1. Introdução
Muito se discute em sede de tutela de interesses metaindividuais sob a possível violação do direito ao contraditório e da ampla defesa, seja por meio dos expedientes da coisa julgada ou mesmo pelo fato de a legitimação ser definida pela lei como extraordinária.
Destarte, em nossa visão o que ocorre na realidade é que dada uma tradição individualista do nosso direito positivo, todas as garantias processuais e constitucionais são interpretadas como garantias individuais, no sentido de que seriam respeitadas e garantidas a partir e sempre que esta possibilidade de exercício individualizado da garantia fosse tutelado e observado.
Evidente, que a garantia processual-constitucional do contraditório e da ampla defesa estão firmados em nosso ordenamento como cláusula pétrea, mas tal garantia não deve e não pode ser necessariamente compreendida como garantida e respeitada tão somente a partir de uma garantia do exercício incondicional das razões de forma individualizada pelo sujeito titular do interesse dentro do processo.
Compreendemos como falsa a noção do contraditório e da ampla defesa apenas como um direito e garantia individual. Na realidade se trata sobretudo de um direito e garantia fundamental, como inserido no Título II da CF/88, não podendo ser compreendido apenas e tão somente como um direito individual, mas como uma garantia importante e necessária ao tecido social e que, portanto, pode e deve ser exercido sob parâmetros sociais mais elásticos, desde que atinja o seu escopo de garantir o adequado contraditório e a ampla defesa dos interesses dos membros sociais de forma adequada.
Tanto é assim, que o preceito constitucional em nenhum momento se refere a ser garantido "o direito do individuo e aos acusados em geral ao contraditório e a ampla defesa", como, por exemplo, fez o inciso XI do art. 5o que declina que "a casa é asilo inviolável do indivíduo", mas preceitua:
"Art. 5o. ---omissis --------
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, como os meios e recursos a ela inerentes."
Podemos observar que a lei assegura o contraditório e a ampla defesa aos litigantes e aos acusados em geral. Ora, como sabemos, a noção de litigante está ligada ao conceito de partes adversas no processo, ou seja, daqueles sujeitos legitimados na forma da lei atuar como partes num processo no objetivo e de ver tutelado um interesse.
Perfeitamente possível e compreensível que os meios e recursos inerentes à garantia ao exercício do contraditório e da ampla defesa previstos pelo constituinte sejam garantidos por meio dos métodos e recursos da tutela coletiva, que transforma e possibilita de forma efetiva e não apenas formal que determinados interesses sejam objeto de tutela pelo direito, que de outra forma estariam fora do sistema em verdadeiro buraco negro, onde apesar da sua existência estariam fora do alcance dos seus titulares as proteções contra violações de toda ordem.
Portanto, importa mais à garantia do acesso ao contraditório e ampla defesa previstas constitucionalmente que lhes seja interpretado mais em sentido material do que formal, em que o processo coletivo vem justamente fazer esta ponte e elo, facilitando a inclusão destes conflitos no sistema jurídico. Portanto, há fortes motivações extrajurídicas que irritaram o sistema na adoção desta solução, e seria contraditório vir numa falsa e inadequada valoração do ditame constitucional criar óbices à efetiva tutela dos interesses metaindividuais em prol de uma inadequada garantia formal ao contraditório individual, quando estes interesses individuais serão justamente mais bem tutelados a partir das técnicas do processo coletivo.
Dentro deste patamar, fica claro e nenhum óbice teórico haveria para a lei também estender os efeitos da coisa julgada para além das partes, ou seja, para atingir terceiros, que embora não tenham atuado no processo como autores ou réus, não poderiam em outro processo impugnar a decisão firmada no processo originário, embora sem a sua participação em contraditório, e que o sistema toma a decisão política de colocar a salvo de nova discussão e sem nenhuma válvula de escape.
Mesmo se tratando de situações no limite entre o político e o jurídico, como é o caso dos interesses metaindividuais, resulta lógica a resistência na colocação de limites ao exercício do contraditório e da ampla defesa pelo prisma individual, mas estas podem e devem ser afirmadas, ainda que por meios mais sutis de ampliação e novos contornos, pois as garantias ao contraditório e da ampla defesa previstos constitucionalmente vão além de uma garantia individual, configurando-se meio de garantir materialmente o acesso à justiça.
Evitando, entretanto, um conflito desnecessário, ainda que o nosso legislador constitucional tenha compreendido o contraditório para além de garantia do exercício incondicional das razões individualmente pelo sujeito dentro do processo, mas como uma garantia fundamental, o legislador pátrio criou Curvaturas de respeito ao prisma individual da garantia constitucional do acesso ao contraditório e à ampla defesa, criando novos meios e recursos inerentes a possibilitar o respeito a este, sem, no entanto, restringi-lo a este prisma, o que ficará mais claro quando fizermos o estudo da coisa julgada em sede de interesses metaindividuais.
No entanto, qual o significado das Curvaturas aqui proposto? Significa dizer que existindo determinados fenômenos jurídicos cuja visão externa aparenta ser um fenômeno uno, e possível a sua divisão sem maiores problemas, ao realizar-se este corte ou divisão, observa-se que o fenômeno volta a se produzir por motivos vários, ainda que em menor força e escala, por existirem elementos internos e externos que levam a reprodução deste fenômeno em menor graduação(1).
Fenômeno semelhante ocorre na natureza física e de semelhante forma, guardada as devidas proporções de natureza do objeto, com este conceito que pretendemos construir com simplicidade.
Assim, dentro da ciência física do estado sólido ao explicar o magnetismo, Charles August Coulomb (1736-1806), a partir das observações de Petrus Peregrinus, realizadas em 1269, de que os pólos magnéticos de um imã não podem ser isolados, isto é não existem cargas magnéticas isoladas. Realizou, o cientista, uma construção teórica explicando este fato experimental, onde os fluídos magnéticos são permanentemente presos no interior das moléculas dos corpos magnéticos (imãs), e assim, cada molécula do corpo, possui em qualquer circunstância, igual número de fluidos boreais e austrais, daí a magnetização consistia na separação desses fluídos para extremidades opostas de cada molécula, logo decorre a impossibilidade e separação dos pólos magnéticos de um imã, já que o fenômeno da magnetização era microscópico(2).
No caso do imã em linguagem simples, podemos imaginar que determinado imã de 20 cm enquanto unidade possui dois pólos magnéticos em suas extremidades. Ao homem comum seria simples e aparentemente fácil, dividi-lo em duas partes iguais, onde numa parte ficaria o seu pólo positivo e na outra o pólo negativo do imã, mas em seguida veria o nosso autor que isto não ocorreria, pois na realidade passaria a ter dois novos imãs, cada qual com os seus respectivos pólos magnéticos, ainda que com cargas reduzidas.
De fato, o resultado do experimento não foi aquele esperado pelo nosso pesquisador, pois só considerou para o resultado que pretendia obter aquilo que ele podia ver de imediato do objeto de estudo ou fenômeno, não considerava a interferência na sua pesquisa de elementos que ele não podia ver, mas que estavam ali atuando, no interior do imã, e que ele poderia até suspeitar desta forças microscópicas, mas que ignorou e levou a cabo o seu experimento sem o resultado esperado.
Com este corte demonstramos que a garantia do contraditório e da ampla defesa, existente no nosso ordenamento constitucional, deve ser compreendida como integrada pelo seu pólo individual e pólo social, onde a perfeita distinção entre eles deve ser observada a luz de fenômenos sociais muito fortes e ocultos, onde o individualismo-positivista coloca o primeiro pólo supervalorizado sobre o segundo, e qualquer experimento do legislador deve considerar tais fenômenos microscópicos do organismo social, a fim de obter um resultado mais positivo na proposição a ser feita.
Daí, o legislador nacional ao criar o sistema de tutela coletiva, como veremos a melhor vagar quando da discussão da coisa julgada, embora privilegiando aspectos do respeito ao contraditório e a ampla defesa pelo seu pólo social e de garantia material de acesso à justiça, sem esquecer os elementos microscópicos e intrínsecos a este instituto no que concerne ao aspecto individual, criou determinadas válvulas de escape para que o resultado fosse socialmente mais aceitável, provocando menores repulsa e reações de outros atores sociais contra este novo modelo de tutela.
Mesmo com estas válvulas de escape e criando circuitos próprios para o respeito ao contraditório do ponto de vista individual, ainda vemos muitas e graves resistências ao processo de tutela coletiva. Imagine-se se o nosso legislador tivesse ignorado este fenômeno. Teríamos por certo um resultado da legislação de tutela coletiva ainda mais deficitária e fragilizado por diversos atores sociais do que os atuais resultados da sua aplicação em nosso país.
Devemos compreender que a eficácia da tutela coletiva depende sim de se compreender o direito individual ao contraditório como uma garantia que pode e deve sofrer restrições para que os direitos da maioria e os mais importantes interesses sociais, do ponto de vista de maior espectro social, tenham maior e mais eficaz tutela, até mesmo para o efetivo respeito daqueles e não apenas como uma garantia abstrata e formal. Na realidade, erigir como necessários e indispensáveis em todo o caso o contraditório de forma individualizada é um expediente "lícito", mas não constitucional, como visto, para inviabilizar um contraponto de idéias e atendimento de interesses coletivos do ponto de vista material.
No campo das relações de consumo e outros mais em que cresce a necessidade da presença do Estado como mediador do conflito, ante a fragilidade dos sujeitos individuais lesados em seus interesses, forçoso é firmar a premissa de que não é o número de sujeitos interessados atingidos que lhe retira a natureza de interesse metaindividual, pois ainda que sejam apenas alguns consumidores lesados trata-se efetivamente de um direito básico, por isso que a Lei 8.078/90 no seu art. 1° insere a defesa do consumidor como de ordem pública e interesse social,que pode até não ter um efeito patrimonial imediato, mas força-nos a considerar a potencialidade do dano social caso a conduta perdure de forma injustificada, pois mesmo nesta sociedade de exclusão, ainda existirá um senso mínimo de interesses cuja violação diz respeito a um direito social e coletivo da comunidade, onde devemos inserir a defesa dos consumidores.
A menor ou maior definição dos sujeitos ou da indivisibilidade ou divisibilidade do objeto levará ao enquadramento do interesse como difuso, coletivo ou individual homogêneo, de acordo com a lei, que atua como estrutura de acoplamento e serve o manuseio destes conceitos como meio de inclusão(3) destes interesses no sistema jurídico, e por isso estes não devem e não podem substituir à finalidade do permissivo legal de melhor possibilitar a tutela de tais interesses, que é o que vem ocorrendo em muitos processos, por haver distorção de visão causada pelo paradigma normativista(4) que predomina nos tribunais.
2. LIEBMAN E A DISTINÇÃO ENTRE EFICÁCIA DA SENTENÇA E COISA JULGADA
Coube a Enrico Tullio Liebman apontar a insuficiência das construções teóricas que afirmavam a coisa julgada como um efeito próprio e específico da decisão judicial, como a imposição da verdade da declaração do direito contida na sentença(5). Liebman veio realizar a distinção entre os efeitos ou eficácia natural da sentença e a autoridade da coisa julgada ou simplesmente coisa julgada. Neste sentido lecionou o mestre italiano que:
"Uma coisa é distinguir os efeitos da sentença segundo sua natureza declaratória ou constitutiva, outra é verificar se eles produzem de modo mais ou menos perene e imutável. De fato, todos os efeitos possíveis da sentença (declaratório, constitutivo, executório), podem, de igual modo, imaginar-se, pelo menos em sentido puramente hipotético, produzido independentemente da autoridade da coisa julgada, sem que por isso se lhe desnature a essência. A coisa julgada é qualquer coisa mais que se ajunta para aumentar-lhes a estabilidade e isso vale igualmente para todos os efeitos possíveis da sentença"(6).
Para Liebman, o verdadeiro problema da coisa julgada não consiste na possibilidade maior ou menor de reforma da sentença, mas na eventualidade de uma segunda sentença sobre o mesmo objeto. Pois:
"o verdadeiro problema da coisa julgada, característico e único da atividade jurisdicional: o de que se possa um outro ato da mesma autoridade reexaminar o caso já decidido e julgar de modo diferente, sem infirmar assim a validade do ato precedente, mas criando um conflito entre duas decisões, com todos os seus conhecidos inconvenientes que daí promanam"(7).
Desta lição de Liebman se pode tirar a tradicional afirmativa de que pelo menos em tese são possíveis julgamentos contraditórios, pois o juiz ao proferir uma decisão o faz tendo em vista o que foi posto perante o seu conhecimento.Decidindo este conflito, o seu ato produzirá efeitos e uma vez que outro juízo tenha proferido decisão sobre o mesmo objeto, evidentemente que teríamos um embate entre os efeitos das decisões contraditórias, o que é, por evidente, de todo inconveniente à paz social que pretende a jurisdição obter. Por isso leciona Liebman:
"Assim a eficácia de uma sentença não pode por si só impedir o juiz posterior de investido também ele da plenitude dos poderes exercidos pelo juiz que prolatou a sentença, de reexaminar o caso decidido e julga-lo de modo diferente. Somente uma razão de utilidade política e social – intervém para evitar essa possibilidade tornando o comando imutável quando o processo tenha chegado à sua conclusão, com a preclusão dos recursos contra a sentença nela pronunciada"(8)
Logo, se observa que a eficácia da sentença, ou seja, dos efeitos que o ato estatal produz ao decidir determinado conflito é resultado do comando, quer tenha o fim de declarar, quer tenha o de constituir ou modificar ou determinar uma relação jurídica e existe independentemente da autoridade da coisa julgada.
Este raciocínio lógico permite, pelo menos em tese, considerar que a coisa julgada poderia mesmo não existir. Afinal, não seria essencial para que o ato decisório produzisse os seus efeitos, ou seja, tivesse eficácia(9).
Destaca-se, entre nós, com a sua pena civilista, Pontes de Miranda que relaciona a coisa julgada com a eficácia da sentença, estabelecendo, inclusive gradação de intensidade destes efeitos da sentença para a ocorrência da coisa julgada, assim, leciona "para que a sentença tenha eficácia de coisa julgada material é preciso que a carga de declaratividade seja 5, ou 4, ou, pelo menos 3. Se tem carga de declaratividade inferior a isso não faz coisa julgada material"(10).
Fica evidente a noção de Pontes de Miranda da coisa julgada como um efeito da sentença, inclusive estabelecendo uma carga de intensidade destes efeitos para que se tenha caracterizada a coisa julgada material. Logo, mede pelos efeitos do decisum fora do processo a ocorrência da coisa julgada material.
Considerando a existência autônoma da eficácia da sentença e da autoridade da coisa julgada ou simplesmente coisa julgada, fica fácil compreender a lição de Liebman de que "a coisa julgada nada mais é que essa indiscutibilidade ou imutabilidade da sentença e dos seus efeitos, aquele atributo que qualifica e potencializa a eficácia que a sentença naturalmente produz, segundo a sua própria essência de ato estatal".(11)
A coisa julgada define-se como a especial qualidade que se agrega ao ato estatal decisório, impedindo que o que foi decidido seja discutido novamente no mesmo ou outro processo, e a imutabilidade desta e de seus efeitos. Observe-se, no entanto, que esta imutabilidade dos efeitos não quer dizer que estes irão se produzir ad eternum ou sejam imodificáveis pela sua natural exaustão ou cumprimento, decorrência natural mesma do fato que tudo nesta vida é transitório. Significa que o ato decisório não poderá ser infirmado por todos aqueles que a lei define como no alcance dos limites subjetivos da coisa julgada.
Aliás, Liebman é claro em destacar ao se discutir os limites subjetivos que temos duas questões diversas a observar: da eficácia da sentença a terceiros e da coisa julgada em relação a terceiros.A extensão subjetiva da eficácia da sentença pode ou não coincidir com a da autoridade da coisa julgada. Assim, a sentença produz efeitos para os terceiros, evidentemente conforme a sua menor ou maior proximidade com o objeto decidido entre as partes do processo. O normal é que a coisa julgada se limite às partes do processo(12).
Observamos, que a perspectiva de trabalhar com os conceitos do direito material em sede de processo é que leva brilhantes autores a explicar de forma clara, porém equivocada, a natureza jurídica da coisa julgada como uma eficácia ou efeito da sentença, daí em geral as duras críticas à Teoria de Liebman.
O que se pode concluir da análise de teorias, em que a coisa julgada se confunde com a eficácia da sentença, apesar de mesmo nestas se reconhecer que a sentença, como ato jurídico-estatal, há de produzir efeitos para além das partes, é que trabalhando com as noções do direito material do terceiro, supervalorizam os efeitos da sentença sobre outros sujeitos que não as partes.
Entretanto, o que fica evidente é que, na realidade, mesmo nestes casos, e logicamente trabalhando com o processo individual, os autores são uniformes em afirmar que coisa julgada material só atinge as partes do processo, justamente porque raciocinam que estas estão na lide, pois se faltarem estas, sendo caso de litisconsórcio necessário, temos a extinção do processo sem julgamento do mérito, e não sendo caso deste, o sistema prevê modos de intervenção no processo.
O que nos importa concluir, neste ato, é que a coisa julgada é uma qualidade especial da sentença, atribuída por lei, a fim de que o decisum firmado não possa ser rediscutido em outro processo, conforme os limites subjetivos definidos pelo legislador, que em regra geral, se limita às partes(13). Como regra que é, permite exceção, que é o que faz o CDC, no capítulo IV, quando trata da coisa julgada em ações coletivas, como demonstraremos melhor ao sul deste trabalho.
Importante corolário lógico desta premissa, que limita exatamente a função da coisa julgada, é podermos afirmar que no caso do legislador expressar que determinada sentença tem efeitos ou eficácia ultra partes ou erga omnes, nada mais faz que expressar que pela própria natureza do pedido formulado o ato estatal vai gerar conseqüências para terceiros, ou seja, determinados sujeitos que não foram parte no processo.
Neste diapasão, o natural é que a sentença como ato estatal produza efeitos para além das partes, ainda que o legislador não expresse que ela tem efeitos ultra partes ou erga omnes, atingindo terceiros. Assim, possível é que uma decisão tenha eficácia erga omnes, como no exemplo da decretação de divórcio, sem que a coisa julgada tenha igual extensão, limitando-se esta especial qualidade da sentença como vinculativa apenas dos demandantes ou partes.