5. A CONVALIDAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO NULO: UMA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPRORCIONALIDADE À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Pertence à tradição do direito administrativo o dogma da imprescritibilidade da nulidade do ato administrativo constituído sem a necessária observação à lei. Impera, até mesmo por fundamento constitucional, a estrita observância da legalidade como princípio determinante do desfazimento do ato inválido, já que este se impõe como dever do agente público sem preponderância de qualquer outro princípio envolvido.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sintetizada nas Súmulas 346 e 473 reconhecem à Administração Pública o poder de decretar a invalidade de seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tomem ilegais. Assim, sintetizam as súmulas 346 e 473, respectivamente:
. A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.Súmula 346
Súmula 473. A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Entretanto, referidas súmulas nada esclarecem sobre a "decadência" da pretensão anulatória de que está investido o Poder Público ou, em se tratando de nulidade absoluta, se tal pretensão seria ilimitada no tempo.
No quadro do procedimento da concretização das normas constitucionais a solução é de procurar harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes. O princípio da proporcionalidade (...) é ummétodo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que a Constituição (essa, sim) seja preservada na maior medida do possível. Tal princípio executa-se "através de umcritério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito"; exige-se que o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros. [48]
Conduzindo a aplicação do princípio da proporcionalidade para a esfera da invalidação do ato administrativo tem-se que a administração pública não pode, como regra geral universalmente verdadeira, anular ex officio seus atos sem limite de tempo ou considerações de matizes outros, suscetíveis de suavizar o rigor lógico da teoria das nulidades dessa particular espécie de atos jurídicos. O poder-dever da administração no tocante à invalidação dos atos administrativos não é absoluto, encontrando, como dito, limites que o tolhem.
Não se desconhece que umdos interesses fundamentais do direito é a estabilidade das relações constituídas. É a pacificação dos vínculos estabelecidos, a fim de se preservar a ordem. Este objetivo importa muito mais no Direito Administrativo do que no Direito Privado. É que os atos administrativos têm repercussões mais amplas, alcançando inúmeros sujeitos, uns direta e outros indiretamente [49].
Por vezes, a situação exige que nem sempre deve o administrador público anular o ato ilegal pelo fato do mesmo contrastar o princípio da legalidade. É necessário sopesar os princípios envolvidos e avaliar a solução justa para o caso conhecido.
Porquanto, a segurança jurídica é princípio às vezes preponderantemente no desate de situação em que o tempo per si consolida direitos. Irrelevar a aplicação do princípio da legalidade da administração pública em determinada soluções que se expirem na tranquilização das relações sociais não quebra o basilar axioma, antes lhe atende o espírito, numa questão de justiça.
A propósito, vale destacar a lição de Almiro do Couto e Silva:
Há hoje pleno reconhecimento de que a noção de Estado de Direito apresenta duas faces. Pode ela, ser apreciada sob o aspecto material ou sob o ângulo formal. No primeiro sentido, os elementos estruturantes do Estado de Direito são as idéias de justiça e de segurança jurídica. No outro, o conceito de Estado de Direito compreende vários componentes, dentre os quais têm importância especial: a) a existência de um sistema de direitos e garantias fundamentais; b) a divisão das funções do Estado, de modo que haja razoável equilíbrío e harmonia entre elas, bem como entre os órgãos que as exercitam, a fim de que o poder estatal seja limitado e contido por 'freios e contrapesos'; c) a legalidade da Administração Pública e, d) a proteção da boa fé ou da confiança que os administrados têm na ação do Estado, quanto à sua correção e conformidade com as leis. [50]
Grafou ainda Couto e Silva, na mesma obra, que:
O Estado de Direito contém, quer no seu aspecto material, quer no formal, elementos aparentes ou realmente antinômicos. Se é antiga a observação de que a justiça e segurança, freqüentemente, se completam, de maneira que pela justiça chega-se à segurança jurídica e vice-versa, é certo que também freqüentemente colocam-se em oposição. Lembre-se, a propósito, o exemplo famoso da prescrição, que ilustra o sacrifício da justiça em favor da segurança jurídica, ou da interrupção da prescrição, com o triunfo da justiça sobre a segurança jurídica. Institutos como o da coisa julgada ou da preclusão processual, impossibilitando definitivamente o reexame dos atos do Estado, ainda que injustos contrários ao Direito ou ilegais, revelam igualmente esse conflito.
Colisões análogas a essas se verificam entre o princípio da legalidade da Administração Pública e o da proteção da boa fé ou da confiança dos administrados que acreditaram na legalidade dos atos administrativos que os favoreceram com vantagens consideradas posteriormente indevidas por ilegais. É que o ordenamento jurídico, conforme as situações, ora dá mais peso e importância à segurança jurídica em detrimento da justiça, ora prescreve de maneira inversa, sobrepondo a justiça à segurança jurídica; ora afirma a preeminência do princípio da legalidade da Administração Pública sobre o da proteção da confiança dos administrados, ora proclama que aquele deve ceder passo a este. [51]
Nessa matéria, o leadingcase é o apreciado pela 1ª Turma do STF no RE 85.179, do Rio de Janeiro, Rel. o Min. Bilac Pinto, que se encaminhou pela impossibilidade do tardio desfazimento do ato administrativo, quando já criada situação de fato e de direito, que o tempo consolidou.
Em seu lapidar voto, o relator apoiado em Miguel Reale e José Frederico Marques ponderou:
Não é admissível, por exemplo, que nomeado irregularmente um servidor público, visto carecer na época, de um dos requisitos complementares exigidos por lei, possa a administração anular seu ato, anos e anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e, mais do que isso, quando a prática e a experiência podem ter compensado a lacuna originária Não me refiro, é claro, a requisitos essenciais, que o tempo não logra por si só convalescer, - como seria, por exemplo, a falta de diploma para ocupar cargo reservado a médico, - mas a exigências outras que, tomadas no seu rigorismo formal, determinariam a nulidade do ato.
Escreve com acerto José Frederico Marques que a subordinação do exercício do poder anulatório a um prazo razoável pode ser considerado requisito implícito no princípio do due process of law. Tal princípio, em verdade, não é válido apenas no sistema do direito norte-americano, do qual é uma das peças basilares, mas é extensível a todos os ordenamentos jurídicos, visto como corresponde a uma tripla exigência, de regularidade de normativa, de economia do meio e formas e de adequação à tipicidade fática. Não obstante a falta de tempo que em nossa linguagem rigorosamente lhe corresponda, poderíamos traduzir due process of law por devida atualização do direito, ficando entendido que haverá infração desse ditame fundamental toda vez que, na prática do ato administrativo, for preterido algum dos momentos essenciais à sua ocorrência; forem destruídas sem motivo plausível, situações de fato, cuja continuidade seja economicamente aconselhável, ou se a decisão não corresponder ao complexo de notas distintivas da realidade social tipicamente configurada em lei.
Assim sendo, se a decretação de nulidade é feita tardiamente, quando a inércia da Administração já permitiu se continuassem situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurda que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de autotutela. Desde o famoso "affaire Chachet", é esta a orientação dominante no direito francês, com os aplausos de Maurice Haurieu, que bem soube pôr em realce os perigos que adviriam para a segurança das relações sociais se houvesse possibilidade de indefinida revisão dos atos administrativos.
Da França tal doutrina passou para a Itália, granjeando o apoio de seus mais ilustres mestres como Cino Vitta e D' Alessio, cuja doutrina é oportunamente lembrada por José Frederico Marques ao tratar deste assunto. Consoante ponderação do primeiro dos administrativistas citados, uma grande distância do tempo, pode parecer oportuno manter o ato em vida, apesar de ilegítimo, a fim de não subverter estados de fato já consolidados, só por apego formal e abstrato ao princípio de legitimidade. Não se olvide que o ordenamento jurídico é conservador no sentido de respeitar fatos ocorridos, há muito tempo, muito embora não conforme à lei. (págs. 84-86)
A flexibilização do princípio da legalidade da Administração Pública se mostra indispensável para resguardar, em certas hipóteses, como interesse público prevalente, a segurança jurídica do ordenamento, de sorte que é absolutamente possível que se reconheça a existência de outro interesse, tão público como o princípio da legalidade, capaz de acobertar a decisão administrativa de manter o ato viciado.
A questão envolve uma típica ponderação de interesses. De um lado, coloca-se o princípio da legalidade e, do outro, as razões de segurança jurídica. A colisão deve ser enfrentada, caso a caso, em favor da preponderância daquele que melhor se coaduna com o interesse público, que é a razão finalística da Administração Pública.
A consagração dessa idéia repele a integral transposição para o Direito Administrativo da Teoria das Invalidades do Direito Privado.
É sabido que, desde o Direito romano, prevalece no Direito privado a regra de que o ato jurídico nulo de pleno direito jamais pode gerar efeitos jurídicos: quod nullum est nullum producit efJectum. Dai se extrai o corolário de que a nulidade absoluta é perpétua. Ela é insuscetível de sanar ou de convalescer. A essas características associam muitos autores a imprescritibilidade da pretensão à decretação de invalidade do ato absolutamente nulo. Em muitas hipóteses o interesse público prevalecente estará precisamente na conservação do ato que nasceu viciado mas que, após, pela omissão do Poder Público em invalidá-lo, por prolongado período de tempo, consolidou nos destinatários a crença firme na legalidade do ato. Alterar esse estado de coisas, sob o pretexto de restabelecer a legalidade, causará mal maior do que preservar o status quo. Ou seja, em tais circunstâncias, no cotejo dos dois subprincípios do Estado de Direito, o da legalidade e o da segurança jurídica, este último prevalece sobre o outro, como imposição da justiça material. Pode-se dizer que é esta a solução que tem sido dada em todo o mundo, com pequenas modificações de país para país. [52]
Assim, mesmo identificando a natureza da anulação do ato administrativo como "dever", tal não confere à Administração Pública o poder ilimitado de, a qualquer tempo, desconstituir seu próprio ato. Isto, pela simples razão de que a conduta administrativa, seja qual for, acha-se sempre condicionada, em sua validade, ao interesse público e ao direito, entendido este como um conjunto de princípios e normas jurídicas.
O Administrador deverá, pois perscrutar o caso concreto, levando em consideração os princípios da legalidade, interesse público e segurança jurídica, para inferir qual o princípio será determinante na invalidação ou na manutenção do ato administrativo viciado. Tal tarefa, no caso concreto, revela-se difícil consecução. Todavia, o eventual conflito de princípios não implica dizer que um deles restará anulado pelo outro, mas sim que um será privilegiado em detrimento do outro, mantendo-se ambos, íntegros em sua validade. [53]
Com esse raciocínio, a questão da invalidação ou manutenção dos efeitos do ato administrativo inválido envolve uma típica ponderação de interesses. De um lado o princípio da legalidade - vetor de toda atividade administrativa, do outro, coloca-se princípios implícitos e explícitos de escalão constitucionais, que poderiam ser atingidos pelos efeitos da decisão do desfazimento do ato administrativo, compreendidos dentro da genérica alusão "razão de segurança jurídica ou de excepcional interesse social".
Contudo, é difícil o manejo dessa construção, conforme observamos em estudo dedicado a esta técnica:
Verificado a colisão de princípios, devem ser impostas restrições recíprocas aos bens jurídicos protegidos por cada princípio, de modo que cada um só sofra as limitações indispensáveis à salvaguarda do outro. A compressão a cada bem jurídico deve ser inversamente proporcional ao peso específico atribuindo ao princípio que o tutela, e diretamente proporcional ao peso conferido ao princípio oposto. [54]
Em outras palavras na ponderação de princípios "o julgador deve buscar um ponto de equilíbrio entre os interesses em jogo que atenda aos seguintes imperativos: a) a restrição a cada um dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro; b) tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do interesse contraposto e c) o beneficio logrado com a restrição a um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico." [55]
E o Direito comporta esse balanceamento. A esse respeito é bastante ideal a lição pioneira destacada da "Luta pelo Direito":
(...) o direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito e na outra a espada de que serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a Justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança. [56]
Bem espelha o raciocínio até aqui engendrado, a decisão do Superior Tribunal de Justiça proferida no Recurso em Mandado de Segurança nº 25.652/PB, de relatoria do Ministro Napoleão Maia Filho, verbis:
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDORES PÚBLICOS QUE ASSUMIRAM CARGOS EFETIVOS SEM PRÉVIO CONCURSO PÚBLICO, APÓS A CF DE 1988. ATOS NULOS. TRANSCURSO DE QUASE 20 ANOS. PRAZO DECADENCIAL DE CINCO ANOS CUMPRIDO, MESMO CONTADO APÓS A LEI 9.784/99, ART. 55. PREPONDERÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.
1. O poder-dever da Administração de invalidar seus próprios atos encontra limite temporal no princípio da segurança jurídica, de índole constitucional, pela evidente razão de que os administrados não podem ficar indefinidamente sujeitos à instabilidade originada da autotutela do Poder Público.
2. O art. 55 da Lei 9.784/99 funda-se na importância da segurança jurídica no domínio do Direito Público, estipulando o prazo decadencial de 5 anos para a revisão dos atos administrativos viciosos e permitindo, a contrario sensu, a manutenção da eficácia dos mesmos, após o transcurso do interregno qüinqüenal, mediante a convalidação ex ope temporis, que tem aplicação excepcional a situações típicas e extremas, assim consideradas aquelas em que avulta grave lesão a direito subjetivo, sendo o seu titular isento de responsabilidade pelo ato eivado de vício.
3. A infringência à legalidade por um ato administrativo, sob o ponto de vista abstrato, sempre será prejudicial ao interesse público; por outro lado, quando analisada em face das circunstâncias do caso concreto, nem sempre sua anulação será a melhor solução. Em face da dinâmica das relações jurídicas sociais, haverá casos em que o próprio interesse da coletividade será melhor atendido com a subsistência do ato nascido de forma irregular.
4. O poder da Administração, dest'arte, não é absoluto, de forma que a recomposição da ordem jurídica violada está condicionada primordialmente ao interesse público. O decurso do tempo, em certos casos, é capaz de tornar a anulação de um ato ilegal claramente prejudicial ao interesse público, finalidade precípua da atividade exercida pela Administração.
5. Cumprir a lei nem que o mundo pereça é uma atitude que não tem mais o abono da Ciência Jurídica, neste tempo em que o espírito da justiça se apóia nos direitos fundamentais da pessoa humana, apontando que a razoabilidade é a medida sempre preferível para se mensurar o acerto ou desacerto de uma solução jurídica.
6. Os atos que efetivaram os ora recorrentes no serviço público da Assembléia Legislativa da Paraíba, sem a prévia aprovação em concurso público e após a vigência da norma prevista no art. 37, II da Constituição Federal, é induvidosamente ilegal, no entanto, o transcurso de quase vinte anos tornou a situação irreversível, convalidando os seus efeitos, em apreço ao postulado da segurança jurídica, máxime se considerando, como neste caso, que alguns dos nomeados até já se aposentaram (4), tendo sido os atos respectivos aprovados pela Corte de Contas Paraibana.
7. A singularidade deste caso o extrema de quaisquer outros e impõe a prevalência do princípio da segurança jurídica na ponderação dos valores em questão (legalidade vs segurança), não se podendo fechar os olhos à realidade e aplicar a norma jurídica como se incidisse em ambiente de absoluta abstratividade.
8. Recurso Ordinário provido, para assegurar o direito dos impetrantes de permanecerem nos seus respectivos cargos nos quadros da Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba e de preservarem as suas aposentadorias.
Enfim, postula-se para as situações consolidadas pelo tempo, cuja origem é o ato administrativo eivado de algum sinal de ilegalidade, a aplicação do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, como preferem alguns doutrinadores, para determinar sua anulação ou sua perpetuação.