe uma ação processual, esta entendida como direito público subjetivo à tutela jurisdicional, à perda da pretensão da administração invalidar os seus atos pelo decurso do tempo aplica-se a decadência e não a praescriptis temporis.

Nessa toada, questão importante que se põe é a relativa ao escoamento do prazo decadencial, aqui entendido como a perda do dever-poder da administração rever os próprios atos.

Serve para o desencadeamento do tema, a doutrina que discute o assunto sob o crivo da prescrição.

A primeira defende a imprescritibilidade da pretensão anulatória da administração pública, cujo fundamento é posto por Régis Fernandes de Oliveira nestas linhas:

De outro lado, com relação ao próprio Poder Público, temos em princípio que não há prazo para que se reconheça a invalidação de qualquer ato, pouco importando se nulo ou anulável. (...) Ao Administrador cabe sempre reconhecer a nulidade de algum ato, desde que praticado com vício, bem como decretar-lhe a nulidade, já que qualquer deles é incompatível com a indisponibilidade do interesse público. (...) Mas não haverá nunca a prescrição. Para o particular, sim, pois assim o estabelece o sistema normativo. Para a administração não. Caber-lhe-á, analisadas as circunstâncias fáticas, escolher se prefere a continuidade dos efeitos materiais do ato ou eliminá-lo. É juízo valorativo da autoridade administrativa, ocorrente por ocasião da decisão. [28]

Na mesma linha, Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Odete Medauar, respectivamente, in verbis:

A regra é a imprescritibilidade fundamental das nulidades (quod nullum est ab initio no potest tracto temporis convalescere), por isso, somente o legislador poderá estabelecer exceções, fixando prazos de prescritibilidade. [29]

Em matéria de anulação também o problema do prazo de que dispõe o poder público para anular seus atos. No direito pátrio, em princípio, o ato administrativo ilegal pode ser anulado em qualquer época. Embora alguns considerem inóqua tal regra, pela pendência da situação, relembre-se que decorre do princípio da legalidade, consagrado pela Constituição Federal. Limitação temporal ao poder de anular deve estar previsto de modo explícito e não presumido ou deduzido de prazos prescricionais fixados para outros âmbitos. Entendimento diverso traz subjacente incentivo à prática de ilegalidade, ante a possibilidade de ser consolidada pela prescrição. [30]

Há, também, juristas que transplantando totalmente a teoria das nulidades do direito privado adotam a prescrição vintenária da pretensão anulatória da Administração. Afirmam estes que os nulos prescrevem longi temporis, ou seja, em vinte anos; e os anuláveis brevi temporis, isto é, em quatro anos. Tal teoria é endossada pelo Mestre Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:

No direito positivo pátrio, conforme interpretação dominante no texto do Código Civil, esse prazo é de 20 anos. Já a outra fica prescrita a curto tempo. Relativamente aos vícios de vontade, pelo decurso de prazo de quatro anos, na conformidade de artigo expresso do Código Civil. [31]

Todavia, parece-nos que tal teoria não é a mais apropriada com o regime de direito público regente das relações administrativas. Ora, se o particular goza do prazo de cinco anos para pedir a invalidação de ato viciado, por que, então, a administração gozaria de prazo quatro vezes maior?

Sem embargo das teorias e fundamentos levantados, o prazo decadencial de que a Administração goza para invalidar atos viciados deve ser de cinco anos, porquanto se deve adotar por analogia o prazo previsto na Lei 9.784/99, que trata do processo administrativo, in verbis:

Art, 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decaí em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovado má-fé.

Ao derredor do efeito do tempo sobre o direito, à luz do árido eixo temático da decadência leva-se à reflexão o papel do instituto sobre o poder-dever da administração anular seus próprios atos.

Para tanto, imprescindível invadir a teoria do ato administrativo que sem dúvida qualquer, compõe o ponto central do Direito Administrativo.

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Sobre a autora
Maria Lídia Soares de Assis

Procuradora do Estado do Acre. Especialista em Direito Constitucional, Tributário e Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS, Maria Lídia Soares. A flexibilização da pretensão anulatória ex officio dos atos administrativos frente ao princípio da proporcionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3110, 6 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20792. Acesso em: 25 abr. 2024.

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