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O observatório judiciário de Ronald Dworkin.

O império do Direito e o conceito de integridade

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13/01/2012 às 17:52
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5 O que aconteceria no Poder Judiciário (extraído do capítulo As leis)

O juiz Hércules sabe que na prática judiciária os juízes convencionalistas referem-se constantemente às múltiplas declarações feitas pelos membros do Congresso e de outras instituições governamentais, incluindo relatórios de comissões especializadas e debates oficiais a respeito da finalidade da lei antes de ela ter sido aprovada definitivamente pelo Poder Legislativo.

Os juízes convencionalistas defendem a metodologia da intenção do locutor ou interpretação conversacional acreditando piamente que chegarão deste modo ao verdadeiro estado de espírito do legislador antes e durante a votação da lei.

Tentando realizar uma profundareconstrução do passado político da lei, os juízes ordinários buscam descobrir qual foi a intenção do legislador ao propor este ou aquele tópico no texto legal. Pouco a pouco, entretanto, os juízes ordinários acabam descobrindo uma teia de significados e questões enigmáticas que envolvem o trabalho legislativo no passado. Por exemplo:

Quais personagens históricos podem realmente ser considerados legisladores?

Como devemos agir para descobrir as suas reais intenções na época?

Quando as intenções não são consensuais, o que devemos focalizar?

Em que momento exato a lei ganhou significado, antes ou durante a votação no plenário?

Indo mais além na sua investigação histórica, os juízes ordinários encontram como surpresa, muitas falhas em sua metodologia constatando que o ideal de neutralidade de investigação do passado não pode sobreviver razoavelmente nas mãos de um sujeito crítico e reflexivo.

Não se dando por vencidos, os juízes ordinários começam naturalmente a desenvolver outras estratégias de investigação. Admitem, gradativamente, que devem empenhar-se mais em descobrir as atitudes mentais subjacentes da legislação do que propriamente investigar os estados de espírito de cada um das centenas de legisladores. Ao buscar as ideias do passado, os juízes ordinários perguntam:

Qual era o estado de espírito dos que foram contra e favor da aprovação da lei?

Quem foram os assessores dos legisladores?

Quem foi o presidente da sessão?

Cartas e lobbies deveriam ser incluídos nessa reconstrução histórica?

Atores sociais teriam algum valor decisivo antes ou durante a aprovação dessa lei?

Os juízes ordinários começam a perceber que qualquer visão realista sobre o processo legislativo implica a influência dos grupos de interesse, portanto, todos esses atores deverão merecer atenção de alguma forma por terem participado direta ou indiretamente na elaboração da lei. Também, se uma lei não foi revogada ao longo do tempo, os juízes ordinários levam em consideração na sua pesquisa do passado as intenções de vários legisladores que poderiam ter revogado, mas que não o fizeram por algum motivo na época.

Conforme se percebe, ficando a investigação do passado insustentável os juízes ordinários avaliam que a teoria da intenção do locutor precisa ser purificada considerando para isto que os lobbies, conluios e comitês de ação política representariam uma corrupção do processo democrático. Desse modo, os juízes ordinários decidem, moralmente, que apenas valem as intenções dos congressistas que votaram pela lei e que as intenções de todos eles devem ter, genericamente, o mesmo peso no estudo da intencionalidade. Nada mais, nada menos.

Sabendo, portanto, que existiam sérias divergências sobre o texto da lei na época de sua votação, os juízes convencionalistas começam a usar outra estratégia, não mais baseada na intenção individual, mas na intenção da maioria dos legisladores.

Nesse momento, existem vários subcritérios que devem ser avaliados. Por exemplo:

Haveria uma pluralidade intencional?

Um legislador médio?

Existiriam outras formas de combinar o individualismo como o coletivismo da assembléia legislativa?

Mais uma vez, os juízes ordinários precisarão confiar no seu próprio julgamento político. Deverão definir a maioria como algo quantitativo ou qualitativo. Ao estabelecer, contudo, a intenção da maioria como critério alternativo, os juízes ordinários escolhem um legislador representante dessa idéia geral, acreditando assim que ao descobrirem a sua intenção em votar numa determinada lei estariam fielmente descobrindo a intenção da maioria genérica de legisladores.

Na sequência da investigação convencionalista, os juízes ordinários decidem conhecer as ideias de uma senadora que votou favoravelmente na aprovação da lei. Ao definir uma congressista como objeto de estudo, que serve como exemplar do tipo médio, digamos de nome Maria, os juízes ordinários não imaginam que vão encontrar um novo problema, pois não existe nada escrito sobre as opiniões formais dessa senadora em relação ao projeto de lei que agora está sendo debatido no tribunal; nem mesmo nos relatórios de comissões e nos debates legislativos. Além disso, diga-se de passagem, a vida mental desta senadora é complexa demais e muitas vezes incoerente na história do poder legislativo.

Os juízes ordinários vão atrás da opinião desta senadora porque acreditam basicamente no poder da conversação como meio de revelação da verdade da maioria abstrata dos legisladores do passado. Entretanto, vai ficando nítido que a senadora Maria pode ter votado na época a favor de determinada lei estando pressionada por força de algum lobbie ou então estaria antenada com o clima da próxima eleição.

Além disso, a senadora pode ter votado a favor da mesma lei acreditando que seria efetivada de um modo e não de outro; acreditava, por exemplo, que a lei cairia nas mãos de juízes liberais ou conservadores e assim sofreria restrições ou ajustes diversos, equilibrados e coerentes com a realidade concreta do caso. Em outras palavras, quando os congressistas votaram em favor da lei existiam certas esperanças que não ficaram explicitadas no texto oficial. Os congressistas esperavam, curiosamente, que seriam feitas leituras adaptativas da parte dos juízes no futuro, tornando assim a aplicação da lei razoável ou condizente com o caso concreto.

Já nessa altura dos acontecimentos, os juízes ordinários começam a intuir que a história de determinada lei está repleta de convicções, esperanças e expectativas de cada legislador tornando assim impossível entender coerentemente o que todos eles queriam realmente comunicar através da aprovação lei no poder legislativo.

Aqui, paradoxalmente, começa a surgir o reconhecimento objetivo de que os legisladores têm uma variedade de crenças e de atitudes com relação à justiça e equidade. Ao fazerem a interpretação das convicções dos legisladores, os juízes ordinários percebem que a senadora Maria apresenta uma variedade enorme de opiniões embaraçosas e momentâneas sobre o justo e injusto, sábio ou tolo, favorável ou contrário ao interesse nacional ou coletivo; muitas vezes, inclusive, a senadora manifestou interesses circunstanciais, partidários e pessoais contraditórios em outros episódios legislativos.

Tendo em vista que a opinião atual da senadora não parece razoável com a sua posição tomada no passado aprovando neste sentido uma lei que hoje é interpretada de outra forma totalmente contrária por ela mesma, os juízes ordinários são obrigados a buscar outro critério. Passam então a olhar para as suas próprias convicções no estágio atual do caso difícil, o que, aliás, nunca deveriam fazer no domínio do convencionalismo.

Os juízes ordinários abandonam a intencionalidade do legislador, o seu estado de espírito e a intencionalidade da maioria genérica e abstrata. Esse esquema de trabalho chega ao ponto de saturação empírica e teórica quando se descobre finalmente que cada legislador não tinha e não têm as mesmas opiniões concretas sobre a lei aprovada; nem mesmo havia no passado um sistema geral de convicções políticas e morais uniformes, nem antes, nem depois de aprovada a lei no poder legislativo.

Os juízes ordinários interpretam o histórico dos legisladores individuais para descobrir as convicções que justificariam o que cada um fez, para em seguida, combinar essas convicções individuais numa convicção institucional global. Ou em apenas uma etapa, buscariam interpretar o histórico da própria legislatura para descobrir as convicções que justificariam no passado o que a senadora fez.

Especialmente no momento de crise, os juízes ordinários podem optar pela segunda alternativa por motivos que são melhor recomendados pela teoria da integridade; buscam convicções gerais porque numa comunidade de princípios a legislação deve ser entendida como a expressão de um sistema coerente de princípios. Nesse ponto de saturação, os juízes ordinários vão percebendo que desde o inicio eles deviam interpretar muito mais o histórico da legislação e muito menos a biografia de cada um dos legisladores.

De acordo com a crítica do juiz Hércules, a notória doutrina da retórica judiciária de que as leis devem ser aplicadas observando-se as intenções contidas por trás delas, mostra agora a sua verdadeira natureza ou debilidade. Nesse limite, o juiz Hércules declara que seu método de trabalho tem mais poder e capacidade de ir além do individualismo ou do coletivismo metodológicos.

Hércules respeita a originalidade do texto legal e sabe desta forma que não vai corromper uma lei só por estar projetando no texto jurídico as suas próprias convicções. Ao mesmo tempo, Hércules respeita a equidade política, por isso não vai ignorar jamais a opinião pública e a intenção do poder legislativo.

Acima de tudo, Hércules se pergunta: "por que algumas declarações do Congresso, aquelas consideradas como partes essenciais do histórico legislativo são mais importantes que outras? Além disso, muitos episódios verdadeiros não entram, como, por exemplo, os discursos solitários dos legisladores numa sessão vazia nem as entrevistas de TV que tanto afetam a opinião pública".

Hércules evita praticar uma metodologia processual fragmentada, olhando só para as regras ou para os critérios tradicionais da Justiça. Ele adota outro ponto de vista: considera, virtualmente, que o Estado como um todo é um agente moral, por isso, pressupõe obrigatoriamente que todos os atos legislativos e decisões judiciais devem sempre sintetizar os princípios constitucionais.

Em outras palavras, o agente principal da política não é o legislador, mas o Estado que personifica uma comunidade moral de princípios. Nessa perspectiva, o juiz Hércules tem por objetivo compreender o conjunto histórico legislativo da melhor forma possível. No entanto, irá fazê-lo da pior maneira se a sua interpretação mostrar o Estado dizendo uma coisa e fazendo outra. Por isso, é absurdo para Hércules considerar que cada declaração feita por um legislador sobre a finalidade da lei aprovada seria a própria lei do Estado. Hércules vai interpretar - e precisa encontrar - alguma avaliação da prática que se ajuste a ela, e finalmente a justifique.

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Uma comunidade de princípios não encara a legislação como comunidade baseada em códigos, como acordos negociados, que não tem significado nenhum adicional ou mais profundo além daquele declarado pelo texto da lei. Hércules é um juiz íntegro e pressupõe que o Estado - que ele representa profissionalmente - não pretende jamais enganar o público, nem os indivíduos, nem a comunidade.

Hércules não tem dúvida que as últimas declarações do Congresso devem ser levadas em consideração; elas são parte da documentação pública, além das decisões políticas posteriores sobre a importância relativa, no sistema geral de propósitos da comunidade e dos diferentes interesses em jogo. Mas são partes e não o todo da ordem constitucional.

Na teoria da intenção do locutor a legislação é um ato de comunicação entre emissor e receptor. Pergunta-se: quem fala, quem escuta, qual estado de espírito influenciou a votação? Em que tempo? Em que espaço? Fundamentalmente, na teoria da intenção "os juízes devem escolher entre a mão morta, porém, legítima do passado e o encanto claramente ilícito do progresso".

O método de Hércules condena a teoria da intenção do locutor e rejeita a hipótese de um momento canônico no qual a lei nasce e tem todo e o único significado que sempre terá. Hércules interpreta não só o texto da lei, mas também a sua vida legislativa, o processo que se iniciou antes dele se transformar em lei, e tudo mais que se estende além do passado. Ou seja, Hércules observa o contexto. Ele quer utilizar da melhor forma possível esse desenvolvimento contínuo e por isso sua interpretação muda à medida que a história vai se transformando.

Querendo melhorar ou ampliar a interpretação coletiva da lei, Hércules vai identificar uma multiplicidade de pessoas, grupos, cientistas, especialistas e instituições, cujas afirmações ou convicções podem ser relevantes de diferentes maneiras. Por exemplo, ao tratar da equidade Hércules não se limita aos gabinetes e abre as portas para a opinião pública, inclusive aceita com respeito a introdução, no processo legal, de algum discurso razoável televisionado de um político que muitas vezes pode ser mais relevante do que uma bela página impressa de um relatório de uma comissão técnica.

Na teoria da intenção do locutor não se pode incluir as opiniões posteriores ou estranhas à lei, pois se trataria de anacronismo dentro da visão historicista da lei. Porém, Hércules é diferente. Ele pergunta para si próprio qual é a interpretação que oferece a melhor descrição de uma história política que agora inclui não apenas a lei. Nesse sentido, Hércules vai perceber que o texto legal tem a sua estrutura, mas levará em consideração o que outros tribunais fizeram em casos semelhantes. Sua recorrência ao tempo passado e futuro será feita, no entanto, de um modo bem especial neste processo.

O juiz Hércules precisa denunciar passo a passo a dificuldade encontrada pela teoria da intenção do locutor levando essa metodologia à exaustão máxima. Como alternativa Hércules introduz o seu modo de produção da verdade, articulando política, direito e moral, e, sobretudo defendendo a abertura do direito como espaço da multivocalidade.

De fato, nesse prognóstico não sabemos o que Hércules decide finalmente na sua sentença porque estamos preocupados nesta seção apenas como o modo como os juízes decidem casos. Conhecemos, no entanto, com transparência, a sua metodologia judiciária, usando o conceito de integridade na construção de um justo processo legal.

O juiz Hércules é um agente moral. Ele se preocupa em exercer da melhor maneira possível a sua responsabilidade profissional representando o Estado de Direito Democrático como um todo. Agindo de forma sintética ou integradora, Hércules não é apenas um agente moral, mas também um agente cultural que enfrenta a cultura do convencionalismo infiltrada no Poder Judiciário.

Sendo uma criatura existencialista, Hércules olha para o presente, considerando que o passado é um relato do tempo presente importante, mas não determinante da solução do caso difícil. Nesse sentido, Hércules também respeita a sua própria convicção pessoal e dos demais envolvidos, por isso mesmo, promove a abertura democrática do direito para outras vozes se manifestarem, pois ele busca integrar a legalidade com a legitimidade social. Como criatura hermeneuta, Hércules compreende que o caso judicial é difícil no exato momento em que o texto entrou em conflito com o contexto.

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Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito da UNIFESSPA MARABÁ, PARÁ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. O observatório judiciário de Ronald Dworkin.: O império do Direito e o conceito de integridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20850. Acesso em: 25 abr. 2024.

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