I - Considerações introdutórias
Como se sabe, o recurso de embargos de declaração tem cabimento, nos moldes do art. 535, do Código de Processo Civil, para atacar as decisões (termo aqui utilizado em sentido amplo) que contenham ao menos um dos seguintes vícios: obscuridade, contradição ou omissão.
Não obstante existam várias discussões envolvendo o aludido recurso — desde a problemática relativa aos atos judiciais passíveis de serem atacados pela espécie recursal em apreço, até os questionamentos acerca dos efeitos decorrentes da oposição dos embargos de declaração — certo é que, no brevíssimo estudo ora apresentado, nos deteremos, e ainda assim de forma meramente sugestiva ao debate, a uma das hipóteses de cabimento dos aclaratórios, qual seja, a contradição.
Assim é que, analisaremos alguns aspectos ligados ao vício da contradição para, ao final, levantarmos o questionamento acerca da possibilidade (ou não) de se ter a "contradição externa" como elemento capaz de justificar a oposição dos embargos de declaração.
II – A contradição e a oposição de embargos de declaração
Nos termos do art. 5º, IX, da Constituição Federal, todas as decisões judiciais precisam ser fundamentadas, permitindo-se, com isso, não apenas o questionamento do ato pela parte que se sinta prejudicada, mas também a análise adequada da matéria quando do julgamento do recurso pelo órgão ad quem.
Mas, para que a decisão judicial seja devidamente motivada, não basta que o julgador se valha de alguns fundamentos, utilizados para dar suporte ao ato judicial praticado.
Com efeito, é necessário que tais fundamentos sejam coerentes com a conclusão a que chegou o magistrado. É preciso, em outras palavras, que não haja contradição no julgamento, para que a decisão proferida seja clara e compreensível.
Em razão disso, quando a decisão judicial apresentar contradição, mostra-se viável a oposição dos embargos de declaração, cuja finalidade é exatamente esclarecer, integrar, aclarar o ato judicial praticado, para que dele se extraia uma motivação capaz de atender aos ditames constitucionais.
Nesse diapasão, doutrina e jurisprudência são uníssonas em entender que a contradição a que se refere o legislador é aquela verificada no interior do ato praticado.
Trata-se, desse modo, da chamada "contradição interna", sendo ela a única capaz de justificar a oposição dos embargos de declaração, não sendo admitido, por outro lado, a oposição de embargos de declaração quando a contradição se der, por exemplo, entre o que consta do julgado e o que prevê uma determinada legislação; ou ainda, entre o julgado e o pensamento de determinada corrente doutrinária.
Mantendo a linha de raciocínio, haverá contradição passível de ser atacada por embargos de declaração quando, por exemplo, a fundamentação seguir em determinado sentido e o dispositivo, por sua vez, caminhar em sentido contrário. O julgador, suponhamos, utiliza toda a fundamentação para que julgue improcedente o pedido e, ao final, acaba por acolher o pedido autoral. Eis aí uma "contradição interna" que, de forma irrecusável, comporta a oposição de embargos de declaração.
II.1 – Da contradição entre o acórdão e a ementa
Não há qualquer dúvida que o recurso de embargos de declaração tanto pode ser utilizado para atacar os atos praticados pelo juízo de primeiro grau, como também para impugnar aqueles provenientes do tribunal, sejam acórdãos, sejam decisões monocráticas (sendo certo, todavia, que, quando for constatado que os embargos opostos contra a decisão monocrática possuem nítido caráter infringente, deve o recurso ser recebido como agravo interno/"regimental", em atenção ao princípio da fungibilidade, conforme se observa pela reiterada jurisprudência dos tribunais superiores, de onde se extrai, dentre tantos outros casos semelhantes, os EDcl no REsp 991766/RS – 4ª Turma do STJ, relator Min. Luiz Felipe Salomão, julgamento em 06/09/2011, DJe de 13/09/2011).
No entanto, quanto aos embargos opostos em sede de tribunal, vez por outra surge o questionamento acerca do cabimento de declaratórios quando houver contradição entre o acórdão e a ementa do julgamento.
Sobre o ponto, não obstante a existência de julgados em sentido oposto, atualmente tem prevalecido o entendimento (acertado, em nosso sentir) de que a contradição entre a ementa e o acórdão (ou entre a ementa e o voto condutor do acórdão) comporta perfeitamente a oposição de embargos de declaração (vide, a propósito, EDcl no AgRg nos EDcl no REsp 1226551 / DF – 2ª Turma do STJ, relator Min. Humberto Martins, julgamento em 01/09/2011, DJe de 09/09/2011, e ainda, EDcl no AgRg no REsp 1209274 / RJ – 3ª Turma do STJ, relator Min. Sidney Beneti, julgamento em 28/08/2011, DJe de 09/09/2011), por ser considerada uma "contradição interna".
II.2 – A alteração do conteúdo do ato embargado em virtude da remoção da contradição
Como é cediço, os embargos de declaração não se mostram a via adequada para que se alcance a modificação do conteúdo do ato judicial impugnado, razão pela qual não se pode admitir a utilização desse recurso apenas com tal finalidade específica.
Todavia, não pode ser olvidado que a alteração do conteúdo mostra-se possível quando ela decorrer do apontamento, em sede de embargos, de um dos vícios previstos no art. 535, do Código de Processo Civil.
Em outras palavras, nada impede que haja tal alteração no conteúdo, desde que, para tanto, tal efeito modificativo decorra do reconhecimento, pelo julgador, da ocorrência de obscuridade, omissão ou contradição.
Imaginemos, por exemplo, uma ação em que o autor tenha formulado três pedidos e o juiz, na sentença, tenha apreciado apenas dois deles, sendo omisso quanto ao terceiro. Caso, diante da oposição dos embargos, o juiz reconheça o vício e sane a omissão, julgando o pedido que ainda não havia sido apreciado, ter-se-á, por evidente, a alteração do conteúdo da sentença. E, tal modificação mostra-se possível, vez que, repita-se, decorreu do fato de ter sido sanado o vício da omissão.
E o mesmo pode ocorrer quanto à contradição. Assim, nada impede que os embargos tenham efeitos modificativos (ou infringentes) quando houver manifesta disparidade entre os fundamentos e a parte dispositiva do voto embargado (cf., EDcl no REsp 866627/RJ – 2ª Turma do STJ, relator Min. Herman Benjamin, julgamento em 08/04/2008, DJe de 29/08/2008). Noutros termos, para sanar a contradição, é permitido que o julgamento dos embargos de declaração provoque uma modificação na conclusão do julgado, sem que com isso haja qualquer afronta à finalidade de tal espécie recursal.
III – A possibilidade de a "contradição externa" servir de fundamento para a oposição de embargos de declaração
Como visto acima, é ponto bastante tranquilo na doutrina e na jurisprudência que a contradição que permite o cabimento dos embargos de declaração é aquela ocorrida no bojo do ato a ser impugnado, ou seja, é a "contradição interna".
Todavia, parece-nos prudente, ao menos para fins de provocação ao debate, pensarmos na possibilidade de se ter a oposição de embargos de declaração também quando houver a constatação de "contradição externa".
E, nesse particular, levantamos a questão especificamente quanto à eventual existência de contradição entre decisões provenientes do mesmo órgão julgador. Será possível, então, a oposição de embargos de declaração quando, um mesmo julgador, for responsável por julgamentos absolutamente contraditórios entre si? A resposta, segundo pensamos, deve ser positiva.
Sabe-se que o sistema da civil law, adotado Brasil, não tem como um dos seus pilares a utilização de precedentes judiciais com força vinculante.
Todavia, não obstante tal ausência de vinculação dos precedentes — que vem, é certo, sendo flexibilizada em nosso sistema, com a utilização cada vez mais frequente de características da common law, especialmente percebida com as súmulas vinculantes —, é inegável a sua relevância, no direito brasileiro atual, para a solução das demandas futuras.
Busca-se, com isso, a segurança, a previsibilidade no resultado de uma determinada ação.
Diante dessa afirmativa, e dentro dessa linha que, repita-se, tem norteado o atual direito processual civil brasileiro, não é esperado, e nem tampouco desejável, que, diante de um mesmo Tribunal (e, principalmente, diante de um mesmo julgador), situações absolutamente idênticas, sejam tratadas de forma diametralmente opostas.
Imaginemos a seguinte situação: foi realizado um concurso público, com a previsão de 5 vagas para um determinado cargo. Ainda durante o prazo de validade do certame, e tendo sido nomeados e empossados apenas 3 candidatos, o mesmo órgão resolve convocar novo concurso (publicando, para tanto, um novo edital, disponibilizando mais 3 vagas). Diante da flagrante lesão ao direito líquido e certo daqueles aprovados no primeiro concurso, os 2 candidatos preteridos resolveram propor, separadamente, os respectivos mandados de segurança contra o mesmo ato coator. Em primeiro grau, a segurança foi concedida em ambos os mandamus, tendo sido interpostas as respectivas apelações pela mesma pessoa jurídica de direito público. Chegando ao tribunal, por mera coincidência, os recursos são distribuídos para a mesma turma. Suponhamos, por fim, que tenha sido negado provimento a um recurso (mantendo-se, portanto, a sentença e a nomeação e posse de um candidato) e dado provimento ao outro recurso (com a conseqüente reforma da sentença, para que o candidato, já nomeado e empossado, deixasse o cargo).
Tem-se na hipótese, então, o que se poderia chamar de "contradição externa", visto que a fundamentação e o dispositivo de cada apelação, não obstante tenham sido julgadas pela mesma turma e envolvessem demandas idênticas quanto à tese jurídica, foram flagrantemente contraditórios.
Destaque-se que a tese aqui levantada — da "contradição externa" como viabilizadora dos embargos de declaração — leva em consideração o fato de os recursos, envolvendo a mesma situação fática e jurídica, terem sido resolvidos de maneira radicalmente contraditória.
E, segundo pensamos (o que fazemos, vale destacar, diante de uma reflexão inicial), tal contradição, considerando a atual tendência do direito processual brasileiro – de evidente valorização dos precedentes judiciais em prol da previsibilidade dos resultados e, consequentemente, da segurança jurídica – deve possibilitar a oposição dos embargos de declaração, para que o órgão julgador esclareça aos envolvidos no processo o porquê dos posicionamentos conflitantes acerca do mesmo assunto. Tal esclarecimento, segundo nos parece, deve ser assegurado às partes, encartando-se na garantia constitucional de se obter a devida fundamentação dos julgados.
De todo modo, o tema está posto à reflexão.