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O observatório judiciário de Ronald Dworkin.

O império do Direito e o conceito de integridade

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Agenda 13/01/2012 às 17:52

3 A reação do positivismo

Segundo Herbert Hart (no pós-escrito do livro O conceito de direito), Ronald Dworkin propôs discutir a prática do direito observando a interação de três diferentes teorias jurídicas - o convencionalismo, o pragmatismo e a integridade. Para Dworkin, todas essas teorias são interpretativas, porque funcionam a partir da escolha moral dos operadores do direito, que decidem pelo uso desta e não daquela teoria.

Para o juspositivista Hart, diferentemente, a sua teoria geral do direito é moralmente neutra e não depende, internamente em relação ao sistema jurídico e judiciário, daquilo que os juízes pensem ou pensariam moralmente do lado de fora do sistema.

Desse modo, Hart enfatizou que a sua teoria da prática cotidiana dos profissionais do direito não entra na dimensão moral das leis, mas sim na validade pública que unifica as regras. Não se discute, portanto, no cotidiano acerca dos fundamentos do direito, mas sim a respeito de melhor adequação das normas aos fatos.

Entretanto, admitiu Hart, a divergência que caracteriza a dinâmica do positivismo não será resultado única e exclusivamente das questões semânticas diante dos fatos do passado conforme acusou Dworkin, mas sim produto de uma regra de textura aberta, a regra de reconhecimento, que segundo Hart comunica flexivelmente os critérios que podem ser usados para a identificação das leis que os tribunais devem aplicar.

A partir desse elemento normativo, Hart acusou Dworkin de estar errado quando afirmou que o positivismo moderado é um convencionalismo de fatos históricos do passado, e que, além disso, a teoria positivista preocuparia apenas em encontrar as melhoras palavras ou estrutura lógica de pensamento nos tribunais.

Segundo Hart, a regra de reconhecimento possibilita ao juiz exercer o seu poder criativo ou discricionário. Nessa direção, Hart se contrapôs à teoria de Dworkin afirmando que a teoria deste autor é moralista, enquanto que a teoria moderada do positivismo dele é melhor porque apresenta como ponto forte a realidade prática e também flexível das regras jurídicas.

Por meio das regras, segundo Hart, são definidos os critérios de validade do direito. Desse modo, se usamos este ou aquele princípio essa escolha será autorizada por alguma regra de reconhecimento, de julgamento ou de alteração válida no sistema oficial. E não o contrário, como postulou Dworkin, focalizando os princípios que dominariam, segundo ele, as regras e os critérios.

Indo mais além, Hart enfatizou que ele nunca se esqueceu dos princípios, mas é impossível, segundo o autor, que o sistema seja dominado pelos princípios, pois são estruturas morais, inconcludentes, extensas, genéricas, não específicas e subjetivistas. Nesse aspecto, não haveria mais segurança, nem certeza jurídica.

Hart admitiu que os princípios existem e devem ser reconhecidos e usados, por isso mesmo é que existem as regras de reconhecimento na teoria jurídica positivista. Entretanto, para Dworkin, as regras do convencionalismo se fundamentariam equivocadamente no esquema clássico do tudo ou nada.

Hart rebateu essa definição superficial dizendo que a regra de reconhecimento do seu modelo positivista é flexível, variável, e apresenta uma textura aberta. Nesse ponto, Dworkin está errado, segundo Hart, ao supervalorizar a liberdade dos princípios, pois eles estão sempre subordinados às regras válidas que autorizam ou não a sua presença no cotidiano judiciário.

Em outras palavras, a teoria de Dworkin não conseguiu ser bem sucedida na missão de desqualificar a teoria do positivismo moderado visto que a aceitação dos princípios é algo obviamente necessário e coerente dentro do império do direito positivo. Hart (1994., p. 329) considerou inclusive que:

A principal diferença nesta matéria entre meu ponto de vista e o de Dworkin reside em que, enquanto eu atribuo o acordo geral existente entre os juízes quanto aos critérios de identificação das fontes de direito à sua aceitação partilhada das regras que atribuem tais critérios, Dworkin prefere falar não de regras, mas de consensos, de paradigmas e de precompreensões que os membros da mesma comunidade interpretativa partilham.

Indo mais além, Hart afirmou que existe uma relação importante entre direito e moral, porém, fora do sistema jurídico e judiciário. Segundo ele, "direitos e deveres jurídicos não têm qualquer justificação ou eficácia morais". Por outro lado, Dworkin refutou essa idéia básica, afirmando que os direitos jurídicos "devem ser entendidos como uma espécie de direitos morais" (HART, op. cit., p. 331).

Considerando esse pensamento, Hart (op.cit., p. 332) afirmou que a diferença mais fundamental de sua teoria em relação ao modelo do seu crítico, deve-se ao fato de que "a existência e o conteúdo do direito podem ser identificados por referência às fontes sociais do direito (por exemplo, legislação, decisões judiciais, costumes sociais) sem referência à moral, exceto quando o direito assim identificado tenha ele próprio incorporado critérios morais para a identificação do direito".

Estranhamente para Dworkin (in: HART, 1994, p. 332) as proposições do direito seriam conduzidas pelos princípios morais, sendo que sua teoria interpretativa globalmente holística teria, por isso, uma dupla função: serviria não só para identificar o direito, como também para lhe conferir justificação moral.

Finalmente, considerou Hart (op. cit., p. 335) que o ponto crucial da polêmica com Dworkin diz respeito ao poder de criação do juiz. Segundo Hart, em casos juridicamente não previstos ou não regulados, o juiz cria direito novo e aplica o direito estabelecido que não só confere, mas também restringe os seus poderes de criação do direito.

Entretanto, essa imagem de que existe o direito parcialmente indeterminado ou incompleto, e que o juiz preenche lacunas através do seu poder discricionário, é descartada radicalmente por Dworkin, que considerou ser uma visão enganadora, pois o direito, para ele, seria sempre "completo".

Duas formas populares de criação do direito bastante conhecidas segundo Hart e Bobbio (no livro Teoria do ordenamento jurídico) são a analogia e a interpretação sistêmica. Segundo Hart, particularmente, no uso das analogias podem existir várias soluções concorrentes. Entretanto, os juízes não jogam fora os seus manuais, nem a história legislativa e judiciária neste momento crítico: "eles inventam direito novo, embora em conformidade com os princípios ou razões subjacentes, reconhecidas como tendo já uma base no direito existente" (HART, 1994, p. 337).

Para Dworkin, a "imagem criada pelos positivistas", segundo Hart, é que seria infelizmente incompleta. Nesse sentido, para Dworkin o juiz nunca teria oportunidade de sair do ordinário e de exercer o poder de criação [aqui é justo salientar para o leitor que para Dworkin o poder criativo é algo ordinário e elementar sempre, e não extraordinário diante da lacuna conforme problematiza Herbert Hart neste parágrafo. Em outras palavras, enquanto para Hart o juiz aparece como sujeito autônomo apenas quando falha o direito, para Dworkin, radicalmente, o juiz é sempre um sujeito na rotina judiciária; além disso, para Dworkin o direito nunca falha, o que realmente falham são as interpretações do direito].


4 Reorganização programática do livro O império do direito

A tecnologia observacional da integridade fabricada pelo autor Ronald Dworkin apresenta seis tipos de peças na sua estrutura epistemológica: ontologia, metodologia, axiologia, teoria, práxis e sociologia das ideias (conforme o modelo sintético de MONTARROYOS, 2006; 2009; 2010, baseado, por sua vez, em LLOYD, 1995; e CHIAPPIN, 1996).

Em primeiro lugar, a ontologia declara o que é essencial e irrefutável na atividade do pesquisador. Na concepção do físico Imre Lakatos, por exemplo, a ontologia seria o núcleo rígido do sistema programático como um todo (MONTARROYOS, 2006; CHIAPPIN, 1996). Para o historiador Christopher Lloyd (1995, p. 47), de outro modo, na ontologia encontramos os problemas filosóficos centrais do sistema que dizem respeito a questões sobre a existência e a interpretação do objeto de estudo na prática.

Em segundo lugar, na categoria metodológica da integridade encontramos os métodos e as técnicas de obtenção do conhecimento aplicado. A metodologia pressupõe que não existe conhecimento social neutro principalmente quando são estipulados os caminhos que podem ser ou não trilhados pelo pesquisador.

Em terceiro lugar, a axiologia formaliza os valores, desvalores e contravalores que são estruturas construtivas do conhecimento [e nunca "ruídos"] encontrados regularmente na prática do cientista social. A inclusão da categoria axiológica em nosso modelo não representa nada do que postulam os positivistas, os físicos e matemáticos em geral acerca da neutralidade do observador como se isto fosse uma virtude metodológica ideal a ser perseguida dentro de um suposto laboratório de pesquisa antropológica ou jurídica.

Na sequência das categorias, em quarto lugar, encontramos a categoria teórica oficializando o discurso interpretativo ou explicativo do pesquisador a respeito da identidade do seu objeto de estudo, apresentando neste caso uma linguagem generalizante, transcendente e afirmativa do conhecimento científico. Aqui novamente nos afastamos do modelo do físico e matemático Imre Lakatos, e optamos por incluir o que afirmou o filósofo Michel Foucault, na sua obra Microfísica do Poder, considerando pontualmente que o discurso é uma prática social constituída de verdade, poder e saber.

Em quinto lugar, na categoria praticológica aparecem os modelos de ação do programa de pesquisa que orientam e protegem o pesquisador no sentido de que ele não se perca no "oceano de anomalias" da realidade, conforme propôs, oportunamente, a heurística positiva do físico Imre Lakatos. Na heurística positiva, particularmente, encontramos pistas ou sugestões de como o cientista pode ser criativo em suas análises sem perder o controle sobre os dados empíricos que foram coletados metodologicamente pela heurística negativa do modelo programático inventado por esse mesmo autor (ver LAKATOS in: MONTARROYOS, 2006; CHIAPPIN, 1996; LLOYD, 1995).

Por último, a categoria contextual reorganiza os elementos históricos e sociológicos do programa de pesquisa como sendo duas dimensões fundamentais do entendimento humano, diferentemente, no entanto, do que sugeriu o modelo programático do físico Imre Lakatos, que fixou na "parte externa" do programa de pesquisa a interferência dos modismos, biografias, ideologias, história social, da cultura e do sistema político vigente, considerando que todos eles seriam elementos estranhos ou desestabilizadores do conhecimento científico. Abraçando esse tipo postura, Lakatos considerou a interferência desses elementos sociais ou ruídos como sendo forças não lógicas e algumas vezes destruidoras do conhecimento científico, citando inclusive em seu livro Metodologia do programa científico de pesquisa a interferência degenerativa dos governos socialistas sobre o destino de certos programas de pesquisa, sem admitir, igualmente, o que ocorria de arbitrário na maioria dos governos capitalistas de sua época durante a Guerra Fria (MONTARROYOS, 2006).

A tecnologia observacional da integridade - ou programa de pesquisa - estuda "o modo como os juízes decidem casos" (DWORKIN, 2007, p. 3). Nesse sentido, aborda os processos judiciais na tentativa de revelar a importância que o argumento do juiz exerce na prática do Poder Judiciário. No cotidiano, segundo Dworkin, "as pessoas frequentemente se vêem na iminência de ganhar ou perder muito mais em decorrência do aceno da cabeça do juiz do que de qualquer norma geral que provenha do legislativo" (ibid., p 3).

Os processos judiciais são investigados neste programa de pesquisa incluindo a dimensão moral do direito onde existe um "risco permanente de uma forma inequívoca de injustiça pública". O juiz deve decidir não somente sobre "alguém vai ter o quê", mas sobre "quem agiu bem", corretamente, com "responsabilidade de cidadão" ou exagerou nos seus interesses prejudicando a comunidade. Esse fato moral é sempre encontrado, de algum modo, na história do direito. Por exemplo, no século XIX, is juízes ingleses declararam que o operário de uma fábrica não podia exigir indenização judicial de seu patrão se tivesse sido lesado devido à negligência de outro operário. Afirmavam que um trabalhador "assume" o risco da imprudência de seus "companheiros de trabalho" e que, de qualquer modo, o trabalhador sabe melhor que seu empregador quem são os operários imprudentes e talvez tenha mais influência sobre eles. (ibid., p. 5).

O programa de pesquisa da integridade considera importante estudar o modo como os juízes decidem as causas judiciais e nessa perspectiva de trabalho procura conhecer o que os juízes pensam sobre o que é o direito e também por que eles divergem tanto sobre esse assunto (ibid., p. 5). A divergência empírica acontece porque existem questões de fato, de direito e de moral fazendo parte da atividade de juízes e advogados.

Os juízes e advogados podem concordar sobre uma determinada proposição sobre os fundamentos do direito, porém, divergem ao questionarem se o caso concreto se enquadra perfeitamente bem a esses fundamentos elencados. Existem divergências empíricas sobre a veracidade dos fatos e também divergências teóricas sobre os postulados do direito e sua devida adequação ao caso concreto.

Curiosamente, o público não se preocupa com a divergência teórica, pois sua preocupação é voltada para a questão da fidelidade. Por isso, aqueles juízes que supostamente inventem direitos são considerados tiranos.

Na verdade, para Dworkin, a crença nessa visão de que o direito é uma questão de fatos e não de interpretações, desde já aponta que existe uma divergência teórica sobre o que realmente é o direito (ibid., p. 9). Nesse caso, existe uma crença no objetivismo da prática judicial que é contestável por outras teorias, sobretudo hermenêuticas.

Diante dessas considerações, o programa de pesquisa da integridade procura estudar a divergência teórica dentro do direito. Seu objetivo é compreender de que tipo de divergência se trata e então, logo depois, procura criar e defender uma teoria particular sobre os fundamentos apropriados do direito. Consequentemente, estaremos interessados em saber por que motivo um júri decide que o trabalhador tem ou não direito em certos casos, e também por que outros juízes decidem diferentemente o mesmo caso.

Outra limitação importante do programa de pesquisa da integridade é que ele aborda exclusivamente a decisão judicial através dos juízes togados, embora eles não sejam os únicos protagonistas do drama jurídico, nem mesmo os mais importantes. Nosso estudo vai levar em consideração os legisladores, diretores de escola, gerentes, líderes sindicais, e tantos outros atores sociais, entretanto, no final, admitimos que as decisões judiciais afetam os direitos jurídicos dos seus concidadãos. Também não estamos interessados em descobrir a consciência de classe ou as inclinações econômicas dos juízes a favor do capitalismo. Consideramos, particularmente, que o direito é um fenômeno social, e sua complexidade deve ser percebida como sendo uma prática argumentativa e que, portanto, suas proposições só ganham sentido quando passam pela discussão de seus fundamentos na comunidade como um todo.

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Muitos estudiosos têm procurado encontrar definir o direito como fenômeno histórico ou sociológico, para nós, o que interessa é a estrutura do argumento jurídico (ibid., p. 18). Por isso, nosso programa de pesquisa vai adotar um ponto de vista interno do participante - sua subjetividade. Concretamente, estudaremos o argumento jurídico formal a partir do ponto de vista do juiz, não apenas porque os juízes são importantes, ou porque podemos compreendê-los totalmente se prestarmos atenção ao que eles dizem, mas justamente porque o argumento jurídico nos processos judiciais é um paradigma para a exploração do aspecto central e proposicional da prática jurídica (ibid., p. 19)

4.1 Definição ontológica: a prática do direito é argumentativa (DWORKIN, 2007, p. 17)

O programa de pesquisa da integridade estuda os processos judiciais, onde se pode notar o modo de conceber o direito e a divergência entre os profissionais do Poder Judiciário. Concretamente, este programa de pesquisa pretende desenvolver uma nova teoria sintética sobre os fundamentos do direito onde as divergências acontecem geralmente por questões de fato, de direito e de moral. As questões de fato têm a ver com a verdadeira dimensão do acontecido; as de direito têm a ver com a pertinência ou ligação com as leis, e as de moral, têm a ver com a opinião ou juízo de convicção do juiz quando ele acredita que está fazendo justiça.

Diante da complexidade e da instabilidade decorrente das opiniões, Dworkin apontou um fato de natureza hermenêutica nos seguintes termos: existem reformulações constantes, relatos daquilo que o direito já é. Existem os realistas, empiristas, positivistas, naturalistas, intuicionistas, todos eles estabelecendo um determinado modo de produção das proposições jurídicas.

No programa de pesquisa da integridade, considera-se que o direito é um fenômeno social e que ele se manifesta através da prática argumentativa, cujas verdades só ganham sentido através do debate, discussão. Por isso, o direito deve ser estudado do ponto de vista histórico e atual. Será priorizada, consequentemente, neste programa de pesquisa a decisão judicial porque ela mostra o que os especialistas da lei pensam sobre o que é o direito ontem e hoje. Na concepção hermenêutica, os juízes discordam sobre o sentido da lei que, por sua vez, reflete a teoria jurídica preferencial de cada um.

Particularmente, consideramos que o texto jurídico fala, porém, cada teoria tem um modo de extrair ou comunicar essa fala para o mundo. Encontramos autores que acreditam no poder textual da lei pela lei; autores que admitem que a lei faz parte de um contexto jurídico e judiciário mais amplo; e autores que acreditam que a intuição pessoal fala mais alto, causando assim uma enorme imprevisibilidade nos resultados institucionais.

4.2 Definição metodológica: a interpretação criativa do direito não é conversacional, mas construtiva como acontece na critica literária A interpretação das obras de artes e das práticas sociais se preocupa essencialmente com o propósito, não com a causa (DWORKIN, 2007, p. 63)

O método de trabalho - hermenêutico - determina que o pesquisador tenha uma atitude interpretativa sobre a divergência das práticas sociais, entretanto, não se pode ficar limitado a uma visão individualista nem holística. O pesquisador deve buscar uma correlação ou integração entre sujeitos e objetos, entre indivíduos e estruturas sociais. Nessa direção, o pesquisador deve considerar que seu trabalho não é neutro, visto que valor e conteúdo se misturam e se confundem.

Na hermenêutica em geral, não existem objetos, mas na verdade tudo é sujeito porque fala, inclusive o texto jurídico. Por isso mesmo o trabalho do pesquisador é dialógico, conversacional.

Entretanto, essa conversação não busca descobrir as intenções dos legisladores ou dos autores das obras no passado. Indo mais além, cada um de nós impõe um sentido, um propósito na releitura atual do direito nessa conversa, uma adaptação.

Consequentemente, temos de falar aqui de uma combinação do aspecto individual com o institucional cujo resultado integrativo gera coletivamente uma comunidade ou cultura de princípios.

Para descrever essa dinâmica, o modelo da arte é oportuno. Não se busca saber apenas o que o autor da obra quis dizer no passado, mas atribuímos à sua obra novos sentidos, significados; ou seja, nos apropriamos dela positivamente para falar de muitas outras coisas que o autor do passado nem sequer imaginou. Em outras palavras: a interpretação criativa é um caso de interação entre propósito e objeto. É produto da correlação de duas categorias: sujeito e objeto.

O ponto básico dessa metodologia crítica parte da premissa de que os indivíduos, juízes e pesquisadores apresentam preferências, opiniões, interesses e convicções diversas.

Uma interpretação, acima de tudo, é um relato de um propósito e segue um paradigma ou modelo de como se lê, pensa, ou mesmo de como se seleciona um detalhe e não outro. O desafio teórico-metodológico da interpretação é reconstruir a tradição interpretativa que se forma e que se mantém viva no tempo e no espaço jurídico e judiciário.

A grande questão é saber até onde pode ser verdadeira e fiel a interpretação de uma obra. E aquilo que for respondido neste sentido aceitará a ideia de que o processo crítico é construtivo especificamente quando maximiza tanto o potencial da obra como a expressão do crítico do momento.

De fato, as divergências e as diferentes abordagens serão comuns, porém, para se estabelecer um diálogo hipotético ou mesmo real entre elas devemos partir do pressuposto de que falam a mesma língua, usam os mesmos recursos jurídicos e institucionais, os mesmos materiais e a mesma fonte literária. Tudo isso é condição básica para se delimitar o ambiente inicial da conversação.

Segundo Dworkin, precisamos refinar a interpretação construtiva transformando esse método num instrumento apropriado ao estudo do direito enquanto prática social. Para se desenvolver esse método existem três etapas fundamentais: pré-interpretativa, interpretativa e pós-interpretativa.

Na fase pré-intepretativa são identificadas as regras e os padrões que fornecerão o conteúdo ou limite experimental da prática interpretativa. Na interpretação de obras literárias a etapa equivalente seria aquela em que são identificados textualmente os romances, peças teatrais, etc., constituindo, por exemplo, a etapa na qual o texto Moby Dick é identificado e diferenciado do texto de outros romances. Esse procedimento é "pré-interpretativo" entre aspas porque mesmo nessa etapa de mapeamento se faz necessário algum tipo de interpretação porque precisamos estabelecer um rótulo ou esquema classificatório anterior ao material, caso contrário, ficamos perdidos no emaranhado das informações empíricas.

Em segundo lugar, deve haver uma fase interpretativa em que o intérprete se concentre numa justificativa geral para os principais elementos da prática e do material identificados na etapa anterior. Isso vai resultar numa argumentação sobre a conveniência, ou não, de se de buscar algum tipo de prática interpretativa inovadora. A justificativa não precisa se ajustar a todos os aspectos ou características da prática estabelecida anteriormente na comunidade dos críticos, mas deve ajustar-se o suficiente para que o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa prática, não como alguém que inventa uma nova prática necessariamente a partir do nada.

Por último, deve haver uma fase pós-intepretativa ou reformuladora - ou sintética - quando o crítico ajusta ou adequa sua idéia com a prática interpretativa objetivando melhor servir à justificativa que foi declarada na fase anterior.

4.3 Definição axiológica: nem regras, nem critérios

O convencionalismo jurídico faz duas afirmações pós-interpretativas. A primeira é positiva: os juízes devem respeitar as convenções jurídicas em vigor na sua comunidade, e não em raras circunstâncias. Insiste em outras palavras, que os juízes devem tratar como direito aquilo que a convenção estipula como tal. Uma vez que a convenção na Grã-Bretanha, por exemplo, estabelece que as leis do Parlamento são direito, assim, um juiz britânico deve aplicar até mesmo as leis do Parlamento que considerar injustas ou insensatas. Esse aspecto positivo do convencionalismo corresponde plenamente ao lema popular que diz que os juízes devem seguir o direito e não substitui-lo por um novo direito.

A segunda afirmação é negativa. Declara que não existe direito - nenhum direito decorrente de decisões tomadas no passado - a não ser aquele que é extraído de tais decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de convenção e que, portanto, em alguns casos não existe direito algum. Não existem direitos sobre danos morais, por exemplo, se nunca se decidiu este problema por meio de nenhuma lei precedente ou por qualquer outro procedimento especificado por convenção, que as pessoas têm ou não direito a indenização por danos morais. Não se segue daí que os juízes confrontados com tal problema devam cruzar os braços e mandar as partes para casa sem propor alguma decisão. Esse é o tipo de caso em que os juízes devem exercitar o poder discricionário usando padrões extrajurídicos para fazer o que o convencionalismo considera ser um novo direito. Depois em casos futuros, a convenção do precedente transformará esse novo direito em direito antigo ou convencional (DWORKIN, 2007, p. 144-45).

O convencionalismo defende a autoridade da convenção ao insistir em que as práticas convencionais estabelecem tanto o fim quanto o princípio do poder do passado sobre o presente. Insiste em que o passado não concede nenhum direito sustentável diante de um tribunal, salvo quando for incontestavelmente aquilo que todos sabem e esperam. Se a convenção for omissa, não existe direito; e a força dessa afirmação negativa está exatamente no fato de que os juízes não devem fingir que suas decisões decorrem de algum modo daquilo que já foi decidido (ibid., p. 146).

Em situações limites, o juiz deve decidir de um modo que envolva o mínimo possível suas convicções políticas ou morais, e atribua nesse sentido a máxima deferência possível para com as instituições convencionalmente habilitadas a criar o direito. Uma vez que se deixe claro que o juiz cria novo direito sob tais circunstâncias, como insiste o convencionalismo, parece plausível que ele escolherá uma regra que ele acredita, ou então a intenção da legislatura de sua época, ou não sendo isso possível, escolherá a regra que em sua opinião melhor representa a vontade do povo como um todo (ibid., p. 147).

O convencionalismo é uma concepção ou interpretação da prática e da tradição jurídicas e judiciárias. Se não pudermos encontrar as convenções jurídicas especiais que o convencionalismo requer, essa teoria estará derrotada tanto em suas afirmações interpretativas quanto em suas instruções pós-interpretativas voltadas para o futuro (ibid., p. 148).

Segundo Ronald Dworkin, o convencionalismo fracassa na reconstrução da totalidade constitucional porque os juízes dedicam mais atenção às chamadas fontes convencionais do direito, como as leis e os precedentes. O juiz convencionalista que exerce seu poder discricionário deve estar particularmente atento a esse risco, pois seu poder de alterar o direito já existente é bastante limitado (ibid., p. 162). Por outro lado, não podemos ignorar que para muitos adeptos a virtude do convencionalismo é a sua capacidade de reduzir incertezas, muito embora segundo Dworkin, a surpresa nem sempre seja algo injusto. Essa virtude tem a ver com o fato de que a incerteza "é ineficaz, impõe riscos desnecessários, assusta as pessoas, e não é do interesse geral" (ibid., p. 173). O convencionalismo busca o equilíbrio entre previsibilidade e flexibilidade, porém, o critério usado é absolutamente respeitar as decisões explícitas tomadas no passado pelas instituições políticas e judiciárias.

Em outra direção, o pragmatismo jurídico adota uma atitude cética em relação às regras e práticas do passado, alegando que o passado não oferece qualquer justificativa útil para o uso ou não do poder coercitivo do Estado (ibid., p. 185). O juiz pragmático encontra suas justificativas na eficiência ou em alguma outra virtude contemporânea da própria decisão coercitiva; e justifica que a coerência com qualquer decisão anterior não contribui para a justiça ou a virtude de qualquer decisão atual. Pensando dessa forma, o trabalho dos juízes tornará o futuro da comunidade mais promissor, "liberado da mão morta do passado e do fetiche da coerência pela coerência" (ibid., p. 185).

O pragmatismo não recomenda aplicar alguma noção de boa comunidade como um todo, entretanto, estimula os juízes a decidirem e a agirem segundo seus próprios pontos de vista.

O convencionalismo, diferentemente, apresenta uma teoria positiva não cética em relação ao passado, visto que suas pretensões jurídicas são extraídas a partir das decisões tomadas na tradição.

Já o pragmatismo nega que as pessoas têm quaisquer direitos concretos pré-fabricados; e adota o ponto de vista de que as pessoas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade, ou porque alguma legislação assim o estabeleceu, ou porque alguma longa fileira de juízes decidiu que outras pessoas tenham determinado direito concreto baseado na experiência do passado.

Na sua dinâmica, o pragmatismo deve agir às vezes como se as pessoas tivessem direitos, mas é cada juiz quem vai decidir a concretude dos direitos e deveres. O pragmatismo, segundo Dworkin, "trata-se de uma concepção de direito mais poderosa e persuasiva do que o convencionalismo e um desafio mais forte ao direito como completeza" (ibid., p. 189).

Direito como completeza que caracteriza a teoria da integridade é "uma teoria não cética das pretensões juridicamente protegidas através da garantida dos princípios que proporcionam a melhor justificativa da prática jurídica como um todo" (ibid., p. 186).

O desafio do pragmático é encontrar o equilíbrio entre a previsibilidade institucional e a flexibilidade dos acontecimentos. O pragmatismo inclui em sua lista de direitos o princípio do "como se" que faz parte do direito abstrato; porém, não se sente obrigado a fazer cumprir todos os direitos conferidos por todas as leis. Seu critério pessoal de leitura vai observar o que é útil na coordenação atual do comportamento social. Ou seja, pode excluir leis que sejam muito antigas.

O pragmatismo é uma concepção cética do direito rejeitando a existência de pretensões juridicamente tuteladas genuínas. Não rejeita, propriamente, a moral, nem mesmo as pretensões políticas e morais. Afirma, no entanto, que para decidir os casos judiciais, os juízes devem seguir qualquer método que produza aquilo que acreditam ser a melhor comunidade futura; para alguns, significa uma comunidade mais rica, mais feliz, mais poderosa; para outros, uma comunidade com menos injustiças e com aquilo que chamamos de alta qualidade de vida (ibid., p. 195).

O pragmatismo não exclui teorias sobre o que torna a comunidade melhor. Mas evita o dogmatismo e a tutela dessas teorias. Nessa direção, os direitos não estão prontos na lei, portanto "aquilo que chamamos de direitos atribuídos a uma pessoa são apenas os auxiliares do melhor futuro; são instrumentos que construímos para esse fim e não possuem força ou fundamento independentes" (ibid., p. 195).

O pragmático pensa que os juízes deveriam sempre fazer o melhor possível para o futuro, em circunstâncias dadas, desobrigados de qualquer necessidade de respeitar ou assegurar a coerência de princípio com aquilo que outras autoridades públicas fizeram ou farão.

O pragmático dará toda a atenção ao passado exigida por uma boa estratégia. Aceita os direitos abstratos da lei. Entretanto, nos casos difíceis, exclui leis ultrapassadas, ou quando são, em sua avaliação, as leis ou precedentes judiciais injustos e ineficientes. Rejeita também os princípios que foram observados ou não por outros juízes anteriormente. Sua preocupação é com a eficiência e a justiça. Suas opiniões giram em torno da preocupação sobre qual decisão será menos ineficiente ou que reduzirá, ao mínimo, a ocorrência de injustiça dentro de um modelo argumentativo com alta dosagem de individualismo.

4.4 Definição teórica: o princípio da integridade é uma virtude política

No trato cotidiano, desejamos naturalmente que nossos vizinhos se comportem de modo que consideramos correto, mas sabemos que, até certo ponto, as pessoas divergem quanto aos princípios corretos de comportamento. Na política, por exemplo, a integridade é um ideal quando exigimos o mesmo comportamento do Estado ou da comunidade concebidos como agentes morais. Tanto no caso individual como no político, admitimos a possibilidade de reconhecer que os atos das outras pessoas expressem uma concepção de equidade, justiça ou decência, mesmo quando nós mesmos muitas vezes não endossemos tal concepção.

O sentimento moral é uma parte importante da nossa capacidade mais geral de tratar os outros com respeito, sendo, portanto, um requisito prévio de civilização. Diferentes exigências encontradas no cotidiano justificam o compromisso que devemos ter com a coerência de princípios.

O primeiro princípio prático solicita que a integridade na legislação crie direitos mantendo coerência quanto aos princípios magnos; o segundo princípio prático pede às pessoas responsáveis por decidir o que é a lei que a vejam e a façam cumprir como sendo igualmente coerentes nesse sentido. Aqui, curiosamente a integridade valoriza o passado mais que o pragmatista.

A integridade explica porque os juízes devem conceber o corpo do direito que administram como um todo e não como um amontoado de departamentos ou uma série de decisões distintas ou arbitrárias de indivíduos livres, que usam ou trocam uma lei por outra refletindo seus interesses estratégicos ou conveniências particulares sem se preocupar com o restante da comunidade e com a estrutura constitucional.

O princípio da integridade pressupõe a existência de uma comunidade personificada na figura do Estado e admite deste modo que o Estado pode, indiretamente através de seus funcionários públicos, se engajar nos princípios de equidade, justiça e devido processo legal adjetivo, de forma análoga às pessoas físicas que se engajam em favor de suas convicções, ideais ou projetos pessoais.

O modelo de Dworkin assume a personificação da comunidade, distinta do seus indivíduos particulares, dos seres reais, os cidadãos. Pior ainda, diz o autor, sua concepção atribui influência e responsabilidades morais ao Estado. Quando Dworkin declarou que uma comunidade é fiel a seus próprios princípios, ele não se referiu à sua moral convencional ou popular, às crenças e convicções da maioria dos cidadãos; na verdade, o que o autor quis dizer é que a comunidade tem seus próprios princípios e pode honrar ou desonrá-los; ou então que pode agir de boa ou ma fé, com integridade ou de maneira hipócrita, assim como o fazem as pessoas no dia a dia.

Dworkin perguntou nesse sentido: "posso mesmo atribuir um poder ao Estado ou comunidade de princípios que esteja além da maioria dos seus membros?". Ele respondeu: sim. Mas não se trata de promover uma abordagem metafísica, tirânica, extrajurídica, ou utópica de que o Estado seria uma pessoa real, de carne-osso.

O ponto fundamental nesse tipo de analogia se refere ao debate da responsabilidade moral da mesma forma quando alguém faz parte de uma sociedade e comete um crime ambiental; ou quando uma pessoa é prejudicada pela decisão de um grupo econômico e a empresa tem responsabilidade; ou em outro caso, quando alguém teve responsabilidade no atropelamento de alguém; ou responsabilidade sobre os produtos defeituosos que a empresa colocou para vender no mercado.

Enfim, estamos sempre utilizando esse princípio moral - a responsabilidade - para compreender e julgar o nosso cotidiano pessoal. É dessa forma que tratamos, igualmente, a responsabilidade do Estado como um todo constitucional.

Para visualizarmos essa responsabilidade geral precisamos personificar um agente ou pessoa que se comporte desta e não daquela maneira. A responsabilidade é produto da ação e da avaliação de alguma pessoa viva, ou semelhantemente viva.

A personificação contribui programaticamente para julgarmos a responsabilidade do Estado. No direito, bem sabemos que a responsabilidade se desdobra em várias práticas: civil penal, pública, privada, comercial, eleitoral, coletiva, individual. Acreditamos, portanto, que os dirigentes políticos e operadores do direito têm responsabilidades especiais e complexas. Eles devem tratar todos os membros da comunidade como iguais, mas ainda assim não conseguimos entender a responsabilidade política dos servidores públicos usando a mesma analogia com o a moralidade privada. Precisamos, na verdade, de uma idéia de responsabilidade mais transcendente que não se encontra pronta na esfera doméstica. Ou seja, a comunidade como um todo tem obrigações de imparcialidade para com seus membros. E as autoridades vão se comportar como agentes da comunidade ao exercerem essa responsabilidade.

Aqui, como no caso da empresa, precisamos tratar a responsabilidade coletiva como logicamente anterior às responsabilidades concretas de cada uma das autoridades públicas. Ao aceitarmos que nossas autoridades agem em nome de uma comunidade da qual somos todos membros, tendo uma responsabilidade solidária que, portanto, compartilhamos, automaticamente é reforçado e sustentado o caráter da culpa coletiva, o sentimento de que cada um de nós deve sentir vergonha quando as autoridades agem de modo injusto sobre a nossa comunidade (ibid., p. 212).

4.5 Definição prática: o programa de pesquisa da integridade faz diagnósticos e prognósticos institucionais

A função descritiva do programa de pesquisa da integridade observa o comportamento das teorias jurídicas na prática dos juízes entre elas, possivelmente o convencionalismo, o pragmatismo e a teoria da integridade do direito. Descrevendo a dinâmica dos processos e das sentenças judiciais, podemos mapear empiricamente as disputas teórico-argumentativas, observando criticamente as virtudes e vícios institucionais de cada uma das teorias concorrentes.

Em segundo lugar, a função especulativa do programa de pesquisa da integridade é definida através do modelo que fica concentrado na pessoa fictícia de um juiz denominado Hércules. Empregando esse tipo ideal de juiz, o programa de pesquisa da integridade especula sobre como deveria ser a decisão dos juízes se Hércules estivesse realmente presente no Poder Judiciário. A especulação nos permite encontrar uma nova paisagem teórica (e moral) do direito mostrando o surgimento no cotidiano judiciário do princípio do dever-ser casado com o dever fazer na prática dos juízes.

Hércules é um juiz fictício paciente, íntegro, bem informado; conta com tempo infinito à sua disposição; é cheio de sabedoria; seu estilo de trabalho é metódico, reflexivo, criterioso, perspicaz e cheio de virtudes. Entretanto, quando observamos o cotidiano dificilmente encontramos o juiz Hércules presente no Poder Judiciário. Para compreendermos a ausência dessa raridade institucional, devemos recuperar estrategicamente algumas advertências metodológicas de Ronald Dworkin no seguinte aspecto (ibid., p. 454-55):

Já é tempo, porém, de repetir uma das advertências que fiz anteriormente. Hércules serve a nosso propósito porque é livre para concentrar-se nas questões de princípio que, segundo o direito como integridade formam o direito constitucional que ele aplica. Não precisa preocupar-se com a urgência do tempo e dos casos pendentes, e não tem dificuldade alguma, como inevitavelmente acontece com qualquer juiz mortal, de encontrar uma linguagem e uma argumentação suficientemente ponderadas para introduzir quaisquer ressalvas que julgue necessárias, inclusive a suas caracterizações iniciais do direito. Também não se preocupa [...] com um problema prático adicional que é particularmente sério nos casos constitucionais. Um verdadeiro juiz deve às vezes introduzir ajustes naquilo que acredita ser o certo enquanto questão de princípio, e, portanto, também questão de direito, para poder ganhar os votos de outros juízes e tornar a decisão conjunta suficientemente aceitável à comunidade, que desse modo poderá continuar atuando como uma comunidade de princípios no nível constitucional. Servimo-nos de Hércules para fazer uma abstração desses problemas de ordem prática, como deve fazer qualquer análise bem fundada, para assim podermos ver quais soluções de compromisso os juízes reais consideram necessárias enquanto compromissos com o direito.

4.5.1 Hipótese auxiliar: o juiz Hércules

O conceito de integridade é uma virtude metodológica ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal. Esse conceito é decisivo para aquilo que um juiz reconhece como direito. Reina, por assim dizer, sobre os fundamentos do direito, pois não admite nenhum outro ponto de vista que "decorra" de decisões políticas tomadas no passado (ibid., p. 262).

A integridade é um princípio prático-transcendente ou metodológico e se preocupa primeiramente com os princípios que justificariam a aplicação das regras jurídicas. O juiz que aceita a integridade pensará que o direito estabelece os direitos genuínos que os litigantes têm a uma decisão dele. Os litigantes têm o direito, em princípio, de ter seus atos e assuntos julgados de acordo com a melhor concepção processual daquilo que as normas jurídicas da comunidade exigem ou permitem na época em que se dão os fatos. A integridade exige que essas normas sejam consideradas coerentes, como se o Estado tivesse uma única voz (ibid., p. 263).

O princípio da integridade instrui os juízes a identificarem direitos e deveres legais até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor - a comunidade personificada, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade.

No direito como equidade as proposições jurídicas são verdadeiras se constam ou derivam dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que juntos oferecem a melhor interpretação construtivas da prática jurídica da comunidade (ibid. p. 273).

O direito como integridade é mais inflexivelmente interpretativo do que o convencionalismo e o pragmatismo. Essas duas últimas concepções pretendem descrever e comandar as práticas jurídicas, entretanto, os seus programas não recomendam - ou não pedem - aos juízes encarregados da decisão de casos difíceis que façam novos exames, essencialmente interpretativos da doutrina jurídica. Ao contrário deles, o programa de pesquisa da integridade pede aos juízes que continuem sempre interpretando o mesmo material que eles próprios afirmam ter interpretado com sucesso (ibid., p. 273).

A história é importante para a integridade, mas num determinado sentido; ou seja, a coerência de princípio é mais horizontal do que vertical no tempo. Admite-se que as leis foram feitas no passado e que as decisões precedentes revelam muitos aspectos relevantes, porém, o direito como integridade começa no presente e se volta ao passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine (ibid., p. 274).

O conceito de integridade não busca os ideais e objetivos práticos dos políticos que criaram a lei. Deplora-se também aqui o mecanismo do antigo ponto de vista de que lei é lei.

A sociedade política que aceita a integridade como virtude política se transforma em uma forma especial de comunidade; entende-se aqui como especial no sentido de que promove sua autoridade moral para então assumir e mobilizar o monopólio legítimo da força coercitiva do Estado (ibid., p. 228).

Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem casos difíceis tentando encontrar a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas.

4.6 Definição contextual: comunidade de princípios

O programa de pesquisa da integridade não se preocupa inicialmente com os fins, mas com os meios ou "modo como os juízes decidem casos judiciais" (cf. cap. 1 do livro O império do direito).

A integridade é a chave para a melhor interpretação construtiva das práticas judiciais e particularmente do modo como os juízes decidem casos difíceis nos tribunais (ibid., p. 260).

Segundo Ronald Dworkin, o conceito de integridade oferece uma interpretação melhor da prática jurídica e judiciária do que o convencionalismo e o pragmatismo, porque não se perde em departamentos nem fragmentos e ao invés disso busca sempre recuperar a "totalidade constitucional". Conforme escreveu o autor nesse sentido:

- "[...] Se podemos compreender nossas práticas como apropriadas ao modelo de princípios, podemos sustentar a legitimidade de nossas instituições, e as obrigações políticas que elas pressupõem como uma questão de fraternidade, e deveríamos, portanto, tentar aperfeiçoar nossas instituições em tal direção " (ibid., p. 258).

- "Não afirmo, como parte de minha tese interpretativa, que nossas práticas políticas aplicam a integridade de maneira perfeita. Admito que não seria possível reunir, num único e coerente sistema de princípios, todas as normas especiais e outros padrões estabelecidos por nossos legisladores e ainda em vigor. Nosso compromisso com a integridade significa, contudo, que devemos considerar esse fato como um defeito, e não como o resultado desejável de uma justa divisão do poder político entre diferentes conjuntos de opinião, e que devemos nos empenhar em remediar quaisquer incoerências de princípio com as quais venhamos a deparar" (ibid., p. 261)

- "[...] o direito como integridade oferece uma interpretação melhor da prática jurídica do que as outras duas concepções [pragmatismo e convencionalismo]" (ibid., p. 261).

- "A integridade como um ideal político se adapta e explica características de nossa estrutura e prática constitucional que, de outro modo, mostram-se enigmáticas" (ibid., p. 259).

No modelo da comunidade de regras pressupomos, abstratamente, que as pessoas tratam a sua associação com os demais aceitando sempre o compromisso geral de obedecer a regras preestabelecidas. Quando essas pessoas precisam fazer algum contrato ou transação, obedecem às regras e "admitem que o conteúdo dessas regras esgota sua obrigação". Essas pessoas consideram também que as regras já representam por si só um acordo de diferentes interesses ou pontos de vista antagônicos. Nesse ponto, as regras funcionam como réguas, dando margem para que sejam feitos acordos justos e previsíveis. Nesse modelo, os indivíduos são livres para agir de modo quase tão egoísta quanto em uma comunidade de circunstâncias (ibid., p. 256). Cada um pode usar o aparelho político vigente para promover seus próprios interesses ou ideais e usam tecnicamente as regras para fazer acordos extremamente formais, sem acrescentar nenhum sentimento moral e constitucional de fraternidade no sentido mais amplo, além da demanda contratual em questão.

Já no modelo da comunidade de circunstâncias ou de estratégias pressupõe-se que os membros dessa comunidade tratam sua associação com os demais como se isto fosse um acidente dos fatos sociais, da história e também da geografia. As diferenças interpessoais existem; porém, se cada um precisa do outro, circunstancialmente são realizados acordos pontuais, sem levar em conta o interesse geral da comunidade. As pessoas podem, por exemplo, chegar a uma forma de divisão do trabalho, mas cada um vai manter o acordo enquanto achar que este lhe é benéfico, nada além desse aspecto utilitário. A associação aqui admite que as pessoas não se interessam pelas outras a não ser como "meio" de atingir os seus objetivos econômicos e sociais (ibid., p. 255).

Diferentemente, no modelo da comunidade de princípios as pessoas divergem sobre justiça e equidade (ibid., p. 257), considerando como cenário a existência de uma sociedade "moralmente pluralista". Esse modelo torna específicas as responsabilidades da cidadania e faz com que as responsabilidades sejam inteiramente pessoais. Além disso, exige que ninguém seja excluído e determina que na política estejamos todos juntos para o melhor ou o pior, pois ninguém pode ser sacrificado como os "feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total". Esse modelo busca uma comunidade associativa baseada no princípio maior da fraternidade. O direito será escolhido, alterado, desenvolvido e também interpretado de modo global através da linguagem transcendente apoiada em princípios. Aqui, nossos juízes deverão tratar o atual sistema de normas públicas como se este sistema expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios. Com essa conduta espera-se que os juízes e políticos interpretem essas normas de modo a descobrir, em seguida, normas implícitas "entre e sob as normas explícitas".

4.6.1 Princípios transcendentes ou constitucionais da integridade

-Liberdade: "as pessoas que pertencem a comunidades políticas básicas têm obrigações políticas, desde que sejam atendidas as outras condições necessárias às obrigações de fraternidade - devidamente definidas para uma comunidade política" (ibid., p. 250). "A obrigação central é a da fidelidade geral ao direito" (ibid., p. 253).

- Igualdade: "os membros da comunidade devem pressupor que as práticas do grupo mostram não apenas interesse, mas um igual interesse por todos os membros. Nesse sentido, as associações fraternais são conceitualmente igualitárias. Podem ser estruturadas, e inclusive hierárquicas, da mesma maneira que se verifica em uma família, mas a estrutura e a hierarquia devem refletir o pressuposto de que seus papéis e suas regras digam respeito aos interesses de todos, e que a vida de uma pessoa não é mais importante que a de nenhuma outra. Se essa condição for observada, os próprios exércitos podem ser organizações fraternais. Não são fraternais, porém, nem geram responsabilidades comunitárias, os sistemas de castas para os quais alguns membros são intrinsecamente menos dignos que outros" (ibid., p. 243). "Um governo que aceite o princípio igualitário abstrato necessita de uma concepção de interesse equitativo, e a integridade exige que o governo se decida por uma única concepção que não venha a rejeitar em nenhuma decisão, inclusive nas decisões de política. Assim, um governo comprometido com a concepção utilitária visa a estratégias legislativas que, em conjunto e a longo prazo, aumentem o bem-estar medido mais do que o fariam quaisquer outras estratégias; um governo comprometido com a igualdade material adota programas que tornam segmentos e classes mais iguais em termos de riqueza material enquanto grupos, e assim por diante. Por exemplo, subsídios a um grupo de agricultores podem ser justificados ainda que os subsídios a um grupo diferente, como parte de outra estratégia geral, também pudessem ter contribuído para aumentar o bem estar geral, possivelmente na mesma medida" (ibid., p. 268)

- Fraternidade: "o valor expressivo da integridade é confirmado quando pessoas de boa fé tentam tratar umas às outras de maneira apropriada à sua condição de membros de uma comunidade governada pela integridade política e ver que todos tentam fazer o mesmo, mesmo quando divergem sobre o que exatamente a integridade exige em circunstâncias particulares. A obrigação política deixa de ser, portanto, apenas uma questão de obedecer a cada uma das decisões políticas da comunidade, como em geral a representam os filósofos políticos" (ibid., p. 231). A integridade "torna-se uma ideia mais impregnada da noção protestante de fidelidade a um sistema de princípios que cada cidadão tem a responsabilidade de identificar, em ultima instância, para si mesmo, como o sistema da comunidade à qual pertence" (ibid., p. 231)

- Responsabilidade: pressupõe que em certo sentido "somos os autores das decisões políticas tomadas por nossos governantes, ou pelo menos, que temos boas razões para pensar assim. Esse ideal precisa, no entanto, de integridade pois um cidadão não pode considerar-se o autor de um conjunto de leis incoerentes em princípio, nem pode ver tal conjunto como algo patrocinado por alguma vontade geral rousseuaniana" (ibid., p. 229). "O ideal de autogoverno tem um aspecto especial que a integridade promove diretamente e a observação desse aspecto vai nos levar à nossa discussão principal da legitimidade e da obrigação política. A integridade expande e aprofunda o papel que os cidadãos podem desempenhar individualmente para desenvolver as normas públicas de sua comunidade, pois exige que tratem as relações entre si mesmos como se estas fossem regidas, de modo característico, e não espasmódico, por essas normas" (ibid., p. 230). "Não devemos nos esquecer de que as responsabilidades associativas estão sujeitas a interpretação, e que a justiça vai desempenhar seu papel interpretativo normal ao decidir, para qualquer pessoa, quais são, de fato, as suas responsabilidades associativas" (ibid., p. 246).

- Legitimidade: a integridade pública ou constitucional insiste em afirmar que cada cidadão deve aceitar as exigências que lhes são feitas e pode fazer exigências aos outros que compartilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas. A integridade promove a união da vida moral e política dos cidadãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando os interesses de ambos entram em conflito que interprete a organização comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania. A integridade infunde às circunstâncias públicas e privadas o espírito de uma e de outra, interpretando-as para o benefício de ambas. Essa continuidade tem valor prático e indicativo, pois facilita a mudança orgânica como vantagem prática.

- Dignidade: "o valor expressivo [da integridade] é confirmado quando pessoas de boa fé tentam tratar umas às outras de maneira apropriada à sua condição de membros de uma comunidade governada pela integridade política e ver que todos tentam fazer o mesmo, mesmo quando divergem sobre o que, exatamente, a integridade exige em circunstâncias particulares" (ibid., p. 231)

4.6.2 Princípios práticos ou operacionais

- Equidade ou princípio legislativo: a equidade exige que os princípios políticos necessários para justificar a suposta autoridade legislativa sejam plenamente aplicados ao se decidir o que significa uma lei quando sancionada. "Este princípio pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente" (ibid., p. 213). "A integridade na legislação restringe aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação do direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar nossas normas públicas" (ibid., p. 261). O princípio legislativo da integridade exige que o legislativo se empenhe em proteger, para todos, aquilo que vê como seus direitos morais e políticos, de tal modo que as normas públicas expressem um sistema coerente de justiça e equidade.

- Justiça ou princípio jurisdicional: a concepção de justiça de uma comunidade exige que os princípios morais necessários para justificar a substância das decisões de seu legislativo sejam reconhecidos pelo resto do direito. Isto "demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente do ponto de vista moral. A integridade na deliberação judicial requer que até onde seja possível, que nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios, e com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas. "O princípio judiciário da integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram criados por um único autor - a comunidade personificada, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade"(ibid., p. 272).

- Devido processo legal: segundo Ronald Dworkin, o devido processo legal adjetivo insiste em que sejam obedecidos totalmente os procedimentos previstos nos julgamentos e que se considere nesse tipo de processo alcançar o correto equilíbrio entre a exatidão e a eficiência na aplicação de algum aspecto do direito.

Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito da UNIFESSPA MARABÁ, PARÁ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. O observatório judiciário de Ronald Dworkin.: O império do Direito e o conceito de integridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20850. Acesso em: 22 nov. 2024.

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